sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

1587) A Potestade (13.4.2008)





(foto: Man Ray)

Sonhei que estava flutuando no espaço sideral, cercado de constelações, de portentos, de trevas fulgurantes. 

A Potestade rodeou-me com sua Presença, e dirigiu-se a mim: 

“Não crês na minha existência”, disse-me ela, e cada célula de meu corpo reverberou como um tímpano. “Por isso prefiro dirigir-me à totalidade do teu Ser, que só emerge quando adormece o cão de guarda que te sustenta vida afora, e ao qual chamas de Eu, ou Consciência”. 

Eu estava aterrado e sem palavras; só me restava escutar. Sentia-me esvoaçar em todas as direções, como uma pluma no epicentro de um tornado. 

“Admiro tua fidelidade a ti próprio,” prosseguiu. “São muitos os que não crêem, mas dizem crer por covardia, por conformismo, ou por imitação. Mais importante que a fé é a verdade. Mais importante do que crer em mim é ter a coragem de olhar dentro de si mesmo e dizer sem rebuços o que vê”.

O que via eu? Via galáxias coruscantes, aglomerados densos de matéria escura, estrelas que faiscavam como os grãos de areia no interior de um tornado. E aquela voz, que prosseguiu: 

“Deves estar te perguntando – por que eu? Por que logo eu fui chamado para este Contato, esta Revelação? E te responderei usando a linguagem do teu tempo e do teu povo. O Universo está contido em ti. Em teu corpo e tua alma estão gravados de forma indelével todas as informações necessárias para reconstruir tudo isto que vês à tua volta. Fosse este Universo destruído, bastaria que tu sobrevivesses para que toda a história dele pudesse ser reconstituída, a partir das leis que governam teus átomos e tuas células vivas. O Universo é auto-reflexo: está todo gravado em cada uma das partes vivas que contém.”  

Fez uma pausa. 

“Isto vale não só para ti, é claro, mas para qualquer outra criatura. Se te escolhi foi por mero Acaso. Quero te mostrar algo”.

Fez um gesto com a mão, e a esse gesto descerrou-se uma Cortina. Mas como posso dizer “um gesto”, se sua presença ocupava toda a face interna da esfera de espaço que me continha, como falar em mão se sua mera impressão digital era composta pelo turbilhão de galáxias que ali revoluteavam? 

Mas a esse gesto uma Dimensão abriu-se e vi ali justapostos todos os tempos, todos os passados e futuros, todos os fios entrelaçados dos mundos possíveis. 

“O mundo em que vives passa por uma crise que pode destruí-lo”, prosseguiu a Voz. “Falo do teu planeta, e do teu país. Quando crises assim se anunciam, escolho um habitante para me informar sobre a necessidade desse mundo. E é isso que te pergunto: Vale a pena que esse planeta e esse país existam? Vale a pena que prossigam? Se achares que não, desaparecerás com eles. Mas se achares que sim, desaparecerás só tu. Teu nome será obliterado, teus atos esquecidos, teus descendentes se estiolarão. Teu país prosseguirá, e desaparecerás apenas tu. Não tens que me responder agora. Vai – desperta!” 

Nesse instante o celular tocou na mesa de cabeceira. Atendi, e era engano.





1586) “O cristal dos verões” (12.4.2008)




Leio a poesia de Sérgio de Castro Pinto há mais de trinta anos. Gostaria de dizer que a leio há quarenta, porque acaba de sair a coletânea O cristal dos verões, reunindo sua produção poética entre 1967 e 2007. Mas em 1967 eu estava descobrindo Drummond e João Cabral. Ainda me levaria um certo tempo para descobrir os poetas paraibanos, devido à hipermetropia cultural de que sofremos, eu mais do que todos. Não importa, porque é próprio da Arte ter efeito retroativo, como uma lanterna acesa que a gente ergue para iluminar o caminho à frente mas que nem por isso deixa de clarear também para trás. A boa poesia é uma luz intemporal: a de ontem pode clarear nossos dias de hoje, e a que lemos hoje pode iluminar coisas que não víramos ontem.

