sábado, 9 de abril de 2016

4098) Os extraordinários (10.4.2016)



É um personagem recorrente na história da humanidade. É o sujeito que tem todas as qualidades: gente boa, honesto, simpático, inteligente, trabalhador, esforçado, um profissional realizado, quando maduro, um grande potencial de futuro, quando jovem. Alguém detentor de todos os méritos, herdeiro de todas as conquistas. É o personagem sonho-de-consumo de incontáveis pés-rapados, zés-ninguém, borra-botas, os sem ofício, os sem preparo, os sem fuga, os sem noção. A fantasia de quem para na calçada e fica olhando na vitrine uma TV ligada, onde acontecem coisas incompreensíveis que despertam a veemência do senhor de terno. Nessa imagem o transeunte reencontra o personagem que ele queria ser se um dia crescesse.

Há milhões de sujeitos iguaizinhos a ele (ao notívago na calçada, no clarão da vitrine, regressando a contragosto para uma casa que é um moído de problemas que nunca se acabam) que já tiveram a chance de se aproximar do homem de terno. Puderam pedir um autógrafo, apertar sua mão por cima dos braços retesados dos seguranças, fazer um selfie, ganhar um tapinha no ombro dado por ele (o homm de qualidades). E nesse instante, ao ser valorizado pelo líder, zé-mané se infla de cidadania, sente-se realizado.

No momento republicano do selfie, o fã e o ídolo são nivelados diante de uma lei maior, de um espírito cujo culto criou as circunstâncias concretas para aquele encontro e aquela mensagem de otimismo. O fã pensou: “Somos cidadãos, somos iguais.”  E o ídolo pensou consigo: “Sim, mas é claro que uns merecem ser mais iguais do que os outros”.

E na hora em que isso é pensado (e pior, quando é agido) pela primeira vez, some tudo que não é o Arquétipo, somem o terno Armani e a toga romana, some o coronel do rancho e some o lorde inglês. Quem está ali é o arquétipo, o personagem, o cara que descobre em si mesmo um insuspeitado (ou melhor, implícito, quase minimizado) superpoder.

É por isso que o Raskólnikov de Crime e Castigo pergunta: o que aconteceria se no lugar dele estivesse Napoleão, e como um obstáculo à sua ascensão houvesse apenas alguma velha ridícula, usurária, e fosse preciso matá-la e saquear seu cofre para financiar os estudos, uma carreira literária, quem sabe um cargo de projeção política na Corte?! O Corso titubearia? Não, porque ele sabe que é um extraordinário, se não pelo sangue nobre, pela ousadia. Napoleão forneceu a Raskólnikov o argumento de passar por cima dos inferiores, a crença de que o mundo pertence a eles, os Extraordinários, e que eles não precisam sequer de justificativas. “Eu não matei para obter recursos e poder,” diz ele, “eu simplesmente matei; matei para mim, só para mim.”

(Esta foi a minha última coluna no "Jornal da Paraíba", cujas atividades impressas se encerram neste domingo, dia 10 de abril de 2016. A publicação de novos artigos continuará normalmente, apenas aqui no blog Mundo Fantasmo.)