sábado, 30 de maio de 2009

1060) Revólver em punho (9.8.2006)



Uma discussão interminável entre os admiradores dos Beatles é sobre qual seria o disco revolucionário, o disco que “quebrou tudo” no universo da música pop. Para uns, é Sgt. Peppers; para outros é Revolver. Páreo duro, porque são dois discos que mudaram o mundo. Olhar a música pop daquele tempo e ver estes dois discos é como olhar para as areias do deserto e ver duas pirâmides se elevando mais de cem metros acima do solo.

Revolver foi lançado em 5 de agosto de 1966, e teve um impacto imediato. Muita gente ainda se lembra de quando escutou pela primeira vez “Eleanor Rigby”, com seu octeto de cordas, e teve que perguntar: “Isso são os Beatles?!” O disco ia do refinamento melódico e poético de “For No One” até a ficção-científica circense de “Yellow Submarine”; de canções românticas impecáveis como “Here, There and Everywhere” até experiências cósmico-místicas como “Tomorrow Never Knows” e “Love You Too”. E os Beatles pareciam dispostos a ir até os limites da sonoridade que se pode extrair de uma guitarra, em faixas como “And Your Bird Can Sing”, “I Want To Tell You”, “Taxman”.

É impressionante a gente observar que menos de um ano depois de lançar um disco assim o grupo lançou (em 1 de junho de 1967) Sgt. Peppers, cujas excelências não amiudarei aqui por falta de espaço. Voltemos a Revolver, cujos 40 anos estão sendo comemorados por estes dias. Uma das comemorações é um livro eletrônico lançado há pouco por Ray Newman: Abracadabra! The Complete Story of the Beatles’ Revolver. É um livro sem intenções comerciais, mas cheio de informações obscuras (é coisa de fã) e comentários interessantes. Quem for ao saite de Newman (em: http://www.revolverbook.co.uk/index.html) pode baixar o programa Adobe Acrobat, caso não o tenha, e em seguida baixar os 726kb do livro, de graça.

Há um interessante comentário de Ray Newman, falando não da transição entre Revolver e Sgt. Peppers, mas a anterior, entre Rubber Soul (de dezembro de 1965) e Revolver. Embora Rubber Soul seja um excelente disco por conta própria, e já era a seu modo um relativo arranha-céu dentro da música pop (e da própria obra dos Beatles), a distância entre estes dois discos parece imensa, a menos que, como Ray Newman, a gente lembre o compacto com “We Can Work It Out” e “Day Tripper”, lançado em dezembro de 1965, e depois o compacto com “Rain” e “Paperback Writer”, em junho de 1966. Estas quatro faixas cobrem com perfeição o terreno intermediário entre Rubber Soul e Revolver, mostrando o quanto a evolução dos Beatles era incessante, quase uma coisa mês a mês. Basta lembrar também que entre Revolver e Sgt. Peppers foi lançado outro compacto que caiu como uma bomba atômica: “Penny Lane” e “Strawberry Field Forever”, em fevereiro de 1967. Eram assim os anos 1960, meus amigos. O tempo em que obra-prima era sinônimo de sucesso financeiro.

1059) Luiz Orlando (8.8.2006)




No dia em que escrevo, a sexta-feira, 4 de agosto, desde cedo não param de chegar emails de amigos do Brasil inteiro, todos com a mesma triste notícia: morreu em Salvador o cineclubista Luiz Orlando da Silva. 

Não procurem nos jornais: ele não era um cara famoso. Orlando, como sempre o chamei, era uma formiguinha incansável da luta cineclubista, viajando a Bahia inteira, exibindo e debatendo filmes, fundando cineclubes, organizando encontros e festivais, carregando o imenso piano invisível onde os cineastas executam seus concertos. 

Conheci-o em 1973, quando comecei a freqüentar, juntamente com José Umbelino e Romero Azevedo, a Jornada de Curta-Metragem organizada por Guido Araújo em Salvador. Orlando era o braço direito de Guido lá no Clube de Cinema da Bahia. Era um neguinho franzino, de cabelo curto, óculos de grau numa armação prateada, puxando um pouco da perna, mas sempre em movimento, sempre incansável, sempre com uma pilha de livros, revistas e jornais embaixo do braço. 

No Instituto Goethe, onde funcionava o Clube, era o faz-tudo. Era ele quem ia ao aeroporto, tanto para pegar as latas de filme quanto para recepcionar os convidados da Jornada. Ia à Censura Federal levar a programação, resolvia os pepinos nos hotéis, levava o material para a imprensa (não havia fax ou email). 

Quando fui morar em Salvador e trabalhei no Clube, depois de 1977, nos revezávamos na sala de projeção, na bilheteria, na burocracia, na organização dos intermináveis debates (cineclubista adora debater). Orlando tinha sempre uma referência obscura a respeito de qualquer assunto. Era uma edição espanhola dum livro de Eisenstein, um artigo sobre Glauber saído na Itália, uma crítica do filme mais recente de Wim Wenders. 

Generoso, solidário, conhecia todo mundo em Salvador, sabia a cidade de cor. Qualquer problema, eu me socorria dele, que dizia: “Deixa comigo, eu conheço um cara em Brotas (ou na Barroquinha, ou no Garcia...) que quebra esse galho rapidinho...” Era nosso anjo da guarda. 

Vi-o pela última vez há poucos anos, quando fui dar uma palestra no Instituto Goethe e ele foi me buscar no aeroporto. Demos um abraço apertado e eu falei: “Tá vendo como é a vida, Orlando, agora eu sou um senhor grisalho, e o cabeludo é você...” Ele estava usando umas tranças rastafari que lhe caíam nos ombros, e morreu de rir. Somente agora, nos obituários, fiquei sabendo que era cinco anos mais velho que eu. 

Nas belas cenas iniciais de Os Sonhadores, Bertolucci e o roteirista Gilbert Adair dizem que os verdadeiros cinéfilos gostam de ver os filmes lá na fila da frente, para receberem as imagens antes do resto da platéia, antes que as elas cruzem todas as filas e, voltando a ser do tamanho de um selo postal, voltem para dentro do projetor. Eu sou assim. Orlando também. Ele não agüentou esperar e foi ocupar seu lugar reservado na Cinemateca Universal, foi ver os filmes do futuro, no lugar onde esses filmes estão sendo feitos.







1058) O Livro dos Salmos irlandês (6.8.2006)


(O Livro dos Salmos)

Era uma tarde plúmbea e tempestuosa naquele recanto remoto da Irlanda. Um monge recurvo caminhava pela charneca, pensativo, sobraçando seu livro dos Salmos de Davi. Corria o ano de 1006. O Milênio, com seus presságios e portentos, tinha vindo, e tinha passado. E o mundo continuava existindo. Os céus não se tinham aberto para dar passagem a legiões de anjos com espadas flamejantes. A única ameaça aos que ali moravam eram as imprevisíveis incursões dos vikings, que desembarcavam na costa e rompiam pelo território adentro, deixando atrás de si uma trilha de incêndios e vilas saqueadas.

O monge sentou-se numa pedra, abriu o livro no seu Salmo preferido, e leu em silêncio: “Quão amáveis são os teus tabernáculos, Senhor dos exércitos! A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne se regozijam no Deus vivo”. O vento agitava as urzes e as samambaias; ao longe, ouvia-se o balido das ovelhas que um pastor trazia de volta ao aprisco.

Vozes roufenhas fizeram o monge erguer os olhos do texto: na crista da colina mais próxima, ele avistou uma horda de guerreiros imundos e barbudos, com escudos enlameados, que descia a trilha em sua direção. O coração começou a saltar-lhe dentro do peito. Não temia pela sua vida: temia a destruição daquele manuscrito que imprudentemente costumava retirar da biblioteca do Mosteiro, para fazer-lhe companhia em seus passeios. Sem hesitação (porque já temera aquela cena, e por temê-la tinha se preparado para ela) envolveu o manuscrito em sua capa de couro, e, agachando-se, arrancou um pedaço da turfa espessa que cobria o solo. Ali, sob a camada vegetal em lenta decomposição, o precioso livro ficaria oculto para que viesse buscá-lo mais tarde, caso escapasse com vida.

Não sabemos se escapou. Sabemos que passaram-se os meses, os anos, os séculos. A Terra deu mil voltas em torno do Sol. Impérios e civilizações ergueram-se e ruíram. Os homens criaram máquinas insensatas e trovejantes, com as quais deixavam, atrás de si, trilhas de incêndios e metrópoles saqueadas. O mundo transformou-se numa colmeia fervilhante de maquinismos. Um destes maquinismos, um “bulldozer” da construção civil, estava revolvendo a turfa ressequida de um pântano, quando o homem que o manejava viu um objeto brotando daquela massa informe, e parou tudo para ver o que era.

A descoberta do Livro de Salmos do Pântano Irlandês (http://en.wikipedia.org/wiki/Irish_bog_Psalter ) foi considerada pelos arqueólogos o maior achado histórico feito na Irlanda nos últimos duzentos anos. Especialistas estão tentando recuperar e descolar as 20 páginas do manuscrito. Protegido do sol e do excesso de umidade, seu texto latino ainda pode ser lido, mil anos depois. Porque está escrito: “Até o pardal acha casa para si, e a andorinha ninho para si, onde possa criar os seus filhotes: junto aos teus altares, Senhor dos exércitos, Rei meu, e Deus meu”.