Esta coletânea mostra como a evolução de um poeta não se dá meramente por uma sucessão de fases em que na primeira ele faz um tipo de verso, na segunda faz outro, e assim por diante. A evolução poética se dá por um processo de substituições e de retornos, em que uma técnica ou uma temática não são abandonadas por completo, mas deixadas de lado momentaneamente enquanto o poeta se interessa por outra coisa. Mal comparando, é como se dá com um percussionista de show, que tem à sua frente toda uma tenda de instrumentos, aos quais vai recorrendo, e retornando, sempre que a necessidade se apresenta.

Para mim existe uma continuidade, por exemplo, entre os poemas mais longos e mais complexos de A ilha na ostra (1970) e o minimalismo do recente Zoo imaginário (2005). No primeiro estão alguns dos poemas mais republicados de Sérgio, como o “Camões/Lampião” e a série de textos sobre fotografia, onde existe algo de João Cabral a abordagem analítica de processos. O segundo traz pequenos retratos minimalistas, que por um lado lembram certos textos de Mário Quintana, mas também as vinhetas poéticas com que Erik Satie acompanhava algumas de sua composições (como na série “Sports et Divertissements”). Mas podemos observar que o jogo de assonâncias do tipo palavra-puxa-palavra é raramente empregado tanto por Cabral quanto por Quintana; e que o poder observador do poeta o traz ainda mais próximo dos retratos zoológicos de Guimarães Rosa em Ave, Palavra, o que promove a fusão entre (como diz Sérgio) “a p(rosa) e a (poe)sia”.

O senso visual infalível do poeta o leva a registrar detalhes mínimos do cotidiano como “buquês de roletes”, a ver as noites como “folhas de papel carbono” entre as páginas brancas dos dias, a perceber no pavão um “narciso voyeur”, a ver móbiles de Calder nas costelas dos pobres, a explorar em todas as direções emblemáticas o “y” da Fazenda Guarany. No equilíbrio entre a percepção visual diferenciada e o malabarismo sonoro das aliterações, um livro de poesia de Sérgio de Castro Pinto é uma sucessão de flashes indeléveis em que a linha do verso costura e justapõe o visto, o imprevisto, o ouvido e o vivido.

1585) O ginecologista no harém (11.4.2008)

Todo sujeito muito perseguido se torna vingativo quando enriquece, mas se torna magnânimo se ficar muito milionário. 

É o caso do escritor Paulo Coelho. Cada livro que ele publica é tratado como se fosse um tapete velho que a gente pendura num varal e mete a pancada para tirar a poeira acumulada ali há cem anos. 

Bater nos livros de Paulo Coelho é um esporte nacional. E no entanto ele trata os críticos com uma benevolência zen, e afirma: “Cabe ao leitor ler, ao crítico criticar, e ao escritor escrever”. 

Numa coluna recente na revista dominical do “Globo”, PC citou uma frase de Brendan Behan: “Críticos são como eunucos em um harém. Teoricamente, eles sabem qual a melhor maneira de fazer, mas não conseguem ir além disso”. 

Na qualidade dupla de escritor e de crítico (embora qualquer um possa me considerar mau escritor e mau crítico), acho que posso contribuir com algo para essa descrição. Um crítico não é necessariamente um eunuco, alguém incapaz de fazer o que critica. Alguns dos melhores filmes da história do cinema foram feitos por críticos que um dia se meteram a dirigir: François Truffaut e Jean-Luc Godard são dois exemplos que me ocorrem (e muito diferentes entre si – a única coisa que têm em comum é que eram da mesma turma). 

Na literatura, temos o exemplo de Umberto Eco, que era um crítico ao quadrado, ou seja, professor de Semiologia numa Universidade, e quando estreou foi com um romance que botou os escritores profissionais no chinelo. 

Se é para comparar o crítico a alguém, melhor do que um eunuco é um ginecologista. O problema do crítico, quando se mete a escrever, não é a falta de imaginação criativa. O que lhe falta é a descontração lúdica de quem faz algo por mero prazer. 

