sexta-feira, 19 de outubro de 2018

4395) Uma retórica do Fantástico (19.10.2018)




Existe uma retórica do Fantástico, da literatura do sobrenatural, do insólito, do irreal?

Ou seja: existem procedimentos puramente verbais que estejam intimamente associados ao gênero fantástico? Um conjunto de “figuras de linguagem” ou equivalente, que por sua própria natureza conduzam à produção do sentimento do fantástico, num texto?

Quando estava pesquisando para minha antologia Freud e o Estranho (Casa da Palavra, 2007), li um excelente livro sobre cinema de terror, Caligari’s Children (1980), de S. S. Prawer, autor que eu deconhecia.

No capítulo 4, “The Uncanny”, ele diz (tradução minha):

Pode ser bastante produtivo, como já tentei demonstrar em outro contexto, elaborar algo como uma retórica ou gramática do Estranho [Uncanny]: examinar os instrumentos retóricos – a aposiopese, a anáfora, a anfibologia, construções aparentemente impessoais, deslocamentos da sintaxe, empilhamento de exclamações e interrogações, e assim por diante – de que os autores têm lançado mão, em diferentes momentos, com o fito de criar em seus leitores um estado de espírito adequado, uma sensação do Estranho e uma sensibilidade para o Estranho. (p. 114)

Prawer é professor de Língua e Literatura Alemã em Oxford, e esse breve apanhado de recursos retóricos me parece uma pontinha de uma montanha soterrada que pesquisadores de Letras poderiam escavar com proveito.

Para meu uso doméstico, resolvi dar uma avaliada. Dos recursos enumerados por ele, o mais banal e que primeiro salta aos olhos é o “excesso de exclamações e interrogações” de tanta pulp fiction. A exclamação denota o assombro, o espanto, o terror; a interrogação denota dúvida, incredulidade, incapacidade momentânea de entender.

Há precursores ilustres (ou dependentes famosos) destes recursos, como a gente vê em mestres do “relato alucinatório” como Edgar Allan Poe, E. T. A. Hoffmann e muitos outros, como o grande Guy de Maupassant:

Meu Deus! Meu Deus! Finalmente vou escrever o que me aconteceu! Conseguirei fazê-lo? Atrever-me-ei? É coisa tão estranha, tão inexplicável, tão incompreensível, tão louca! Se não tivesse certeza daquilo que vi, se não tivesse certeza de que não houve nenhuma falha nos meus raciocínios, nenhum erro nas minhas averiguações, nenhuma lacuna na sequência irredutível das minhas observações, eu me julgaria um mero alucinado, vítima de alguma estranha visão. E, afinal, quem sabe?
(“Quem Sabe?”, em Histórias Eternas, trad. Ondina Ferreira, Ed. Cultrix, 1959)

O parágrafo acima é uma dessas aberturas-padrão de tantos contos fantásticos, em que um indivíduo, tendo passado por uma experiência aterrorizante ou incompreensível, tenta fazer sentido do que lhe aconteceu, mas seu estado de desorientação emocional é revelado justamente pelos pontos de exclamação e de interrogação.

Dos recursos citados por Prawer, este é a esta altura o mais banal, o mais clichê.

Resolvi então dar um rápido balanço nas figuras de linguagem que ele cita, essas senhoritas enigmáticas e glamurosas vestindo túnicas gregas.

Prawer cita como exemplo a Anáfora, assim descrita nos manuais:

A repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no princípio de frases ou versos consecutivos. 

Os exemplos disso são milhões:

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. 
(Charles Dickens, Um Conto de Duas Cidades)

Esta simples figura de linguagem pode produzir o sentimento do fantástico, ou favorecer seu aparecimento? Um texto fantástico pode usar a anáfora, mas ela não me parece estruturalmente identificada a ele, como as demais figuras da lista.