1057) “Love The Beatles” (5.8.2006)



Toda a imprensa brasileira está noticiando e celebrando a chegada ao país do Cirque du Soleil, com seu espetáculo “Saltimbanco”, que ficará em cartaz no Rio e São Paulo. Deve ser um espetáculo brilhante, a julgar por tudo que já vi do grupo na TV, nos últimos dez anos. Mas o que eu pagaria qualquer preço para ver não é esse espetáculo (o Cirque tem um repertório permanente de vários espetáculos, encenados por vários grupos simultaneamente). É o que está em cartaz no hotel The Mirage, de Las Vegas, intitulado “Love the Beatles” (assistam o trailer em: http://www.cirquedusoleil.com/CirqueDuSoleil/fr/showstickets/love/intro/intro.htm)

A obra dos Beatles parece aquelas bolsas mágicas que aparecem nos folhetos de cordel, nas quais basta meter a mão para tirar punhados e mais punhados de um dinheiro inesgotável. “Love” é o resultado mais recente desta magia. O espetáculo ocorre num espaço com 360 graus: o público fica no centro, rodeado por projeções em telas panorâmicas e pelos atores-acrobatas que encarnam personagens das canções dos Beatles. A trilha sonora é a experiência mais radical: Sir George Martin e seu filho Giles utilizaram as fitas originais dos discos do quarteto, remixando instrumentos e vozes numa colagem de sons que (segundo a imprensa) é de deixar zonzo qualquer beatlemaníaco. (E hoje os beatlemaníacos são muito mais numerosos do que quando os Beatles existiam).

O projeto surgiu da amizade entre George Harrison e o fundador do Cirque du Soleil, Guy Laliberté, e foi aprovado pela viúva de George, Olivia, bem como por Yoko Ono, Paul MacCartney e Ringo Starr. Dan Cairns, jornalista do “Sunday Times”, assim escreveu depois de ver um ensaio: “As harmonias vocais de ‘Because’ enchem o salão, misturadas ao canto de pássaros. Segue-se um ruído surdo e crescente, ao fim do qual ressoa o acorde inicial de ‘A Hard Day’s Night’; segundos depois, surge o crescendo da orquestra em ‘A Day In The Life’ mesclado com o solo de bateria de Ringo no final de ‘Abbey Road’, e tudo termina com a entrada do riff de guitarra de ‘Get Back’, tendo ao fundo a vibração da multidão de ‘Sergeant Pepper’”.

Esse tipo de coisa poderia resultar num samba-do-crioulo-doido, se eu não tivesse confiança total em George Martin, cujo bom-gosto e solidez musical teve um papel decisivo na carreira dos rapazes. Martin diz que na preparação de “Love” tanto MacCartney quanto Ringo o incentivaram a ousar mais, inventar mais. A colcha-de-retalhos musical traz ao palco os personagens das canções que todo mundo conhece: Lady Madonna, o Submarino Amarelo, o Homem Ovo, Lovely Rita, Lucy-in-the-Sky. Além da canção mais circense do grupo, “Being for the Benefit of Mr. Kite”, a interface perfeita entre a antologia sonora em que a música dos Beatles se transformou a partir de 1966 e o universo dos picadeiros e trapézios. Quem quiser torça o nariz, mas no dia em que esse espetáculo vier ao Brasil eu vou acampar na porta do guichê.

1056) A oposição ideal (4.8.2006)



A vantagem da democracia é a existência de uma Oposição livre, sem censura, sem repressão policial, uma Oposição aparelhada para criticar, e sem bloqueios institucionais que a impeçam de investigar e denunciar trambiques, falcatruas, sanguessugas, propinodutos e mensalões. A desvantagem da Democracia é que de vez em quando, pelas idas-e-vindas da política, a Oposição chega ao poder, e a primeira coisa que faz é deixar no capacho de entrada do Palácio todo o seu discurso, todas as suas promessas e ameaças, todos os seus valores e princípios. A Oposição só existe do lado de fora dos Palácios. É como num conto de fadas: o Príncipe que vai matar o Ogre cruza o limiar da porta do castelo, chega no salão, se olha num espelho, e percebe que agora o Ogre é ele mesmo.

PMDB, PFL, PSDB, PT, PDT... Por mais que se multipliquem as siglas partidárias refletindo a divisão de Poder em nosso país (agora apareceu até um tal de PCC, que parece que manda mais do que os outros) a verdade é que vivemos num bi-partidarismo simbólico entre partidos do Governo e partidos da Oposição (com a ressalva de casos como o PMDB, que sempre dá um jeitinho de sobreviver com um pé lá e outro cá). Quando o PT estava na Oposição, abria fogo cerrado contra numerosas práticas do governo do PSDB. Depois de 2002, quando a situação se inverteu, inverteu-se também o discurso de ambos: os tucanos, agora do lado de fora do Palácio, denunciam tudo de errado que acontece ali, como já acontecia durante seu reinado. O PT, agora do lado de dentro, adota o mesmo discurso ufanista, auto-glorificatório e não-me-toques que era uma especialidade tucana. “E la nave va”.

Vejo muita gente dizer: “Ah, eles falam isso, mas têm o rabo preso, quando estavam no Poder faziam a mesma coisa, quando voltarem ao Poder vão fazer de novo o que criticam agora, não são melhores do que ninguém...” Política, colegas, não é simplesmente esse campeonatozinho entre dois grupos, para ver “quem chega lá primeiro”. Política é a escolha de quem vai administrar o Tesouro público, o dinheiro do Povo (o que já não é pouco); e é também a disputa para escolher quem vai representar o nosso conceito de nacionalidade, nossa auto-imagem como povo.

Quando elegemos alguém estamos passando um cheque em branco, estamos dando carta-branca, procuração com plenos poderes para alguém agir em nosso nome. Fazer oposição é tão sério quanto governar. Não importa se o Opositor tem rabo preso. A crítica ao Governo não tem que servir simplesmente para comparar suas qualidades com as qualidades da Oposição. A crítica deve ser feita em função de um ideal de ética e honestidade que esteja acima de todos: do governo, da oposição e de todos nós, acima até do próprio povo. Se até um presidiário (quanto mais um político suspeito) aponta corretamente um erro do Governo, pouco importa o que o presidiário fez, pois não é com ele que o Governo está sendo comparado, e sim com o que o Governo deveria e poderia ser.

1055) Delenda Cartago (3.8.2006)


(ruínas de Cartago)

“Delenda Cartago!” é uma frase latina que significa “Cartago deve ser destruída!”, ou, mais modernamente, “Deletem Cartago!” Era uma frase de Catão, político romano que defendia a destruição da cidade africana devido à ameaça econômica e bélica que ela representava para Roma. A campanha surgiu durante as Guerras Púnicas, três guerras sucessivas ocorridas ao longo de um século, até que o exército romano sitiou a cidade, invadiu-a, degolou todo mundo, incendiou, e depois espalhou sal sobre as ruínas. Naquele tempo não tinha esse negócio de ONU ou Convenção de Genebra para atrapalhar uma guerra.

“Delenda Cartago” é também o título de um dos poemas épicos mais belos da língua portuguesa, escrito por Olavo Bilac: “Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontes do céu da África...” Bilac descreve em alexandrinos cinemascópicos o cerco, e reproduz alguns dos mitos que cercam essa batalha tão famosa quanto a do Cerco de Tróia: a de que quando os arcos dos defensores tinham suas cordas partidas de tanto disparar flechas, as mulheres cartaginesas cortavam seus longos cabelos para fabricar novas cordas e defender a cidade. Vocês gostam daqueles filmes épicos-históricos de David Lean, Eisenstein, Ridley Scott? Leiam Bilac.

A frase de Catão ficou na História, contudo, como um dos “bordões” mais famosos da política. “Bordão”, na gíria dos redatores de TV, é aquela frase que um personagem repete o tempo inteiro, e que se torna sua marca registrada: o professor Raimundo dizendo “E o salário, ó...”, ou Didi Mocó dizendo “É muita cafusão, eu tô muito cafuso...” O bordão do político romano era na verdade uma frase mais longa: “Ceterum censeo Carthaginem esse delendam”, algo como “olha, eu não sei não, mas por mim, essa tal de Cartago deveria ser passada-no-rodo o quanto antes”. Ele a repetia ao fim de todos os seus discursos, mesmo que o tema deles fosse o custo de vida ou a vitória do Flamengo na Copa do Brasil.

Catão mostrou o quanto é importante a repetição de uma ordem até que ela seja obedecida. Catão maltratou, martelou, massacrou os ouvidos do Senado romano durante anos com essa frase. Cravou-a como um prego no juízo de cada um dos seus concidadãos. Transformou-a num clichê da época, num lugar-comum, num bordão repetido por todos. Conseguiu impô-la como verdade, como mandamento, como Uma Lei da Natureza. E Cartago foi destruída.