O excesso de bagagem teórica pode ser uma vantagem na hora de criticar, mas é um peso na hora de criar. O escritor é um cara que olha para dentro de si mesmo; um crítico é um cara acostumado a olhar para dentro dos outros. É clínico, distanciado, brechtiano. Na hora de ser criativo, ele poderia lamentar-se como o robô dos quadrinhos de Barbarella, quando a heroína elogia seu desempenho na cama: “Madame é muito gentil, mas meus impulsos têm algo de mecânico”. 

O escritor acostuma-se a ser levado pela intuição, escreve sem precisar explicar muita coisa a si mesmo. Pode se dar o luxo de responder “Não sei” a quem lhe pergunta o porquê de tal ou tal detalhe do que escreveu. 

O crítico, que fez a própria fama explicando os porquês das obras alheias, sente-se pressionado a ter a mesma jurisdição sobre as próprias. Quando é um crítico meramente impressionista, que critica com base nas suas paixões subjetivas, ele até que se furta um pouco a essa cobrança. Mas os grandes críticos de nossa época são grandes racionalistas. São mentes apolíneas e implacáveis, acostumadas a analisar, dissecar, discernir. Na hora em que precisam do arrebatamento dionisíaco, o Deus do prazer se vinga e não comparece.





1584) Glauber vs. Madureira (10.4.2008)




O pessoal mais zombeteiro chama o Rio de Janeiro de “Capital do Factóide”. No Rio, quando nada de importante está acontecendo, inventa-se uma desimportância ruidosa, para que as moças da TV tenham a quem entrevistar, e para que os jornalistas sem assunto, como eu, resolvam o problema-de-sísifo intitulado “A Coluna de Hoje”. Feita esta ressalva, não posso deixar de comentar o factóide carioca mais recente. O “casseta” Marcelo Madureira, participando de um debate, disse: “Glauber Rocha é uma merda”. Foi o que bastou para que a cidade se mobilizasse em dois exércitos opostos. Me lembrei daquele dia em que Glauber falou: “O General Golbery é o Gênio da Raça Brasileira”.

Os intelectuais saíram em defesa de Glauber, é claro. Cartas aos jornais, artigos, reuniões de desagravo, exibições de filmes, e tudo o mais. Me solidarizei com isso, porque considero Glauber o maior cineasta brasileiro, e considero que seus três filmes realmente bons (Deus e o Diabo..., Terra em Transe, O Dragão da Maldade...) estão entre os melhores do mundo. Como se não bastasse isso, a pessoa pública de Glauber, como agitador cultural, foi algo que fez um bem enorme ao Brasil, e continua fazendo.

Acho melancólico o presente factóide porque toda essa repercussão é uma demonstração de força, não de Glauber, mas de Marcelo Madureira. A cidade inteira se mobilizou em função de uma imprecação desdenhosa que Madureira proferiu num momento “blasé”. Madureira (que não conheço pessoalmente) é um competente redator de humor para a TV, mas falando é uma espécie de Edmundo “Animal”, diz tudo o que lhe vem à cabeça. Se o que diz provoca tal comoção nos intelectuais, mostra apenas a reversão que houve no país. As manifestações de desagravo não comprovam a importância de Glauber, e sim a de Madureira. Comprovam apenas a fragilidade da imagem e do conteúdo de Glauber num país onde os poderosos não são mais os cineastas de vanguarda, e sim os humoristas de TV.

Digo isto sem preconceito de classe, porque eu também sou um humorista de TV (consultem meu currículo). E os humoristas são necessários por isso mesmo. Humorista é para ser irreverente e iconoclasta. O humorista é o ato-falho da consciência coletiva, aquele que diz o que estamos pensando mas jamais diríamos. É aquele que em plena corte pergunta ao Rei, diante da Rainha, se ele troca de cueca com a frequência com que troca de amante. Qualquer outro que dissesse isto iria para o machado e o cepo, mas o Bobo não.

A importância de Glauber independe da opinião de Marcelo Madureira sobre ele (e da minha). E não importa se para cada brasileiro que já viu um filme de Glauber existem 100 mil que já assistiram Casseta & Planeta. Os intelectuais esperneiam diante dessa provocações, mas adianta tão pouco quanto a rã de Galvani espernear sob uma corrente elétrica. Glauber Rocha e Marcelo Madureira são, cada um, exatamente o que fazem.