De qualquer forma, a Anáfora é uma entre muitas figuras narrativas baseadas na repetição. E aí, sim, porque em termos narrativos isso gera todas as histórias de duplos, Doppelgängers, reflexos, desdobramentos, cisões, duplicação de um mesmo ser.

Das figuras citadas por Prawer a mais conhecida deve ser a Anfibologia, apresentada por Monteiro Lobato em Emília no País da Gramática, quando a boneca é levada a visitar os cárceres onde estão presos os vícios de linguagem.

Emília botou-lhe a língua e passou ao terceiro cubículo. Viu lá dentro um vulto de mulher com duas caras.
— E esta "bicarada"? — perguntou.
— Esta é a ANFIBOLOGIA, que faz muita gente dizer frases de sentido duplo, ou duvidoso, como: Ele matou-a em sua casa. Em casa de quem, dele ou dela? Quem ouve fica na dúvida, porque a matança tanto pode ter sido na casa do matador como da matada.  

O que a Gramática classifica como defeito, quando por ignorância, pode ser efeito, quando usado em busca de um resultado específico.

O Fantástico pode ser evocado de maneiras interessantes através de frases “anfibológicas”, frases que, como certos desenhos, certos efeitos ópticos, podem ser rigorosamente interpretadas de duas maneiras opostas.

Como as frases de som quase idêntico que abriam e fechavam os contos de Raymond Roussel.

Seria uma tarefa interessante ir registrando e compilando trechos desse tipo, em que algo é descrito, até com certo detalhismo, mas o leitor não sabe a quem atribuir aquela ação, ou pensamento.

Fui à cata da tal Aposiopese. Mestre Google me brindou de início com esta descrição:

Interrupção intencional de um enunciado com um silêncio brusco, seguido ou não de um anacoluto, querendo significar que se resolveu calar o que se ia dizer. A aposiopese geralmente é representada graficamente pelas reticências. 

É uma figura de linguagem que reproduz aquele movimento em que a mente se atira para diante mas se detém subitamente porque algo mudou. É um movimento de estranheza, de raciocínio cortado ao meio por uma surpresa ou um desmentido.

Outra página, citando Massaud Moisés, esclarece:

Segundo o Dicionário de Termos Literários (Massaud Moisés, Editora Cultrix, 2002), entende-se aposiopese como «silêncio súbito, interrupção, reticências»; a referida obra acresenta ainda: «[C]onsiste na suspensão de um pensamento já iniciado, por meio de corte repentino na cadeia sintática. Espécie de anacoluto consciente, a aposiopese assinala o momento em que o escritor interrompe bruscamente a sequência das ideias, 1) ao perceber que vai adiantar raciocínios ou surpresas, 2) quando pretende dar ênfase às palavras, ou 3) quando se dá conta de que vai dizer mais do que deseja. No geral, a aposiopese evidencia-se, graficamente, pelas reticências, mas nem todo sinal suspensivo denota a presença deste recurso estilístico»

A aposiopese pode ser ampliada no contexto de uma única frase para o de uma narrativa inteira. São aqueles contos fantásticos em que alguém começa a descrever um fato ou uma percepção extraordinários e interrompe-se, repetidas vezes, recomeçando a seguir de um ponto totalmente diverso, na tentativa vã de abarcar algo maior do que sua capacidade de expressão.

Com um pouco de boa vontade, posso encontrar um exemplo de algo nesse sentido em um recurso estilístico muito frequente em Jorge Luís Borges, quando seu personagem, diante de um fato estranho ou fantástico, tenta explicações bem diferentes, sucessivamente:

Este palácio é obra dos deuses, pensei primeiramente.  Explorei os inabitados recintos e corrigi: Os deuses que o edificaram morreram.  Notei suas particularidades e disse: Os deuses que o edificaram estavam loucos.
(“O Imortal”, em O Aleph, 1948)

Muitas vezes a penetração no ambiente fantástico se dá assim, por aproximações sucessivas, por tentativas de explicação sempre interrompidas antes de chegar ao fim, devido ao aparecimento de novos elementos insólitos.