Foi uma batalha de um homem só, e uma batalha heróica (não discutirei aqui se Cartago era boa ou ruim, se merecia ou não o ferro, o fogo e o sal). Ela ficou como exemplo para os atuais Senhores da Guerra, e seus bordões. “O Iraque deve ser invadido”, dizem uns. “Israel deve ser destruído”, bradam outros. Para nós, que somos neutros nessas guerras, são bordões insensatos. Para eles, que cresceram com esse “loop” girando eternamente em suas consciência, é algo que não lhes ocorre discutir. É uma Lei da Natureza. Precisa ser obedecida.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

1054) Dylan e Pynchon (2.8.2006)



Nenhum outro órgão da imprensa mundial publicou até hoje esta conclusão cristalina e óbvia, para quem se disponha a observar os fatos: Bob Dylan e Thomas Pynchon são uma e a mesma pessoa. Ambos são reclusos e rodeados de mistério. Ambos têm uma linguagem barroca, intrincada, repleta de referências culturais esotéricas, e com imagens extremamente vívidas, inesquecíveis. Ambos tem um estilo labiríntico de contar histórias. Ambos mergulharam fundo na história e na cultura dos EUA e do Século 20 em geral.

A pista que desencadeou meu raciocínio foi o fato de que o grande romance de Pynchon O Arco-Íris da Gravidade, de 1973, foi dedicado a Richard Fariña. Fariña foi um músico e poeta boêmio do Greenwich Village que morreu aos 29 anos, num acidente de moto, na noite do lançamento de seu único romance, Been Down So Long It Looks Like Up To Me (“Tô Por Baixo Há Tanto Tempo Que Acho Até Que Tô Por Cima"). Num prefácio que fez a uma reedição deste livro (Penguin, 1983), Pynchon lembra que era editor do jornalzinho da Universidade de Cornell e publicava os contos e poemas enviados por Fariña, a quem descreve: “Sem paletó, sem gravata, com mais cabelo do que estava na moda, sempre andando com a mesma turma; quieto, mas intensamente presente, checando tudo”. Depois, Fariña e Dylan foram parceiros de boemia no Village, e formaram um quarteto famoso namorando duas irmãs cantoras chamadas Mimi e Joan Baez. As aventuras do quarteto e de sua geração estão contadas no livro Positively Fourth Street: the Lives & Times of Joan Baez, Bob Dylan, Mimi & Richard Fariña de David Hajdu (2001).

Bem, para mim é prova bastante de que Pynchon (que nunca deu entrevistas, e de quem só se conhecem duas fotos) é um heterônimo de Dylan. Até os períodos de silêncio dos dois coincidem. Agora, a imprensa anuncia para este mês de agosto o CD de Dylan Modern Times, seu primeiro disco com material original desde 2001. Seth Rogovoy, um dos poucos críticos que tiveram acesso ao disco, disse: “Tem referências diretas ao 11 de setembro; muitas referências à religião e à moral. É um disco cru, doloroso, e no final o mundo literalmente se acaba”.

E em dezembro será lançado o novo romance de Pynchon, intitulado Against the Day, e que será seu primeiro livro desde Mason & Dixon de 1997. O irônico resumo de Against the Day que a editora Penguin vazou “involuntariamente” para a imprensa dias atrás, ao que parece escrito pelo próprio Thomas Pynchon, diz: “Com uma catástrofe de proporções mundiais emergindo no horizonte para daqui a alguns anos, este é um tempo de corporações insaciáveis, falsa religiosidade, irresponsabilidade imbecil, e más intenções entre as elites do Poder. Nenhuma referência aos tempos de hoje é intencional ou deve ser subentendida”. Precisa de mais provas de que é um cara só? Eu não acredito que o mundo tenha a sorte de contar com DOIS caras que falem nesse mesmo tom.

1053) Caminhando pelo convés (1.8.2006)



Ano de eleições presidenciais é sempre aquela ocasião em que a gente se pergunta se aquilo tudo vale a pena. Se vale o esforço de tomar banho, trocar de roupa, pentear o cabelo, pegar o ônibus, esperar na fila, entregar o título, ir para a cabine, gastar a tinta de um X – ou, mais modernamente, apertar aqueles botõezinhos da urna eletrônica, pegar o ônibus de volta e imaginar que com isto contribuiu para mudar o rumo da História. Dizem os entusiastas da Democracia Republicana que toda eleição é ganha por um voto, e os milhões restantes são desnecessários e redundantes. Tem sua lógica, mas não resolve o problema, porque os votos não são assinados, e ninguém pode me provar que o voto decisivo foi o meu.

Por que esse desalento? Dizem por aí que não adianta votar, porque todo político é desonesto. Eu não acho. Conheço pessoalmente um grande número de políticos, de vários Partidos e tendências, em cuja honestidade pessoal acredito. Não acho que os políticos brasileiros sejam mais desonestos do que, por exemplo, nossos industriais, nossos artistas, nossos banqueiros, nossos futebolistas, nossos policiais, nossos jornalistas, nossos fazendeiros. Mesmo os que roubam, não devem roubar o tempo inteiro. Na hora do aperto, cada qual puxa a brasa mais para perto de sua sardinha, procurando não exagerar para não dar na vista. Cada qual mexe os pauzinhos que tem à disposição; cada qual pega o telefone, ativa seus contatos, tece com sua voz e sua influência mais uma dúzia de fios numa imensa teia de interesses, uma teia tão complexa que cada um deles julga estar no centro. Nem sempre há uma relação direta entre um telefonema para Fulano e um dinheiro que pinga na conta. Dá tempo suficiente do cara se convencer de que uma coisa não teve nada a ver com a outra.

Este ano, vamos trocar de Presidente, de novo. Adianta? Não sei. É como trocar o capitão de um transatlântico, sendo que a tripulação anterior permanece, e a empresa dona do navio é a mesma. Na Democracia Republicana, manda quem pode, e obedecem os Presidentes que têm juízo. O Presidente é um ator, cercado por uma equipe que escreve seu texto, dirige sua performance, e passa 24 horas por dia adulando-o, convencendo-o de que ele manda, em vez de ser mandado. Vejam o máscara alvar de George Bush, a figura angustiada e turbulenta de Nestor Kirchner, a postura soturna e bem ensaiada de Vladimir Putin, a persona bonachona e televisiva de Jacques Chirac... Vocês acreditam que algum desses canastrões manda em alguma coisa?

Políticos honestos existem, e muitos. Entram no transatlântico achando que de algum modo conseguirão tomar de assalto a ponte de comando, coagir a tripulação à base do chicote e da promessa... “E la nave va”. O navio segue na mesma direção. O Presidente pode ir na direção oposta, mas estará apenas andando pelo convés. Vai chegar a um ponto em que, ou ele pára de andar e segue com o navio, ou então pula na água.

1052) Nós e vós (30.7.2006)



Vós que me ledes, caros leitores, deveis saber que um sujeito na minha posição recebe uma quantidade enorme de poemas. São livros, revistas, emails, o escambau. Uma tendência que tenho observado nos poetas de hoje é o uso dos pronomes “tu” e “vós”, geralmente de maneira equivocada. A segunda pessoal do plural é uma área pronominal em franco desuso e decadência, só chamada a intervir quando se trata de discursos parlamentares, ofícios burocráticos ou romances históricos. Aí pergunto: por que motivo, caros colegas, insistis em usar esses pronomes, quando torna-se evidente que não tendes a menor familiaridade com eles?

Acho que a principal razão para que lanceis mão de um tratamento tão obsoleto é o afã de conferir ao vosso discurso um tom de nobreza, de pompa, um vocativo formal e hierático capaz de evocar ao leitor um tempo ido, um mundo passado onde as fórmulas de respeito não eram mero clichê retórico. Procurais assemelhar-vos (mesmo que estilisticamente) aos protagonistas dessa era remota, porque percebeis (e repelis) o tom escrachado e frívolo dos tratamentos de hoje, com sua galhofa impudente, sua fingida intimidade entre interlocutores. Entendo e aceito, mas advirto: examinai bem vossas Gramáticas empoeiradas, recorrei ao Google quando necessário, insisti junto aos mestres, mas tende piedade dos leitores mais sensíveis.

Dias atrás li um poema que dizia assim: “Ide, poeta! Consintais que a vida te procure!” Meu caro e anônimo autor! Estás tão dividido e dilacerado quanto aquela dupla de irmãos siameses indo ao Fla-Flu no Maracanã. Ou bem te diriges ao poeta com a intimidade propiciada pelo “tu”, ou com o distanciamento e respeito implícito no “vós”. E olha que ainda estamos apenas no plano da intenção inicial, porque a forma usada no teu verbo, “consintais”, salta da frase como o bigode da Mona Lisa de Marcel Duchamp. Estuda! Treina os verbos mais traiçoeiros. Inventa para ti próprio um exerciciozinho como este, destinado a flexionar teus neurônios gramaticais. Tu os tens, e não são poucos. Precisam apenas de algo que só tu lhes podes fornecer: exercício. Mas não vás adiante de ti mesmo. Usa apenas o que sabes usar. O poema não é o território adequado para tentares pela primeira vez um tipo de elocução ao qual não te acostumaste. Consola-te pensando que todo mundo erra, eu primeiro que todos.

Vou mais além. Vós todos, Brasil afora, que vos acostumastes à estreita gama de tratamentos da linguagem coloquial da indústria-de-massas, devíeis freqüentar de quando em vez um “spa” com o nome de “Seminário de Português Aplicado”, do qual só sairíeis quando soubésseis conjugar, na ponta da língua, os verbos mais abstrusos. Mas se achais (como bem podeis) que tudo isto não vale a pena, basta continuardes empregando o feijão-com-arroz do você e do vocês. Não são anti-poéticos. Qualquer coisa pode ser poética, se souberdes usá-la com beleza, propriedade, criatividade, e, acima de tudo, bom-senso.

