domingo, 19 de janeiro de 2020

4542) O parágrafo anunciado (19.1.2020)




É um gancho narrativo dos mais elementares, e que sempre funciona. Por isso mesmo, deve ser usado com parcimônia, porque depois da terceira vez o leitor pensa, meio sem pensar, “ih, lá vem isso de novo”.

Suponhamos o seguinte trecho de um romance:

“Smith deixou as coisas no hotel, lanchou num bar, assistiu um filme, e de noite foi para a orla da praia, onde pessoas caminhavam, andavam de bicicleta, passeavam com as crianças. Ele lembrou da última vez em que ele e Marybelle tinham ido para a casa dos amigos na Flórida.

Marybelle. Fazia tempos que não pensava nela. Há anos que ela sumira de sua vida por completo. (Etc e tal.)”

Mencionar o personagem, e usar o nome como uma espécie de crachá abrindo o parágrafo seguinte, é um procedimento para informar o leitor de que estão saindo do continuum de ação para o de digressão e memória.  

É um clichê narrativo, essa técnica de  abrir assim um parágrafo, anunciando um nome de pessoa, um lugar específico, um fato ou uma época (“Ah, aquelas férias na montanha com os primos!”). Basta isso para que o leitor ressete a bússola mental e acompanhe o novo canal narrativo, sem nenhum percalço.

O leitor acompanha as mais absurdistas das histórias, se a narração delas fizer um sentido minimamente narrativo: aí estão Campos de Carvalho, Robert Sheckley, Ionesco, Jarry. Acontecem somente coisas bizarras, mas o leitor não tem o menor problema em acompanhá-las.  Seu problema é quando a linguagem narrativa funciona de outra forma – como em James Joyce ou como o Catatau de Paulo Leminski, que são fluxos de frases pouco consequenciais.

Leminski... Os dois romances publicados pelo poeta curitibano (Agora é que são elas, Catatau) são muito diferentes, e nenhum dos dois obedece a essa estilística que poderíamos chamar “estilística de best-seller”, se isso não passasse a idéia errônea de que livros assim vendem mais do que os outros. Não vendem. Apenas são livros mais fáceis de entender, porque o autor vai sinalizando o rumo para o leitor, usando artifícios dessa natureza. Artifícios que funcionam como aquelas bandeirolas que o pessoal finca nas trilhas entre terras pantanosas, avisando aos transeuntes: “venha por aqui”.

O leitor precisa de continuidade, precisa saber onde está pisando, mesmo que a paisagem em torno seja de árvores desconhecidas.

O que mais atrapalha um leitor e impede o seu avanço no texto não é uma história difícil de compreender (embora isto possa pesar, é claro). É a sinalização gráfica.

Grande parte dos leitores de José Saramago – me refiro a leitores cultos, experientes – se queixa da sua maneira pouco ortodoxa de usar a pontuação, as letras maiúsculas, a troca de interlocutores (que ele às vezes amontoa num mesmo parágrafo, sem dar sinais muito claros de quem disse o quê).

A prosa de ficção da segunda metade do século 20 nos acostumou a uma série de liberdades. Mas não acostumou todo mundo ao mesmo tempo.

Hoje em dia, muitos leitores conseguem se virar sem muito problema diante de um parágrafo como este:

Cheguei no prédio que me indicaram. O porteiro era um cara grandão, sonolento. Boa tarde, mora aqui Doutor Altamiro? Pode ser e pode não ser. Quem quer falar com ele? Me botou um olhar de buldogue entre o almoço e a sesta. Olhe, ele não me conhece. Diga que é da parte de Felisberto. Ele mexeu no interfone, resmungou baixinho, de propósito, pousou o aparelho de volta. Seiscentos e um.

Existem aí três planos de discurso, a narração “de fora”, a voz de A e a voz de B. Como a cena é bastante clara, é natural esperar que o leitor faça a decodificação sem muito problema. E tem mais uma coisa: como os três planos vêm misturados, é preciso que depois de cada ponto e a cada início de frase o leitor interprete, compare e decida: “ah, agora é fulano quem está falando”. São microdecisões tomadas ao longo da leitura, e isso acaba sendo bom, porque, como diz o pessoal mais tarimbado, evita que o leitor pegue no sono.

O mesmo trecho, numa sinalização gráfica convencional, viria mais ou menos assim:

Cheguei no prédio que me indicaram. O porteiro era um cara grandão, sonolento.

– Boa tarde, mora aqui Doutor Altamiro?

– Pode ser e pode não ser. Quem quer falar com ele? – Me botou um olhar de buldogue entre o almoço e a sesta.

– Olhe, ele não me conhece. Diga que é da parte de Felisberto.

Ele mexeu no interfone, resmungou baixinho, de propósito, pousou o aparelho de volta.

– Seiscentos e um.

Fica mais óbvio, fica mais confortável, mais “conforme o figurino”, porque a sinalização está claríssima. Mas não se pode dizer que o primeiro exemplo está incompreensível. Pelo menos me parece mais fluido do que muitos parágrafos (brilhantes, por outros critérios) de José Saramago.

Saramago... Sua coragem de misturar um português clássico, castiço, e uma sinalização heterodoxa causaram surpresa em muitos leitores, para quem esses dois aspectos se excluíam mutuamente. Mas são combinações desse tipo que marcam um estilo, deixam-no totalmente pessoal – no que isto tem de bom ou de ruim.

E se a história que o autor está contando valer a pena, e se for complicada, e se tiver valores e qualidades como história em si... não custa nada sinalizar, deixar que o leitor perceba sem esforço adicional quem falou, quem respondeu, onde aquilo está acontecendo, se é fato real do momento, se está se passando na memória ou na imaginação do personagem. Pequenas sinalizações. Como faz o metrô, que nunca deixa de avisar o óbvio, sem se preocupar pensando que todo mundo já sabe: Próxima estação, Cinelândia. Desembarque pelo lado direito.

Se a história estiver bem sinalizada, o autor pode arrebatar o leitor para a viagem que bem entender.