quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

1606) Flamengo 3x1 Botafogo (6.5.2008)




O Campeonato Carioca de 2008 foi uma grande marmelada. Na verdade, o campeonato é fluminense, porque envolve vários clubes do interior do Estado, e não apenas da Capital. Mas nunca o campeonato foi tão carioca quanto o deste ano. Inventaram um critério obscuro para desqualificar os estádios dos times menores, e estabeleceram que todo jogo entre um dos grandes (Flamengo, Botafogo, Fluminense, Vasco) e um time menor aconteceria no Maracanã. O resultado é o que se viu: os “grandes” derrotando seu esforço os pequenos (cujo único trunfo costuma ser jogar em casa, com sua torcida, no seu estádio), e mesmo os clássicos no decorrer do turno foram esvaziados, porque já se sabiam quem seriam os quatro times do quadrangular final de cada turno. Em suma, uma grande farsa. Resultado da política de uma Federação que vem consistentemente empurrando o futebol do Rio para uma posição mediana no país, com clubes endividados, diretorias delirantes, e pernas-de-pau que se consideram craques.

Mas vamos ao jogo. Nas finais, o Flamengo obteve duas vitórias dentro de campo, que serviram (acho) para apagar a impressão confusa deixada pela conquista da Taça Guanabara com um pênalte questionado, arbitragens incompetentes, e tudo o mais. O Fla ganhou os dois jogos com autoridade, ambos no segundo tempo. Aí se revela um dos grandes mistérios do treinador Joel Santana. Sua tática é a seguinte: ele coloca o time em campo, no primeiro tempo, numa postura recuada, cheia de botinudos. Em geral, o Flamengo sai do primeiro tempo perdendo, ou, quando sai no empate, sai visivelmente inferiorizado em volume de jogo. No segundo tempo, Joel coloca dois atacantes – em geral, Obina e Tardelli – e ganha a partida. A pergunta óbvia: por que não começa a ganhar a partida logo no começo, indo para o ataque? Ninguém sabe.

Joel é um técnico de perfil italiano. Gosta do time recuado, chamando o adversário sobre si, cercando-o, dando o bote, roubando a bola e partindo num contra-ataque célere e mortal. Obina e Tardelli acabaram com o Botafogo no segundo tempo desta decisão. O primeiro gol foi uma cobrança de falta jogada “no bolo” da área, com Obina alcançando a bola a meia-altura, num vacilo da defesa, e cabeceando onde o goleiro não enxergava. O segundo foi uma jogada brilhante de Juan (já há muito tempo um dos melhores e mais consistentes jogadores do time), que avançou, driblou, e da linha de fundo entregou o gol de bandeja para Tardelli marcar. O terceiro uma arrancada espetacular de Tardelli, que tomou a bola na defesa, partiu com ela até a lateral da área e mais uma vez (como fizera no domingo anterior) rolou para que Obina, no meio da área, empurrasse para o gol vazio.

Lamento pelo Botafogo, que é um time solidário e talentoso; e pelo técnico Cuca, que há muito tempo merece um título. Mas o Flamengo, no segundo tempo, foi o Flamengo de sempre e ninguém mais que ele mereceu o título. Respeita o Mengo, mundiça.

1605) Entre o chicote e o chiclete (4.5.2008)



(monumento a Isaac Newton na British Library)

Dizem que Sir Isaac Newton, depois de perder cerca de 20 mil libras em especulações financeiras, desabafou: “Eu consigo prever os movimentos dos astros, mas não a estupidez dos homens”. O que é uma ótima notícia para todos nós. Enquanto existirem seres humanos imprevisíveis, capazes de atitudes inesperadas, nenhuma ditadura poderá se manter eternamente. Nem as ditaduras do chicote, nem as ditaduras do chiclete. Nem aquelas que se baseiam na violência, no terror e na intimidação, nem aquelas que se baseiam no pão e circo, na alienação, no controle das massas através do entretenimento e do consumo.

Não são apenas as ditaduras que tentam prever o comportamento humano. As utopias também. Utopias são uma espécie de ditaduras benignas, ditaduras do Bem. São aqueles governos que projetam, com boas intenções, a sociedade ideal, onde todos tenham direito a tudo, sem nenhum tipo de injustiça, bibibi, bobobó. O problema é que para obter isso as utopias fazem uma “limpa” total na sociedade. Não admitem a bagunça, a rebeldia, a contradição. Dizem que na “República” de Platão os poetas seriam expulsos. Por quê? Ora, porque são imprevisíveis.

No tempo de Platão não existiam muitos instrumentos para avaliar as opiniões das massas, mas mesmo assim os gregos inventaram lá o seu formato de democracia, com eleições e tudo. Hoje, com as infinitas possibilidades do controle eletrônico, das pesquisas de opinião, dos mecanismos interativos de comunicação de massas, da lavagem cerebral proporcionada pelo rádio, TV, etc., é claro que todo tecnocrata com sonhos mais audaciosos pensa consigo mesmo: “Chegou a hora! Agora vai ser possível não apenas saber o que 180 milhões de pessoas querem de fato, como também fazer com que todas elas queiram justamente o que nos convém”.

Nem o próprio Isaac Newton resistiria a um desafio como este. Porque existem dois tipos de cientista: os Grandes Individualistas e os Técnicos Competentes. Os primeiros têm por sua própria natureza um certo desprezo para com as massas, que aos seus olhos não passam de um admirável gado novo. Os segundos talvez nem sintam esse desprezo, mas vêem nas multidões o laboratório ideal para experimentos quantificadores em larga escala, que é o que lhes interessa. Quando um governo ambicioso consegue formar um quadro tecnocrático onde os dois tipos estejam bem representados, já está no meio do caminho para articular sua máquina privada de pesquisa e manipulação.

E o que nos salva é aquele herói que o cinema norte-americano, paradoxalmente, sempre endeusou. O indivíduo indomável, o individualista por conta própria, que não se acha superior a ninguém, quer apenas que o deixem em paz, dono do seu nariz, com as mãos ocupadas no que lhe apraz e com as pernas livres para ir onde quiser. Este é o indivíduo que comete as estupidezes lamentadas por Newton, mas que em última análise é o último homem livre, seja ele ovelha negra ou lobo solitário.