1051) Arte inflável (29.7.2006)



Maurice Agis é um artista britânico que desde 1970 trabalha em instalações interativas, espaços onde o público penetra e entra em contato com experiências sensoriais de vários tipos. Há poucos anos ele inaugurou uma obra chamada “Dreamspace”, uma enorme construção com cinco metros de altura e 2.500 metros quadrados de área, composta de mais de cem “aposentos” (células de plástico inflável ligadas por corredores). À entrada o público tira os sapatos, veste batas coloridas, e pode ficar lá dentro o tempo que quiser. Em cada aposento há efeitos de luzes coloridas, música “new age”, etc.

Disse o artista sobre o Dreamspace: “O espaço não é algo que você contempla: é algo que se experimenta. E o tempo não é algo que se experimenta: é algo que se contempla”. (Eu acho exatamente o contrário, mas afinal, Arte consiste muitas vezes em inverter o óbvio.) Maurice Agis diz: “A presença humana em meu trabalho é fundamental para que ele faça sentido”. A obra não é um objeto para ser admirado de fora: é um ambiente onde se deve entrar, circular, demorar-se, interagir.

Os frequentadores, quando saem, deixam num livro de visitas seus testemunhos: “Uma explosão maravilhosa de cores, uma experiência psicodélica... – Ver crianças saltando e homens adultos rodopiando me fez chorar, não sei se as lágrimas eram por um mundo já esquecido ou por um mundo recordado e trazido de novo à vida... – Inacreditável, único, cheio de paz – se existe um Céu, esta obra de arte não está longe dele”.

Pois bem: dias atrás, o Dreamspace, que estava montado num parque em Durhan, desprendeu-se das cordas que o mantinham ancorado ao chão e elevou-se verticalmente, cheio de gente no seu interior. A enorme estrutura tinha um engenhoso sistema de ventilação interna, controlando as correntes de ar em seu interior e evitando que elas a impulsionassem para cima. Algo deu errado. O Dreamspace partiu as amarras, elevou-se como um balão desgovernado, e foi arrastado pelo vento até a extremidade do parque, só não prosseguindo rumo ao rio porque ficou providencialmente enganchado em alguns postes e árvores. Mesmo assim, a imensa estrutura pendeu, tombou, derramando gente lá de cima como se fossem caroços de feijão. Duas mulheres morreram. Uma criança está em estado grave. Há dezenas de feridos.

Muito cruel, especialmente se considerarmos que a polícia trabalha com a hipótese de sabotagem: alguém poderia ter afrouxado uma das cordas de sustentação, o que aumentou a pressão sobre as outras. É irônico e trágico que uma obra voltada para a paz, o alto astral, o relaxamento das tensões, acabe se revelando tão vulnerável. Maurice Agis (que segundo a imprensa estava presente ao local, e ficou arrasado com o que aconteceu) afirmou certa vez: “Minha obra é uma ação na qual os cidadãos podem se encontrar e interagir para criar uma consciência maior da realidade”. De certa forma, e uma forma muito dolorosa, foi exatamente o que aconteceu.

terça-feira, 26 de maio de 2009

1050) A Cidade do Sexo (28.7.2006)



Apareceu aqui no Rio de Janeiro mais uma dessas idéias megalomaníacas que sob a manta protetora da “geração de empregos” e do “potencial turístico” propõem fazer algumas dezenas de milhões de reais trocarem de mãos, molhando generosamente, na passagem, as mãos dos envolvidos. É uma tal “Cidade do Sexo”, uma estrutura vagamente fálica, que lembra, pelas fotos que vi, dois espermatozóides copulando (!). Não é um projeto oficial ainda, é o trabalho de fim de curso de um jovem arquiteto. Mas um troço desse é um perigo numa cidade como o Rio de Janeiro, cuja dieta básica é um “fast-food” dos factóides publicitários, da badalação planejada.

Os defensores da Cidade do Sexo dizem que o Brasil é um país sensual, que o Rio de Janeiro é uma cidade erotizada, que somos um povo sem preconceitos, etc. e tal. Já que é assim (raciocinam) precisamos criar um mercado para isto, ainda maior do que o que já existe. Conversa fiada. O brasileiro e o carioca não são tão liberados e tão sem preconceitos como se apregoa. Não existe “o Brasileiro”, não existe “o Carioca”. Isso são clichês dirigidos, abstrações usadas por quem (no caso, imprensa e publicidade) tem alguma coisa a vender.

A Cidade do Sexo, um shopping com cabines para relações sexuais, consultórios de urologistas e proctologistas, museus de arte erótica, cinematecas de filme pornô, é o sintoma de uma espécie de stalinismo do prazer, um dos sonhos do Capitalismo Publicitário, que é quem que manda no Brasil. Centralização. Concentração. Investimento maciço. Criação de um espaço preferencial, valorizadíssimo, disputado a tapa e a dólar. Em vez do sexo livre, pessoal, anônimo, gratuito, doméstico, em vez do sexo das casas, o sexo do zé-das-couves com a maria-ninguém, o Poder (não o Governo, mas o verdadeiro Poder: o Dinheiro, cujo nome artístico é “o Mercado”) oferece essa visão grandiloqüente, disneyana, uma monstruosidade híbrida que concentra em si três prósperas máquinas caça-níqueis: Shopping Center, Termas e Motel.

Não estou sendo moralista, amigos. Sou até “docemente pornográfico”, como Drummmond. É que o sexo é uma coisa pessoal. Quem procura torná-lo faraônico não quer que o público areje os conceitos: quer que ele abra a carteira. Quer fazer o que já faz com este outro chamariz infalível, o Amor. “Amor” é uma palavra prostituta que serve para vender qualquer coisa para os carentes de amor real. Na TV, um marido surpreso exclama; “Meu Deus! Esta comida está muito gostosa! Foi feita com quê?” A esposa-cozinheira ergue o pote de Margarina XPTO e diz: “Com amor...” Sexo é a mesma coisa. O Rio de Janeiro já é conhecido mundialmente como a Cidade da Bunda. O que é falso. Os Cafetões do Mercado estão tornando o Rio mais e mais, a cada década que passa, a cidade da grana esperta, da sujeira maquilada, a cidade batatinha-de-isopor, a cidade da permissividade financiada, da promiscuidade compulsória, a cidade-isca ideal para os fabricantes de anzóis.

1049) Micro-arte (27.7.2006)




Não, não se trata de arte feita com o auxílio de micro-computadores. São obras de arte em miniatura, algo tão velho quanto obras de arte em escala faraônica. Se alguém disser um dia “É mais fácil a Estátua da Liberdade passar pelo fundo de uma agulha do que o Flamengo ser campeão brasileiro”, não acredite, porque Willard Wigan, um escultor de olho agudíssimo e mãos precisas, realizou a primeira destas proezas, o que pode ser verificado (junto a muitas outras façanhas) no endereço: http://www.willard-wigan.com/art.html

No fim do século 19, um tal de Schiller, preso por falsificação no cárcere de Sing Sing, foi encontrado morto. Revistado, descobriram com ele sete alfinetes, sendo seis de prata e um de ouro, com cabeças que mediam 1,17mm. Schiller passou os últimos 25 anos de sua vida gravando na cabeça de cada alfinete o texto completo do “Pai Nosso” em inglês, um texto com 65 palavras e 254 letras. 

Quando Bill Clinton era presidente dos EUA, um grupo de engenheiros puxa-sacos criou uma imagem mostrando a silhueta do presidente tocando sax. A imagem, com cerca de um centímetro quadrado, era composta de 287.900 minúsculos saxofones, cada um deles com cerca de 6 a 8 milionésimos de metro, o tamanho de um glóbulo vermelho do sangue. As imagens, contudo, eram formadas pela superposição de camadas planas, praticamente bi-dimensionais. 

Coube a engenheiros da Universidade de Osaka (Japão) a criação da menor escultura tridimensional do mundo, um pequeno touro medindo 10 por 7 micrômetros, esculpido em plástico com raios laser. 

No reinado de Elizabeth I da Inglaterra um artífice de nome Mark Scaliot fabricou uma corrente de ouro, com 43 elos; fabricou para ela um cadeado com onze peças de ferro, aço e latão, além de uma chave. A corrente foi então colocada, e fechada, em torno do pescoço de uma pulga, que conseguia arrastá-la sem muito esforço. 

Tá bom, chega de “Você Sabia?”. O propósito deste artigo é teorizar que existe, no campo da Estética, uma região onde o objetivo não é a Beleza, nem o Sublime. Existe uma região da Arte (vizinha ao distrito do Artesanato) onde a manipulação do conceito de Tamanho, Dimensões, etc. é muito mais importante do que o Belo. 

As instalações de Christo, aquele artista que “embrulha” prédios e pontes; as esculturas monumentais como as do Monte Rushmore; os concertos de John Cage, previstos para durar séculos; tudo isto são obras de arte onde o conceito de dimensões e tamanho é o ponto crucial. 

A micro-arte brota daí, embora nesta caso o resultado ainda se mantenha no campo do Artesanato, até mesmo pela dificuldade de transformar o produto final em algo acessível, compartilhável por um público. Não é uma simples demonstração de malabarismo e proficiência técnica. É uma tentativa de impor o espírito humano, a linguagem humana, em domínios (o Micro e o Macro) que parecia vedado aos humanos, mas que a ambição faustiana desses artistas consegue invadir.






