domingo, 12 de junho de 2022

4832) O espião fantasma (12.6.2022)



 
Um curioso personagem de Alfred Hitchcock, no filme “Intriga Internacional” é o agente secreto Kaplan, com o qual Cary Grant é confundido logo no início da história. Durante grande parte da trama, o inofensivo publicitário Roger Thornhill (Grant) sofre sequestros e tentativas de assassinato por parte de outros espiões. 
 
A certa altura, Thornhill descobre que na verdade ninguém jamais vira o sr. Kaplan. Funcionários de hotéis e de aeroportos falam sobre ele com fluência... mas todos os contatos foram feitos por telefone, telegrama, etc.  Ninguém o viu em pessoa. Suas roupas estão no quarto do hotel, o sabonete foi usado, há caspa no pente... Mas ninguém o viu.
 
Kaplan não existe – é um disfarce criado pelo Serviço Secreto para desviar a atenção dos inimigos. Criou-se todo um universo de documentos falsos, recados, mensagens, fotos, registros... sobre um personagem imaginário. É o mais alto grau de rarefação em termos de falsas identidades. Kaplan é um ser humano puramente conceitual.
 
Já falei aqui (“O partido fantasma”, 2004) sobre esses truques de espiões, e sobre um inventado “partido comunista” holandês, criado pela espionagem ocidental, que durante anos enganou as autoridades da China. O partido inexistente tinha membros-de-carteirinha na Holanda (eles pensavam que o partido era de verdade), publicava jornais, etc.  Parecia de verdade, e com isso os holandeses conseguiram se infiltrar entre os comunistas chineses e descolar aqui e ali alguma informação importante.
 
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2008/09/0548-o-partido-fantasma-21122004.html
 
Uma nova variante dessas ficções políticas é narrada no bom filme O Soldado que Não Existiu (“Operation Mincemeat”, 2021), dirigido por John Madden, e que está em exibição no Netflix.
 
É uma história real da II Guerra, com uma premissa bem simples. Os Aliados estavam preparando a invasão do litoral sul da Europa, em 1943. Os generais do Eixo sabiam disso, e se preparavam para enfrentar a invasão; mas não sabiam onde ela iria acontecer.
 
Os ingleses queriam conquistar a Sicília, que estava bem defendida; tiveram a idéia de dar pistas falsas indicando que a invasão seria na Grécia, para que as defesas sicilianas fossem transferidas para lá.
 
Como fazer isso? Um grupo de estrategistas da Inteligência, do qual fazia parte o jovem Ian Fleming (criador de James Bond) deu uma sugestão. Os alemães tomariam conhecimento de que um oficial inglês, munido de uma  pasta com documentos secretos, fora descoberto, afogado, numa praia. Examinando os documentos, teriam pistas da suposta “invasão da Grécia”.
 
Começou então o fascinante processo de encontrar um corpo qualquer, muni-lo de roupas, objetos pessoais, fotos, documentos, uma história militar falsa que os espiões do Eixo pudessem consultar... E uma carta pessoal para uma autoridade, mencionado de passagem a suposta invasão da Grécia.
 
Esta é a premissa do filme, com Colin Firth à frente. Na Wikipédia há um bom verbete sobre a “Operação Mincemeat”, nome real do projeto, detalhando o modo como tudo foi concebido e executado. E aqui há um relato interessante (em português):
 
https://pt.worldwar-two.net/eventos/operacao_carne_picada/
 
É um daqueles filmes ingleses sólidos, convencionais, bem dirigidos, sem ousadias narrativas ou especulações históricas, com um bom elenco e algumas liberdades interpretativas – todo filme de guerra precisa ter um triângulo amoroso, por exemplo.
 
Filmes de espionagem nunca perdem a atualidade, ainda mais agora, quando todo mundo começa a se aperceber da existência de “fake news”, verdades cuidadosamente inventadas, construídas, impostas a um público crédulo ou desprevenido.
 
“Fake news” sempre existiram onde existiu imprensa. Walnice Nogueira Galvão, numa palestra na Flip, lembrou que na época da Guerra de Canudos, a imprensa brasileira estava cheia de notícias dizendo que o exército precisava exterminar logo os fanáticos, porque na costa brasileira havia navios com tropas monarquistas prontas para desembarcar e restaurar a monarquia, caso o Conselheiro triunfasse.
 
O Soldado Que Não Existiu mostra, no contexto de espionagem de guerra, a cuidadosa preparação de uma “notícia falsa” para passar informações errôneas ao inimigo. O fictício Capitão William Martin (nome atribuído ao cadáver do mendigo Glyndwr Michael) tem currículo militar completo, traz na pasta e nos bolsos uma porção de objetos miúdos que os membros da Inteligência britânica discutem exaustivamente – até porque seus superiores no gabinete de guerra duvidam que um plano tão mirabolante dê certo.