sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

2789) Endeusando livros (10.2.2012)




A imprensa está alvoroçada com a aproximação da noite do Oscar, quando os coleguinhas acompanham a premiação da Academia e se envolvem em deblaterações sobre quem merecia mais a estatueta X – se era o milionário Y ou a prima-dona Z. Impressionante como o mundo leva a sério esses prêmios. Repetidas vezes, em palestras e debates, vem gente me perguntar: “Você disse que o filme Tal é bom. Se é, por que não ganhou o Oscar?”. E olhe, não é preconceito meu contra a indústria cultural norte-americana, ou melhor, é preconceito sim, porque se o meu conceito de cinema bater de frente com o conceito deles a nuvem de fumaça vai ser enxergada lá em Hiroshima; mas tenho o mesmo preconceito com o Prêmio Nobel de Literatura (não dou palpite nos demais, não entendo), que é concedido por um grupinho de velhotes fora da realidade, e de vez em quando cai na cabeça de um bom escritor pelo simples fato de que (felizmente) o mundo é cheio de bons escritores, e muitos deles contam com boa assessoria de marketing. A relação do Oscar com o cinema e do Prêmio Nobel com a literatura é a mesma que os colunistas sociais mantêm com a população de uma cidade.

Muito bem. Encerrada a diatribe, vamos ao assunto. Concorre este ano ao Oscar este curta-metragem charmoso e delicado, The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore (http://tireotubo.blogspot.com/2012/02/curta-metragem-indicado-ao-oscar-que-e.html). É um filme de animação de técnica mista, com menos de 15 minutos, sobre um rapaz que, arrebatado de sua casa por um furacão, vai parar num lugar remoto onde os livros são criaturas vivas, que não falam mas se comunicam com ele de modos variados. Inspirado (ao que se diz) pelo tufão que destruiu a cidade de Nova Orleans, o curta é uma parceria entre o ilustrador William Joyce e o animador Brandon Oldenburg, ambos da Louisiana.

É um filme feito por quem ama os livros, para quem ama os livros. Quem não gosta de livros vai vê-lo com o mesmo misto de tolerância e desinteresse com que nós observamos as pessoas que colecionam flâmulas de time de futebol ou moedas antigas. À medida que o tsunami digital (ou, em vista da origem do curta, o Katrina digital) se ergue e invade ruas, cidades, corações e mentes, o livro vai sendo cada vez mais cultuado como objeto mítico, como símbolo, como uma mistura de criatura viva e de semideus que tem todas as respostas. Talvez o mundo digital, ironicamente, transforme o livro, daqui a um século, no objeto de um culto religioso. Estarão cobertos de inscrições sagradas como os hieróglifos egípcios, que ninguém consegue ler mas admite que contém verdades transcendentais.