sábado, 30 de julho de 2022

4848) Primeiras Estórias: "Partida do Audaz Navegante" (30.7.2022)

 

As crianças e os doidos, diz Paulo Rónai, são dois temas que Guimarães Rosa gosta de explorar em seus contos de Primeiras Estórias (1962; 3ª. edição, 1967). Sempre com conhecimento de causa. Ele dá ao leitor a sensação de que está mesmo vendo aquilo acontecer, porque as crianças pensam e falam do jeito que ele está descrevendo, e os doidos também.
 
É bom lembrar que na rubrica de “doidos” o prof. Rónai inclui todos os maníacos mansos, os obcecados, os “pertubados”, os levemente delirantes...
 
A “Partida do Audaz Navegante” é um conto sobre um grupo de crianças, com foco em uma delas. O conto inteiro transcorre numas poucas horas, num dia chuvoso, numa casa da zona rural. Chove e as crianças têm que brincar dentro de casa. Estiou, e saem elas correndo para a beira do rio, para avaliar as mudanças. As brincadeiras prosseguem, até que o trovão ribomba e a mãe vem recolher a tropa de volta pra dentro.
 
É um conto simples, um desses famosos contos onde nada acontece e de frase em frase um milagre desabrocha.  
 
As crianças são três: Ciganinha, a mais velha, já se botando com interesses de quase-moça; Pele, a do meio; e Brejeirinha, a mais nova e a mais importante da história. Aliás, são quatro, porque tem o primo Zito, que está passando uns dias na casa e mantém com Ciganinha uma tumultuosa amizade, um tateante rascunho de namoro. E tem as figurantes de fundo: a Mãe, “a mais bela, a melhor”; Maria Eva, que pelos diálogos interpretamos como uma criada da casa; e Nurka, a cadela.
 
Rosa conta essa historinha doméstica com um ponto de vista infantil, um olhar de menina que ele consegue reproduzir. Jagunço, matador e cruel quando necessário, seu olhar pode se ameninar dessa forma, e o mundinho daquele sítio vai sendo revelado através de pequenas delicadezas verbais:
 
“Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas.” (p. 115)
 
“Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se.” (p. 116)
 
“Eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade” (p. 120)
 
Quando a gente estabelece, didático, aquela milenar separação entre “literatura de enredo” e “literatura de estilo”, muita gente entende “ter estilo” como escrever bnito, escrever de um jeito enfeitado; uma concepção de “estilo” que contaminou muitas literaturas, principalmente a nossa. Escrever com palavras bonitas. Escrever com frases bombásticas. Escrever com citações dos clássicos. Escrever em estruturas sintáticas difíceis de acompanhar, mas tecnicamente inatacáveis. Tudo isso constituía um estilo, por mais desnecessário ou deslocado que fosse.
 
O estilo de Guimarães Rosa é geralmente compreendido num conjunto de efeitos quase sempre presentes em quase todo texto seu:
 
--- sintaxe meio truncada, cheia de solavancos;
--- abundância de neologismos (palavras inventadas pelo autor) e arcaísmos (palavras que já existiam na língua e o autor foi buscar no fundo do baú);
--- riqueza de símiles (comparações) visuais e sonoros;
--- facilidade para adotar o tom simbólico-declaratório que se vê nos provérbios, nos ditos folclóricos, nas profecias religiosas;
--- convivência pacífica entre a norma cultíssima e o linguajar solto, barbárico, bravio, da vida real;
--- originalidade na criação de nomes próprios (pessoas, lugares)
... e mais alguns que não me ocorrem agora.
 
As frases que citei acima, no entanto, mostram Rosa em pleno domínio de um recurso de estilo que não é dele, é da Literatura em si – o recurso de criar um “clima mental” através do uso de palavras e frases que pertencem mais ao universo mental do Personagem do que ao do Autor (embora este, obviamente, tenha acesso a ambos).


(ilustração: Luís Jardim)
 
Num conto sobre crianças, ele sabe reconstituir esse mundinho infantil de ingenuidades e de sutilezas percebidas, de linguagem ora infantilmente afetiva ora pomposamente semi-adulta. Estamos aqui de volta ao mundo de ingenuidades geniais da Nhinhinha de “A Menina de Lá”, dos achados de linguagem infantil – que no caso de Nhinhinha divergem para a “santidade”, e no de Brejeirinha para a literatura...
 
Comentado aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/05/4580-menina-de-la-2152020.html
 
Essa pomposidade no bom sentido é que constitui o núcleo do conto, que é a história do “Audaz Navegante” que Brejeirinha vai inventando em voz alta, como uma novela de rádio criada de improviso, e até interativamente porque as irmãs e os primos dão palpite o tempo todo.
 
