domingo, 16 de março de 2025

5162) Parolagens nordestinas (16.3.2025)




(pintura: Irene Medeiros, Campina Grande)
 

Dizem que os esquimós têm dezenove palavras diferentes para descrever diferentes tipos de neve. Pode ser que sim; palavras que aparecem com frequência na fala cotidiana acabam se desgastando um pouco, e gerando sinônimos, variantes, equivalentes. Sempre há algum temperamento mas criativo que introduz um jeito novo de exprimir uma idéia antiga. 
 
No linguajar nordestino, tenho observado a grande quantidade de expressões que se usa para exprimir o conceito de grande quantidade. É coisa que não acaba mais. 
 
"Assim de", por exemplo. Esta expressão é complementada pelo gesto de unir as pontas de todos os dedos em círculo e fazer pequenos movimentos de abre-e-fecha.    
 
"Rapaz, eu fui no comício ontem à noite. Disseram que ia ser fraco, mas a praça estava ‘assim’ de gente!"  
 
O gesto, pela convergência das pontas dos dedos, indica quantidade e aglomeração. É semelhante ao gesto que em outros lugares do Brasil os motoristas fazem uns aos outros, durante o dia, para alertar que o outro está com os faróis acesos, por distração.  Nesse caso, o gesto significa os raios de luz, e o piscar do farol.  Durante muito tempo, toda vez que eu via esse gesto nas avenidas ou nas estradas, pensava que queria dizer "o trânsito está ‘assim de’ gente lá atrás”.  
 
“Castigo”. Geralmente exprime uma grande quantidade de pessoas. Usa-se muitas vezes para exprimir o lado incômodo da presença de muita gente. 
 
"Detesto ir num Banco no dia 1º do mês, é aquele castigo de gente, cada fila enorme."  
 
"Pensei em ir na praia ontem, mas quando vi aquele castigo de gente passando nos ônibus acabei desistindo."  
 
Esse lado negativo expresso por “castigo” está presente também em “um horror”. 
 
"Passei três meses viajando, quando cheguei em casa tinha um horror de contas pra pagar." 
 
Embora também seja usado sem necessariamente dar uma idéia negativa. 
 
“ -- Aí pronto. O velho é assim.  Senta, paga um horror de uísque, me dá dinheiro e vai embora.” 
(Ricardo Soares, Nadir, pág. 127)
 
“Dar no meio da perna” (ou “... da canela”) é uma boa imagem visual.
 
“Rapaz, a festa foi demais, o uísque dava no meio da perna.” 
 
“De cambão aparece em linguagem de jogadores, em qualquer tipo de esporte ou de jogo, para indicar uma vitória de goleada, ou por grande diferença. 
 
“Eles disseram que iam armar o melhor time de todos, mas estão apanhando de cambão toda vez que jogam.”

“Em banda de lata” é outra imagem visual, se bem que na minha cabeça eu não entendo muito porque as bandas-de-lata implicam em grande quantidade. Enfim; usa-se muito, ainda hoje. 
 
"Rapaz, eu fui na festa de Fulana ontem, tinha gente em banda de lata."  
 
"No dia em que fizerem uma devassa no ECAD, vão prender gente em banda de lata." 
 
“Lote” e “magote” são palavras aparentadas não só pela rima, mas pela função: indicam em geral uma porção de gente, mas sempre com um viés desdenhoso ou pejorativo. 
 
“Ele chega de madrugada em casa com um lote de cachaceiros, acorda a mulher, e manda fazer comida pra todo mundo”. 
 
“Aquilo não é uma família, é um magote de desordeiros.”   
 
Certa vez, Martins Preto chegou à Fazenda Bonfim, onde seu filho, Pedro Martins, era o vaqueiro de maior confiança, procurou o proprietário, Antônio Nunes, e disse: 
-- Seu Antônio, eu estou muito aperreado porque Joaquim Aragão quer tomar minha terrinha e eu não sei o que vou fazer para sustentar o magote de moleque que eu tenho. 
(Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado, pag. 342)
 
“Outro tanto” exprime a mesma quantidade que acaba de ser mencionada.  
 
“Ele disse que Fulano vai pagar dois mil, e o pai dele outro tanto, para ajudar na sua operação.”   Também se diz “o mesmo tanto”. 
 
Quanto mais eles andavam
menos saíam do canto
porque o chão dessa ponte
avançava o mesmo tanto,
e eles não prosseguiam
pela força desse encanto.
(Braulio Tavares, A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora)
 
“Paiol” me parece um termo tipicamente paraibano, nunca vi sendo usado em outro lugar além de Campina Grande. 
 
"Eu não vou poder ir não, que estou com um paiol de coisas pra fazer nesse fim de semana."    
 
“Ruma” é termo bem antigo, e tem o sentido imediato de  monte, montanha, elevação de terra, com a conotação de grande quantidade.  
 
"Eu estou com uma ruma de provas pra corrigir em cima da mesa."    
 
Galinha põe todo dia
invez de ovos, é capão,
o trigo invez de semente
bota cachadas de pão,
manteiga lá, cai das nuvens
fazendo ruma no chão.
(Manoel Camilo dos Santos, Viagem a São Saruê)
 
Quando o chão está molhado
aparecem coisas boas:
se levantam cogumelos
que as capas parecem broas;
os sapos chocam de ruma,
bordam com cachos de espuma
os cenários das lagoas.
(Sebastião Dias, cit. em De repente, cantoria, de Geraldo Amâncio e Wanderley. Pereira, pág. 120)
 
“Só isso tudo?!” é uma exclamação irônica quando a gente se surpreende com algo além da conta, maior que as expectativas. Uma combinação de “Só isso?” com “Isso tudo?”. 
 
“-- Fulano, me empresta duzentos reais.  -- Só isso tudo?  Tá pensando que eu sou o Banco do Brasil?”   
 
“Só isso tudo?  Eu disse que gosto de doce de leite, mas se eu comer esse prato aí eu vou parar no hospital”. 
 
“Tem coisa que dá uma guerra” é um equivalente para “tem muita coisa, tem coisas demais.” 
 
“Na casa dele tem livro que dá uma guerra”. 
 
“Naquela novena de ontem tinha gente que dava uma guerra.”
 
A renovação constante da língua se dá por esta necessidade de inventar novas palavras ou novas expressões comparativas para exprimir idéias comuns. Ninguém aguenta passar anos a fio dizendo as coisas sempre do meso jeito. Ou melhor – muita gente aguenta, mas muita gente, também, procura criar uma maneira mais exagerada, mais visualmente vívida, mais forçosa, mais surpreendente, mais engraçada... 
 
É uma forma incipiente de criação literária, porque a literatura não consiste apenas na contação de histórias, envolve também o enriquecimento dos modos-de-dizer. Esse vocabulário do concreto é um desafio permanente para as pessoas que são verbalmente inventivas – e que tantas vezes, vejam só, são pessoas de baixa escolaridade, mas muita habilidade verbal.