1048) O detetive Freud (26.7.2006)




(Ilustração: Nerilicon)

Um amigo meu dizia: “Freud foi o maior antropólogo do mundo”. Já vi uma crítica a Freud dizendo que ele era um sujeito que, baseado numa premissa falsa, construiu um edifício de deduções impecavelmente corretas. Várias pessoas, inclusive eu mesmo, já tentaram indicá-lo para o Prêmio Nobel de Literatura. 

Certas ou erradas as suas premissas, poucos sujeitos de obra densa e difícil terão sido tão absorvidos pela cultura-de-massas, pela linguagem cotidiana. Todo mundo hoje em dia fala em trauma, em complexo, em neurose, em inconsciente; e todo mundo acha que sabe perfeitamente do que está falando.

Freud foi o primeiro grande detetive de nossa era, ao lado do seu contemporâneo Sherlock Holmes. 

As duas figuras já foram comparadas por muita gente, e aconselho a todos o divertido filme de Nicholas Meyer, Uma Solução Sete por Cento (1976), onde Holmes (Nicol Williamson), sofrendo com o vício da cocaína, é levado por Watson (Robert Duvall) a Viena para se consultar com o jovem e desconhecido Dr. Sigmund Freud (Alan Arkin). Eles acabam se envolvendo e agindo juntos numa trama de crime e mistério, onde os poderes dedutivos de Holmes se somam à percepção psicológica de Freud.

Lendo ensaios como “Leonardo da Vinci e uma Memória de Infância”, onde ele compara um quadro de Leonardo a um trecho de seus diários, não há como não visualizar Freud, sentado à noite, na solidão do gabinete, numa poltrona dentro do círculo de luz de uma luminária, tendo ao lado o cachimbo, e nas mãos um álbum com reproduções das pinturas de Leonardo. 

De quando em quando ele se levanta, vai à estante, localiza um livro, volta a sentar, lê durante trinta ou quarenta minutos, tomando notas num papel. Depois volta a contemplar as pinturas, recorre a outro livro, a dois, a três, em busca de uma informação fugidia, tentando comparar diferentes versões de um fato, ou diferentes interpretações de um detalhe. Noite adentro, o olho do detetive olha para aquela imagem que todos já viram, e vai descobrindo ali algo que ninguém tinha enxergado.

O psicanalista, como o detetive, é um sujeito que trabalha por indução e por dedução. Ele se depara com três ou quatro indícios aparentemente desconexos e sem sentido. Examinando-os, pensando bem, ele esboça uma primeira hipótese para justificar a presença daqueles dados contraditórios. Com a hipótese formulada, ele volta ao “local do crime” em busca de outros indícios que, caso a hipótese seja verdadeira, deverão estar ali. 

Neste processo, ele oscila entre a imaginação criadora, que formula a hipótese, e a observação dos fatos, o grande teste, o rochedo implacável onde tantas belas teorias acabam se espatifando. 

Freud e Sherlock Holmes são dois picos vizinhos da grande cordilheira da racionalidade do final do século 19, que talvez tenha sido o ponto mais alto da Razão humana em nossa época, antes do mergulho, no século 20, nos princípios da Indeterminação, do Relativismo, da Incerteza e do Caos.





1047) Heloísa Helena (25.7.2006)



Fiquei sabendo pela imprensa que o furacão Heloísa cruzou o território paraibano no sentido sertão-litoral, causando mais alvoroço do que “El Niño”, o que é compreensível numa terra de brisas mansas como a nossa. Dias atrás a imprensa revelou pesquisas eleitorais mostrando que em um mês a senadora do P-Sol pulou de 6% para 10% nas intenções de voto.

Heloísa está atraindo para si todos os eleitores que acreditaram no discurso do PT anos atrás. Para muita gente é um discurso raivoso, ressentido, cheio de santimônia, um discurso arrogante que diz: “Todo mundo é ladrão, todo mundo é corrupto, menos eu, que sou superior a todos”. Foi a desmoralização deste discurso durante o escândalo do mensalão que esfrangalhou a imagem do PT (para muitos, de forma irremediável).

Não sei se terá chances de ser eleita. Talvez, por que não? Erundina não foi? O problema é que hoje em dia mesmo os discursos mais veementes, mais moralmente sinceros, acabam se transformando em jogada de marketing. Se a campanha de Heloísa decolar, vai começar o marketing. Nomeiam logo um Assessor Retórico que vai dizer: “Use linguagem que o povo entenda, não fale economicamente desfavorecidos, fale mendigos”. Aí chega um Assessor Estratégico: “Não bata em Alkmin, Lula já está tirando os votos de Alkmin, bata em Lula”. E um Assessor de Visual: “Encomendei trinta jeans desbotados e consegui uma confecção que fabrica camisas-sociais já com as mangas arregaçadas, um-lu-xo!”

Um amigo meu, tucano até a medula, esnobou HH: “Parece uma professora primária”. Excelente definição para quem pisa e repisa alguns mandamentos primários: não pode roubar, não pode mentir, não pode favorecer, tem que saber administrar. Ficaremos sabendo nos próximos meses quantos brasileiros gostariam de viver num Brasil com a brava Heloísa na presidência. O que mais gosto dela é a atitude decidida, sem papas na língua, o jeito de mulher nordestina braba que só uma capota, aquela mulher-de-morador que escuta uma piadinha do senhor de engenho e volta em cima dos pés, passa-lhe uma descompostura de dedo em riste na frente de todo mundo, e ai dele se fizer cara feia.

No primeiro ano do governo Lula, quando o PT começou a fazer conchambranças a torto e a direito, um grupo de petistas insurgiu-se contra isto, e foi expulso. Os três mais notórios eram a senadora Heloísa, mais os deputados Babá (aquele que tem um cabelo que dá no meio das costas) e Luciana Genro. Na época, propus um mote em martelo agalopado a alguns amigos repentistas: “Heloísa, Babá e Luciana: / isto é tudo o que resta do PT!” Foi muito antes do escândalo do mensalão. O trio saiu do PT e fundou o P-Sol, partido minúsculo com um nome que parece nome de detergente, mas isto talvez tenha até um simbolismo freudiano. Se deixarem o P-Sol chegar ao poder, pode ser que ele desintegre com raio-laser estes cinco séculos de sujeira acumulada. Ou então faz como fez o PT. E a vida continua.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

1046) “Bandeira Nordestina” (23.7.2006)



Chega às minhas mãos o novo livro+CD de Jessier Quirino, Bandeira Nordestina. Jessier está ampliando o seu raio de ação, que começou nos livros e passou aos recitais (ou terá sido o contrário?) e agora já chega à gravação de CDs e à realização de shows em que música e poesia se misturam. Na tradição de Zé da Luz, Catulo da Paixão Cearense, José Laurentino, Chico Pedrosa, Jessier é o grande poeta regional de sua geração (que é a mesma minha), e tem trazido para este estilo de poesia uma contribuição própria, um modo de escrever próprio, que é o que distingue os grandes poetas. Eles não apenas assimilam tudo que foi feito antes, mas abrem novos caminhos para o que virá depois.

Eu sempre tive um problema com certo tipo de poesia matuta em que o poeta parece interessado apenas em estropiar a língua, em convencer o leitor de que a principal característica dos matutos é serem intelectualmente simplórios, e incapazes de falar e escrever português. Eu acho o contrário. O matuto comete erros, claro. Os diplomados também (ai das revistas e dos jornais brasileiros se não existisse um exército de revisores consertando os nossos solecismos!). O que distingue o matuto (e nisto a poesia de Jessier é exemplar) é sua capacidade fabulatória, de criar historinhas do nada, e alegorias a partir dos menores acontecimentos; sua visão crítica e irônica quanto aos costumes “da cidade”; sua percepção intuitiva das motivações por trás dos atos humanos; sua inesgotável capacidade de se maravilhar diante de coisinhas bobas da Natureza e da vida cotidiana; seu talento para injetar lirismo e filosofia em tudo que expressa o modo de vida rural, seus ofícios e lazeres, suas tradições e valores.

O que aos urbanos menos informados soa como erro-de-português é muitas vezes arcaísmo, ou modo de falar específico de uma comunidade rural, tão legítimo quanto o das comunidades urbanas (futebolistas, músicos, técnicos em informática, etc.). Sem falar nos neologismos, das derivações pessoais produzidas pela imaginação do poeta. É neste detalhe que Jessier se afasta um pouco dos poetas citados acima e se aproxima estilisticamente de poetas como Manuel de Barros ou prosadores como Guimarães Rosa, sempre dispostos a recombinar sufixos e prefixos, derivações por semelhança, conjugação verbal de substantivos, substantivação de adjetivos e assim por diante.

Neste livro mais recente há obras-primas de elegia rural como “A Cumeeira de Aroeira Lá da Casa Grande”, retratos da cultura regional como “Endereço de Matuto”, “O Dizido das Horas do Sertão”, numerosas e ferinas sátiras políticas. E há principalmente poemas românticos e maliciosos, cheios de verve e de finura descritiva: “Maria Pano de Chão”, “Fé Menina”, “A Cor dos Beicinhos Dela”, “Dois Brincos Recém Tirados”. A poesia matuta, como eu a entendo, é tão variada e cheia de sutilezas quanto a poesia urbana. É a mesma orquestra sinfônica, só que com outros instrumentos.

