sábado, 25 de julho de 2015

3876) A chacina aleatória (26.7.2015)



(Jean-Luc Godard e câmera)

Na semana passada, houve mais uma chacina aleatória nos EUA, desta vez em ambiente militar em vez de estudantil. Ainda não sei se houve motivação religiosa ou política, ou se foi um mero surto. Surto é hoje uma dessas palavras-ônibus que podem ser atribuídas a mil coisas. Podemos considerar que o resultado da doutrinação religiosa ou política também é uma espécie de surto psicótico, planejado e desencadeado por alguém.

Imaginei um conto a respeito de uma dessas matanças, do sujeito calmo que um dia pira e sai abatendo todo mundo, aquilo que chamam de “going postal”. Quando a matança se dá no lugar onde o criminoso trabalha, ou onde estudou quando jovem, está clara a motivação pessoal, envolvendo rancor, frustrações, mau ambiente com as demais pessoas, uma combinação de coisas. Outra possibilidade é a matança ocorrer num local simbólico (igreja, tribunal, etc.) ou que atrai muita gente (eventos esportivos, shopping centers, clubes, praças, etc.), nesse caso tem-se como quase certo que o assassino não sabe precisamente que pessoas está matando.

No meu conto, depois da chacina descobre-se numa rede social qualquer a última postagem do criminoso antes da hecatombe (onde ele se matou no final): “Peço perdão a todos e às suas famílias, não é nada pessoal.”  Claro, não é nada pessoal. É a respeito de um Deus falso e um Deus verdadeiro, ou de um partido do Bem e um partido do Mal.  Quando estão envolvidos conceitos dessas proporções, uma vida humana parece valer bem pouquinho.

Um cara mata 15 pessoas por causa da fé ou por causa da ordem do partido. Talvez ele sinta que essa missão superior avaliza ou neutraliza tudo quanto ele faça. O fato de ser missão já basta para lavar as mãos de quem a executa, “estava obedecendo ordens”, “je ne suis pas responsable”, “estava escrito”, “apenas cumpri a lei”. Talvez o que sinta seja apenas o prazer da missão bem cumprida. É diferente do matador ressentido que quer sair em todos os noticiários, ou o que sente de fato um tipo de epifania, de iluminação maligna.

Mais temível do que o matador ideológico é esse matador absurdo, que executa o ato gratuito tão louvado pelos surrealistas. André Breton disse que o ato surrealista por excelência seria sair à rua empunhando uma arma e atirar em quem achasse pela frente.  Luís Buñuel explorou variantes dessa idéia, uma espécie de terrorismo absurdista, mistura de Ionesco com Billy the Kid.  A Nouvelle Vague herdou o ato surrealista e o misturou com o romance policial “noir” norte-americano, onde vida e morte são gratuitas, e onde vigora um certo tipo de existencialismo, mesmo sem usar esse nome.