E o estilo de Brejeirinha (uma menina que fala “não detendo em si o jato de contar” é um esboço de prosa adulta concebida meio às cegas, meio na inocência, por quem está começando a domar o cavalo brabo do idioma:
 
O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. (p. 117)
 
E nessas pequenas amostras a gente já percebe a existência de estilo. Brejeirinha é uma menina esperta, domina a leitura (“Pois eu li as 35 palavras no rótulo de caixa de fósforos...”) e um dos seus cacoetes estilísticos é essa frase que termina com uma palavra bombástica de encerramento antes do ponto final, subitâneo.


(ilustração: Poty)

O estilo é sempre o resultado da soma entre o que a gente sabe fazer e o que não consegue.
 
Note-se que ela usa o termo aldaz, com L, e isto, embora não esteja bem claro no texto de Rosa, nos permite inferir que Brejeirinha já andou rabiscando seus folhetinzinhos, com sua própria ortografia e letra cursiva. Quando ela diz a palavra em voz alta, mesmo que a pronúncia seja a mesma, o que ela tem na memória visual é sua própria palavrinha manuscrita.
 
A sutileza de Rosa está justamente em escolher um “erro” que, mesmo apresentado na fala oral, só poderia existir na forma escrita. Me lembrou um conto policial de Melville Davisson Post, em que o crime é esclarecido quando o detetive vê, num bilhete atribuído a um homem surdo, um equivoco de pronúncia que um surdo, totalmente dependente da palavra escrita, não cometeria.
 
E quando as crianças saem por fim para brincar lá fora, o que encontram na beira do rio? Um enorme cagalhão bovino, depositado. E passam a enfeitá-lo de flores, gravetos, como cravando velinhas em bolo de chocolate natalício. Brota nelas a convenção instantânea de que é aquele o Aldaz Navegante, até porque o rio está engrossando com a chuva nas cabeceiras, e as águas pouco a pouco se aproximam daquela “coisa vacum”, daquela “obra pastoril”, daquela “trampa seca de vaca”, prometendo arrastá-la pelos oceanos da aventura.
 
As vagarosas travessuras desse grupinho de crianças reproduzem a infância de Rosa em Cordisburgo, seus boizinhos-de-chuchu e outros brinquedos rurícolas. E ao mesmo tempo o conto é uma reflexão bem-humorada sobre o ato de criar e de contar histórias, sobre a Literatura enfim, sobre o mundo onde Brejeirinha começa a se aventurar.
 
Quando alguém lhe questiona por que inventa histórias (o nosso sonoro mantra existencial-adulto: Por Que Fazer Literatura?), Ciganinha mata a charada:
 
Porque depois pode ficar bonito, ué! (pág. 117)
 
No campo do real e do fantástico, ela se sai com uma ótima ilustração (por intuição infantil) do problema científico da Ausência de Prova Negativa. (Em resumo: se encontrarmos uma espécie alienígena, isso prova que existe vida extra-terrestre, é a prova-positiva; mas se nunca a encontrarmos, isso não prova que não existe; é impossível produzir, pela mera experiência, essa prova-negativa).
 
Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés. “ – Você já viu jacaré lá?”, caçoava Pele. “ – Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar...” (pág. 119)
 
Ficção requer essa capacidade de pensar como o personagem, usar a linguagem do personagem, nas limitações do personagem, dando a ele (a ela, no caso) as limitações de ser quem é, e ao mesmo tempo a necessária chama de inteligência, esperteza, sensibilidade, expressão, que a transforme num personagem interessante, o que já é outra coisa.
 
Brejeirinha, como todo autor de folhetim, tira da cartola o coelho que for necessário para amarrar as pontas da narrativa, e o público não é bobo.
 
“(...) O Aldaz Navegante, o perigo era total, titular... não tinha salvação... O Aldaz... O Aldaz...
– Sim. E agora? E daí? – Pele intimava-a.
– Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol. Pronto. E...
– Na-ão!  Não vale.  Não pode inventar personagem novo, no fim da história, fu!
 
Qualquer lente de Escrita Criativa faria a mesma prescrição, é ou não é?
 
E Brejeirinha, já meio afobada, pressionada pela ansiedade do editor, a expectativa do público o cenho franzido da crítica especializada, resolve encerrar sua história de maneira hollywoodiana, orquestral:
 
“Então, pronto. Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor, desassustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvolhou-se. Arres! O Aldaz Navegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi: Fim!”  (pág. 121)
 

(ilustração: Poty)