1045) Rolando o lero (22.7.2006)




Juvêncio é um quase-vizinho cujo sucesso profissional acompanhei de perto, visto que nos encontramos com freqüência na mesma padaria, na mesma agência bancária, no mesmo botequim. 

Juvêncio exerce a nebulosa função de “produtor cultural”, sempre a braços com projetos que vão de musicais para o teatro até gravação de CDs evangélicos, de simpósios sobre psicanálise até festas de debutantes. 

Solteiro, morava, quando o conheci, num quarto-e-sala modesto, mas agora mora numa das melhores coberturas das redondezas e acaba de comprar, “na planta”, afiançou-me, um apartamento na Barra com quatro suítes.

Juvêncio é um dos expoentes de uma cultura que, aqui no Rio, se auto-define com o lema “quem não deve, não tem”. Dias atrás compartilhamos no bar alguns chopes, acompanhados por cubinhos de provolone espetados em palitos, e Juvêncio saiu-se com esta pérola: 

-- Adoro essas coisas pobres. O pessoal diz que eu sou esnobe, mas eu também sou sentimental, adoro me lembrar daquele tempo quando a gente se conheceu, quando a gente vinha aqui, como dois pés rapados. 

Lembrei-lhe que eu continuava a “vir ali”, e continuava pé rapado, e ele rebateu: 

-- Que é isso, BT. Você é poeta, é paraíba... Tem mais é que gostar dessas coisas mesmo.

O sistema que mantém Juvêncio à tona é simples. Ele ficou um tempo na pindaíba, sem poder pagar os seus numerosos cartões de crédito. No começo, pagava uns com os outros, numa prestidigitação financeira que nunca entendi, mas que ele me asseverou ser possível. Depois, chegou à conclusão de que era muito mais fácil acumular a dívida, fazer todo mês o famoso “Pagamento Mínimo” e deixar que o futuro se encarregasse do problema. 

Como a dívida não parava de aumentar, em breve ele estava pagando de juros o mesmo que pagava de despesa total um ano antes. Começou a recorrer aos Bancos, e em breve fazia com eles o que fazia com os cartões: para pagar o empréstimo do banco A levantava uma grana no banco B, e daí a um tempo pagava o B pegando dinheiro em C...

A dívida que Juvêncio acumulou nos últimos anos é mais dinheiro do que eu ganhei em toda minha vida. Ele parece viver segundo a sábia frase atribuída a Getúlio Vargas: “Dívida velha não se paga. E dívida nova deixa-se envelhecer”. 

Juvêncio vive numa bolha irreal de prosperidade, como aliás vive a maioria dos países do mundo, desde o Brasil até os EUA. Tudo na economia de hoje é pago com cheques pré-datados para 2050 ou coisa parecida. Os outros aceitam nossos cheques sem fundos, nós aceitamos os deles, e a economia avança aos trambolhões, alimentada por esse placebo financeiro em que todos fingem acreditar. 

Me lembra os velhos tempos em que a gente bebia no Bar de Benedito, na Rua João Pessoa, todo mundo liso que só um muçu. Quando pedíamos a conta, ela ultrapassava em muito o que tínhamos nos bolsos, e, como não tínhamos com que pagar, o jeito era pedir mais um galeto-na-brasa e uma rodada de cervejas. Quem não deve não come.






1044) Mickey Spillane (21.7.2006)



Faleceu dias atrás Mickey Spillane, que a maioria dos meus leitores talvez não conheça. Não perderam grande coisa. É duro dizer isso da obra de um sujeito que acaba de morrer, mas eu já pensava isto quando ele era vivo, e não vejo motivo para não continuar pensando. As fotos dos obituários o mostram um pouco antes dos 88 anos com que faleceu. É um desses americanos que tanto admiro, por serem diferentes de mim: corpulentos, sólidos, sem papas na língua, um desses sujeitos que sabem pescar com caniço, consertar um motor de popa, podar uma cerca, pilotar um teco-teco.

Um desses caras eminentemente práticos, meio rústicos, com espírito pão-pão-queijo-queijo, e que um dia acabam desembocando na literatura por uma combinação de circunstâncias que nada tem a ver com as Faculdades de Letras ou as aspirações acadêmicas que dão partida nas carreiras de romancistas do Brasil. Spillane escrevia romances policiais do tipo “hard boiled”, com detetives durões que conquistam louras curvilíneas e desvendam os crimes espancando os suspeitos. Estimativas conservadoras falam que sua obra vendeu mais de 200 milhões de exemplares ao longo de cinquenta anos, a partir de seu primeiro grande sucesso, I, the Jury (1946), seguido por outros arrasa-quarteirões como Vengeance is Mine (1950) ou Kiss me Deadly (1955). Em 1952, The Long Wait vendeu 3 milhões de exemplares em uma semana.

O obituário da Associated Press transcreve um típico trecho de briga, em The Big Kill: “Acertei o queixo dele com o lado da arma, cortando a carne até expor o osso. Empurrei seus dentes boca adentro com o cano, e quando ele caiu fiquei chutando sua cara. Ele ficou caído junto à porta, borbulhando. Chutei de novo, e ele parou de borbulhar”.

Houve um momento em que Spillane teve sete entre os dez livros mais vendidos na história da literatura americana. (Isto nos diz algo sobre o mundo de hoje.) Seus grandes sucesso tinham como herói o detetive Mike Hammer, que no cinema foi interpretado por vários atores durões e, em The Girl Hunters, pelo próprio Spillane, que tinha talento para o marketing pessoal, sendo um convidado freqüente em talk-shows, e, durante alguns anos, gravou comerciais de cerveja Miller para a TV.

Spillane desdenhava a literatura. Dizia ser um “escritor”, não um “autor”, e dizia que seus personagens não usavam bigode nem bebiam conhaque porque ele não sabia soletrar “moustache” e “cognac”. Aos críticos, costumava dizer que amendoim torrado vende mais do que caviar, e que não tinha “fãs”, mas “fregueses”. J. Traylor e M. Collins, na enciclopédia “Whodunit”, comentam: “Desde o primeiro livro Spillane capturou a psique da América, desde sua perda da inocência após a II Guerra até a década de 1980 com sua ausência de sentido e de direção. Seus livros nos dão uma descrição selvagem e lírica da alma ferida da América”. Registro sua morte como registrei sua existência: com atenção e sem entusiasmo.

1043) As piores frases do mundo (20.7.2006)


(Sir Edward Bulwer-Lytton)

Todos os anos, reservo um fim-de-semana inteiro para rir até encher os olhos de lágrimas. É quando saem os resultados do “Concurso Bulwer-Lytton de Ficção”, que anualmente premia os piores começos-de-livro enviados por leitores. O Concurso tem este nome em homenagem a Sir Edward Bulwer-Lytton, o autor de Os Últimos Dias de Pompéia, que num dia de inspiração excepcional e num vislumbre de genialidade começou assim um romance: “Era uma noite escura e tempestuosa...” (“It was a dark and stormy night”). Esta frasezinha brilhante, aliás, foi popularizada por Charles Schulz em sua tirinha “Peanuts”: o cachorro Snoopy a reescreve incansavelmente em sua máquina, tentando ser um escritor-de-verdade. Note-se que as pessoas inscrevem no Concurso frases premeditadamente ruins. (Seria interessante ter um concurso semelhante que analisasse frases efetivamente incluídas em livros, frases que os autores julgam suficientemente boas para serem publicadas).

A frase premiada este ano é de Jim Guigli, da Califórnia. Ele propôs iniciar um romance policial da seguinte forma: “Detective Bart Lasiter was in his office studying the light from his one small window falling on his super burrito when the door swung open to reveal a woman whose body said you've had your last burrito for a while, whose face said angels did exist, and whose eyes said she could make you dig your own grave and lick the shovel clean” (“O detetive Bart Lasiter estava em seu escritório examinando a luz de sua única pequena janela que se projetava sobre seu burrito [prato texano] quando a porta abriu-se de par em par para revelar uma mulher cujo corpo dizia que você vai parar de comer burritos por algum tempo, cujo rosto dizia que anjos existem, sim, e cujos olhos diziam que você pode se preparar para cavar sua própria cova e lamber a pá no fim”).

Não é fácil traduzir textos muito ruins à altura, como não o é traduzir textos muito bons. O que é muito ruim depende de combinações excepcionais de som e sentido, uso inadequado de termos, incoerência sintática ou semântica, raciocínio confuso, metáforas misturadas, e de coisas difíceis de reproduzir, como “kitsch”, mau-gosto, brega, etc.

Veja outras pérolas do concurso em: http://www.sjsu.edu/depts/english/2006.htm. O saite mantém um arquivo completo de todos os concursos. Aspirantes a escritor podem lucrar muito com estes exemplos. Em geral, ensina-se alguma atividade artística dando preferência aos exemplos positivos (estudar e copiar a obra de Renoir, Beethoven, Graciliano). Os exemplos negativos podem ser igualmente úteis, até porque estão muito mais próximos daquilo que o principiante costuma produzir. O ensino de literatura deveria se parecer ao ensino de esportes, onde um técnico competente dedica às vezes semanas inteiras à correção de um defeito do seu time (posicionamento da defesa numa cobrança de falta, etc.)

1042) O precavido (19.7.2006)




Tem um conhecido meu que é o sujeito mais precavido que eu já vi. Ele se recusa a admitir que é pessimista; diz que é apenas cuidadoso. A casa-de-campo dele tem alarme contra ladrão, alarme contra fogo, combinações de disjuntores que podem ligar ou desligar tudo instantaneamente, conforme o caso, ao menor sinal de anormalidade. Tem cerca comum, cerca elétrica, cães ferozes. Tem pára-raios também, o que me parece uma doidice, pois pelo meu raciocínio um pára-raios é uma vareta metálica erguida na direção do céu com a finalidade precípua de atrair raios; mas ele não se abalança.

A coisa mais difícil do mundo é uma catástrofe pegá-lo desprevenido. Se um dia ele for andando pela rua e cair um paralelepípedo do quinto andar sobre sua cabeça ele rapidamente desviará sua trajetória com uma engenhoca desdobrável que tirou do bolso, e nessa engenhoca provavelmente há uma plaquinha metálica onde tem escrito: “Desviador de Paralelepípedos Caídos do Quinto Andar – Made in Taiwan”.

O precavido é um sujeito muito chato quando suas precauções nos envolvem. Você chega com ele ao estádio com os times já entrando em campo, mas ele dá voltas e voltas em busca do lugar ideal para deixar o carro: “Aqui tá meio escuro, meio esquisito... Não gostei da cara desse guardador...” – e a gente roendo as unhas, vendo a hora ouvir o clamor de um gol.

Por outro lado, feliz de quem tem um sujeito assim como funcionário. Você pega o paletó às seis horas e diz: “Alfredo, desliga e fecha tudo quando sair, visse?” – e vai tomar chope em paz, sabendo que ele nunca verifica cada porta ou janela menos de três vezes.

Já trabalhei com gente assim, e é a coisa melhor do mundo. Eu me sentia como Ulisses, ouvindo o canto das sereias enquanto os companheiros remavam.

Pessoas precavidas acabem servindo como parâmetro para todas as outras que gravitam à sua volta: família, colegas, etc. Se você pergunta a um neurótico destes “se está tudo OK”, e ele diz que sim, você nem sequer confere o balancete, manda direto para o presidente da firma. Porque o precavido é um advogado-do-diabo de si mesmo. Sua principal ocupação é ficar imaginando tudo que pode dar errado, tudo de ruim que pode acontecer, e ir preparando neutralizações antecipadas para todos estes problemas.

Pode parecer que um sujeito assim é o típico pessimista, mas eu acho justamente o contrário. O precavido é um otimista incorrigível. Ele sempre acha que no fim de tudo vai se dar bem. Ele acha que vai evitar que o ladrão entre em casa, que o carro seja roubado, que o cupim roa, que o enfarte surpreenda, que a fiação dê circuito, que o Leão da Receita o pegue em contradição, que o cheque ultrapasse o limite...

O problema com o precavido é quando ele começa a se parecer com o governo Bush e passa a se antecipar às ameaças, invadindo hoje qualquer país que tem remotas chances de ter vontade (e recursos) para ameaçá-lo amanhã.






1041) Os Lusíadas em inglês (18.7.2005)




Eu estava viajando na Internet à procura de uma coisa inteiramente diferente, quando me deparei com esta preciosidade: o texto completo (disponível para cópia, por ser de domínio público) de uma das traduções de Os Lusíadas para o inglês. 

É sempre educativo examinar um texto que conhecemos mais ou menos bem, e ver as soluções encontradas por um tradutor competente. 

Há mais de uma tradução inglesa do poema. A que está disponível no saite “Sacred Texts” (que não tem apenas textos sagrados, ou religiosos, mas textos de importância histórica geral) foi publicada pela primeira vez em 1776 (a edição transcrita é de 1877), e é de autoria de William Julius Mickle. 

O próprio saite informa que a tradução mais conceituada é de Landeg White, e que existe uma tradução em prosa feita por William Atkinson.

O que chama mais a atenção na tradução de Mickle é que ele jogou pela janela um dos aspectos mais característicos do poema de Camões, seu formato estrófico. Em vez da clássica “oitava” com linhas rimando no esquema ABABABCC, temos um poema feito em “couplets”, sem estrofes separadas, onde as rimas se sucedem aos pares: AABBCCDD... É um formato estrófico clássico, muito apreciado na poesia inglesa, mas que aqui me soa como uma descaracterização.

Em todo caso, é fascinante pegar a estrofe 1 do Canto I e ler: 

Arms and the Heroes, who from Lisbon’s shore 
Thro’ seas where sail was never spread before 
Beyond where Ceylon lifts her spicy breast 
And waves her woods above the wat’ry waste... 

O texto se reorganiza, distribuindo-se de forma diferente no interior das linhas, substituindo palavras (a “Taprobana” de Camões é traduzida pelo seu sinônimo mais conhecido, “Ceilão”). 

A métrica também foi alterada. A introdução ao texto diz (erradamente) que Camões usou um metro de doze sílabas, quando na verdade o poema é feito em decassílabos. Já a tradução de Mickle usa aquilo que em poesia inglesa de chama de “pentâmetro iâmbico”: cinco células rítmicas, cada uma delas formada por uma sílaba fraca e outra forte, dando a cada linha um ritmo assim: di-DUM-di-DUM-di-DUM-di-DUM-di-DUM.

Estamos em 1776, e os conceitos de propriedade autoral e liberdade de tradução são outros. Não é de admirar que (adverte-nos o comentarista) Mickle tenha omitido estrofes inteiras “em que Vasco da Gama incorre em conduta censurável”, e que tenha inserido no poema de Camões cerca de trezentos versos descrevendo uma batalha marítima que não existe no original. 

As liberdades do tradutor tornam muito difícil localizar trechos específicos, até porque não temos o referencial visual e numérico das estrofes. O famoso “Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho / destemperada, e a voz enrouquecida” se metamorfoseia em: “Enough, my muse, thy wearied wing no more / Must to the seat of Jove triumphant soar.” 

Quem quiser refrescar a memória pode consultar os Dez Cantos completos em: http://www.sacred-texts.com/neu/lus/index.htm.








1040) Elogios (16.7.2006)



Certos elogios é melhor o cara nem receber. São mortíferos, e costumam causar mais dano do que uma campanha maciça de difamação. 

Quem os profere geralmente nem sabe o mal que está causando. Elogios precoces podem abortar uma carreira; elogios imerecidos podem transformar um sujeito, à sua revelia, num pária entre seus pares. O mundo está cheio de jovens escritores que pediram a um escritor veterano um prefácio elogioso, conseguiram-no (em geral porque o veterano achou mais simples livrar-se logo do chato do que ficar inventando desculpas), e acreditaram piamente nos louvores perfunctórios que o medalhão alinhavou em meia dúzia de linhas. 

Certa vez, quando tinha metade de minha idade atual, eu estava tocando violão com amigos num bar de Olinda. Toquei e cantei sem parar durante uma hora, e quando fiz a pausa regulamentar para molhar a garganta ouvi um bebum dizer numa mesa lá do canto: “Vocês vejam só o que é o mundo! A gente olha pra um cabeludo desse, sujo, desgrenhado, feio, mal vestido, e nem é capaz de imaginar que ele cante tão bem!” 

Foi um elogio, não foi? Eu, pelo menos, assim considerei. Também experimentei o oposto simétrico deste caso. Eu acabara de lançar um livro, e numa festa encontrei um amigo que me deu um abraço e disse: “Mas Braulio! Como é que um cara inteligente, espirituoso, culto e bem informado como você escreve um livro tão sem graça!” Resolvi considerar, no todo, como outro elogio. 

Quando Guga ganhou o Torneio dos Campeões em Lisboa, em 2000, e tornou-se o melhor tenista do mundo, ao agradecer o troféu ele elogiou seu adversário no jogo final, André Agassi: “Precisamos aplaudir Agassi, que foi um cara muito importante no tênis mundial”. Ao ouvir a tradução, Agassi botou uma cara de quem está pensando: “Se era pra me elogiar nestes termos, nem precisava ter se incomodado”. 

Um elogio pode ser pior do que um insulto. Diz uma piada antiga que um Bobo da corte disse um dia ao Rei: “Um pedido de desculpas pode ser pior do que uma ofensa”. O Rei disse: “Você tem dez minutos para provar isto, senão será guilhotinado”. O Bobo ficou por ali, deu um tempo, e quando viu o Rei distraído aproximou-se por trás e aplicou-lhe uma “dedada” vigorosamente exploratória. O Rei deu um pinote: “Êpa, caba safado, que negócio é esse?!” E o Bobo: “Desculpe, Majestade! Pensei que fosse a Rainha!” 

Certos críticos, no afã de elogiar, deixam o elogiado numa tremenda saia justa. Dizem, por exemplo: “O CD de Fulano de Tal está mil anos-luz à frente da obra do decadente Caetano Veloso”. É só o que basta para que, imediatamente, dez milhões de caetanistas coloquem Fulano na lista negra por um crime que o coitado (talvez até um caetanista ele próprio) não cometeu. 

O elogio gratuito, exagerado e oco da imprensa mundana foi satirizado no título do CD dos Titãs A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana, uma radiografia simples e que diz tudo da banalidade de julgamentos críticos no universo pop.





1039) O mistério da arte (15.7.2006)




O saite Metaphilm” (http://metaphilm.com/index.php) é uma mistura de portal e blog onde sempre estão aparecendo boas discussões teóricas sobre cinema. Recentemente, colhi por lá algumas reflexões que vêm ao encontro de uma antiga tese minha, que pode ser resumida assim: “Não espere de uma obra (um filme, um livro, um quadro) uma solução completa, uma sensação de que não há mais perguntas a serem respondidas”. 

Uma obra de arte deve nos dar algumas respostas, mas deve continuar sempre a dar uma impressão de incompletude, de que ficou faltando alguma coisa, de que ainda não sabemos a história toda, de que há um processo ali que não se estabilizou, não se concluiu. Quando acaba o mistério da obra, acaba o interesse pela obra.

Isto pode não se aplicar a toda obra, mas se aplica a muitas. E acho que entra aqui a observação de Barbara Nicolosi citada no Metaphilm. Diz ela (criticando alguns filmes de Ron Howard): 

“Histórias devem nos acostumar à onipresença do mistério como parte irrecusável de nossa vida. Elas têm a função de nos fazer aceitar com tranquilidade o fato de que a maior parte das coisas do mundo é vasta demais para nossa compreensão, e que não há nada de mau nisto. Como disse C. S. Lewis, lemos para saber que não estamos sós. Lemos para saber que alguém se deparou com um mistério qualquer, e portanto estamos todos no mesmo barco, e não há motivos para pular do telhado”.

Aceitar o mistério não significa desistir de buscar respostas, mas compreender que o número de perguntas é infinito. O saite cita também o diretor de animação Hayao Miyazaki (autor do belíssimo A Viagem de Chihiro), ao comentar seu filme O Castelo Andante

“Pedi ao pessoal que faz meus efeitos de computação gráfica para que não fossem excessivamente precisos, ou realistas. Estamos contando uma história de mistério, então, sejamos misteriosos”. 

É preconceito meu, ou isto é exatamente o contrário da estética de Walt Disney, da Miramax, da Pixar e do Cartoon Network? O que vemos nestes desenhos (muitos deles excelentes sob outros aspectos) é ausência de mistério, de poesia, do inconsciente. Ali, cada movimento de uma barbatana foi discutido, racionalizado e aprovado por uma dúzia de roteiristas.

Por fim, o Metaphilm cita um artigo de Lee Siegel sobre Greta Garbo em “The New Republic”. Siegel diz: 

"Os americanos esperam que os filmes possam iluminar as suas salas escuras, como se estar a sós com a própria imaginação fosse uma empreitada de êxito duvidoso. Já os europeus gostam (ou chegaram a gostar em certa época) de filmes de cores sombrias, que permitam à sua imaginação brilhar no escuro”. 

Deixando de lado esta simplificação (americanos/europeus), esta me parece uma excelente distinção entre dois públicos. Os que querem lançar a luz implacável da racionalidade e das respostas sobre o mundo do mistério, e os que aceitam o mistério, mergulham nele e deixam que sua vista se acostume gradualmente à penumbra daquele universo.






terça-feira, 19 de maio de 2009

1038) Syd Barrett, diamante louco (14.7.2006)


(Syd Barrett)

A história do rock registra as grandes vítimas dos excessos de drogas dos anos 60-70: Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin. Uma de suas vítimas mais talentosas foi Syd Barrett, cujo nome é pouco citado, talvez pelo fato de que uma parte dele morreu entre 1967 e 1968, e a outra na última sexta-feira, 7 de julho de 2006. Barrett, um dos fundadores da banda Pink Floyd, foi um guitarrista de talento, e compôs quase todas as canções do álbum The Piper at the Gates of Dawn. Drogas psicodélicas e uma prévia instabilidade mental o deixaram mais doidão do que até mesmo uma banda de rock comporta. Quando seu comportamento no palco e no estúdio tornou-se inviável, foi substituído por seu amigo David Gilmour.

A banda aposentou Barrett mas vê-se que havia uma ligação afetiva muito forte entre eles. Os direitos autorais de Barrett continuaram a ser escrupulosamente pagos, e o Pink Floyd chegou a produzir em 1970 dois discos (The Madcap Laughs e Barrett) em que Barrett, alternando momentos de psicose e de lucidez, era capaz de compor, tocar, cantar, acompanhado por Gilmour e outros amigos. Diz-se que o personagem neurótico e depressivo interpretado por Bob Geldorf no filme Pink Floyd: The Wall é em grande parte inspirado em Barrett. A banda lhe dedicou uma canção, “Shine On Your Crazy Diamond” (“Brilhe, diamante louco”) em seu álbum Wish You Were Here (“Gostaria que você estivesse aqui”), de 1975.

As fotos de época mostram um rosto pálido, olhos intensos e meio desarvorados, uma cabeleira negra e revolta. Ao morrer agora, com 60 anos, Barrett estava gordo, cabeça raspada, sofria de câncer e diabetes. Morava sozinho numa casa de subúrbio, vigiado pela irmã que morava a poucas casas de distância. Não era “um doido”; comportava-se mais como um senhor excêntrico e caladão, que não conversava com ninguém, mas conseguia cuidar de si, da casa, das flores do jardim.

O Pink Floyd sobreviveu à perda de Barrett, seu membro mais talentoso, assim como os Rolling Stones sobreviveram à perda de Brian Jones, seu melhor músico. A lenda em torno de Barrett nunca parou de crescer, e agora, com sua morte, promete recrudescer. O jornal The Guardian montou uma página de links relacionados a ele, que pode ser acessada em: http://arts.guardian.co.uk/features/story/0,,1817966,00.html.

Já vi alguém se queixar de que a cultura do rock celebra os drogados, os “heróis que morrem de overdose”, e que isto é uma má influência sobre a juventude. Pode até ser, mas somente por um erro de interpretação. O que celebramos é o talento, o brilho mental de jovens que mesmo tendo morrido com 20 e poucos anos deixam uma obra notável, cuja qualidade intensifica a dor da perda e a grandeza da tragédia. As canções de Barrett nos deixam o gosto nostálgico do que poderia ter sido sua vida se não tivesse “morrido” antes dos 30 anos. É como chorar por Castro Alves ou Noel Rosa.

1037) Chega de Copa (13.7.2006)



Vocês já devem estar arripunando Copa, depois de um mês inteiro de jogos e comentários. Eu também não agüento mais. Publiquei nos últimos dias algumas de minhas anotações feitas durante os jogos, mas prometo só voltar ao assunto quando Cafu se aposentar. É grande a vontade de escrever sobre a cabeçada de Zidane, mas vou deixar para fazê-lo depois que eu esfriar minha própria cabeça. (Em Campina já circulava uma piada: na segunda-feira Ronaldo Fenômeno telefonou para seu colega do Real Madrid e perguntou: “Pô, Zidane, que coisa, por que tu fez aquilo, cara?” E o argelino: “Tive uma convulsão”.)

Uma das poucas vozes sensatas que ouvi foi no saite “Idea A Day”, “uma idéia por dia”, onde um leitor disfarçado sob o sutil pseudônimo de Enadiz Enideniz sugeriu: “Poderia ser criada uma regra segundo a qual, se o jogo final da Copa do Mundo terminasse empatado, o vencedor seria o time que tivesse menos cartões durante a partida. Se houvesse empate, venceria o time que tivesse melhor índice de cartões durante o Torneio. Só haveria prorrogação se este índice também terminasse empatado”. No caso da decisão Itália 1x1 França, por exemplo, os italianos tiveram apenas um cartão amarelo, enquanto os franceses tiveram três amarelos e um vermelho para Zidane.

Vou além e sugiro que esse desempate pelo índice acumulado de cartões amarelos e vermelhos poderia ser estendido retroativamente a toda a fase eliminatória, que, pelo regulamento, faz parte oficial da Copa (a Seleção da casa, que não disputa eliminatórias, concorreria com seu índice da última eliminatória disputada). Aqui no Brasil já se usou esse critério disciplinar como desempate, não lembro se num Torneio Rio-São Paulo ou em algum campeonato regional. Seria justo ver um time jogar pelo empate na final da Copa pelo simples fato de ter um índice disciplinar melhor.

Foi uma Copa sem muito brilho, sem nenhum Grande Jogo. Teve alguns jogos emocionantes. mais pela dramaticidade do que pela técnica: Portugal 1x0 Holanda, Itália 2x0 Alemanha. Teve algumas belas exibições de um time só: Argentina 6x0 Sérvia-Montenegro, Espanha 4x0 Ucrânia. Mas não teve nenhum jogo de altíssimo nível. Em matéria de técnica, a Liga dos Campeões da Europa ganhou disparado.

Escrevi em 7.9.2003 (“A Copa do Mundo é nossa”): “Hoje o Brasil começa uma caminhada rumo ao altar dos sacrifícios. Nenhuma força política, econômica ou futebolística da Europa permitirá que em 2006 cheguemos aos seis títulos, deixando Itália e Alemanha nos três atuais.” Escrevi em 10.9.2005 (“Cheiro de 82”): “O Brasil tem sem dúvida uma equipe magnífica: ganhou com brilho a Copa América e a Copa das Confederações. Mas está, perigosamente, atingindo seu ponto máximo um ano antes da verdadeira disputa – justamente o que aconteceu com a Argentina na última Copa, que era um time assombroso em 2001 e pagou um mico histórico um ano depois”. O Anjo da Boca Torta disse amém. Até 2010!