sexta-feira, 14 de setembro de 2018

4385) "O Tempo Desconjuntado" (14.9.2018)





Saiu há pouco tempo minha tradução, pela Suma de Letras, para Time Out of Joint  (1959) de Philip K. Dick, com o título O Tempo Desconjuntado.

Philip K. Dick escreveu esse romance numa época em que mantinha uma dupla persona literária. Estava dividido entre dois mundos, duas possibilidades de carreira como escritor.

Dick se achava qualificado para escrever romances do chamado mainstream (novelas realistas, psicológicas, ambientadas na vida cotidiana e normal) e romances de ficção científica.

Não seria o primeiro nem o último autor a se preocupar com essa encruzilhada.

Antes de 1959, ele escreveu romances mainstream, psicológicos: Gather Yourselves Together, Voices From the Street, Mary and the Giant, A Time for George Stavros, Pilgrim on the Hill, The Broken Bubble of Thisbe Holt. Alguns se perderam; outros só foram publicados décadas depois.

E produziu romances de FC como The Cosmic Puppets, Solar Lottery, The World Jones Made, Eye in the Sky, The Man Who Japed .

É preciso lembrar também que ele não era um escritor convencional, aquele que trabalha pacificamente de seis a oito horas, e depois vai ajudar os filhos no dever de casa, ou então vai aparar a grama do jardim.

Dick sempre teve uma relação problemáticas com as drogas. No caso dele, um californiano típico dos anos 1960, curiosamente a predileção não era por maconha, LSD, cocaína, heroína, etc.  Dick era viciado em comprimidos, tarja-preta de farmácia, que ele conhecia a fundo e tomava em combinações complicadíssimas.

Foi isso que o tornou capaz de escrever sem parar, sem comer direito, sem dormir direito. Eye in the Sky, de 1957, tem 255 páginas na edição da Ace Books; foi escrito em duas semanas.

Como acontece com qualquer escritor de pulp fiction, a escrita de P. K. Dick é um jorro, uma cachoeira, um derramamento incessante de peripécias mal-e-mal mediadas pela consciência. Já escrevi aqui no blog sobre o modo como o ato de escrever é um estado alterado de consciência, e como os autores da pulp fiction acabaram criando sua própria versão da “escrita automática” proposta por André Breton e os surrealistas.

O Tempo Desconjuntado me dá a impressão de um texto mais trabalhado, mais elaborado, mais revisado do que outros que Dick estava produzindo naquela fase. É um dos seus melhores livros, mas meio escanteado pela crítica.


O Tempo Desconjuntado tem a substância daquela tradicional xilogravura antiga que define o “conceptual breakthrough”: o indivíduo que perfura “a redoma do mundo”, “a bolha de Truman”. Ele rompe o hemisfério realista que o cerca e descobre que o mundo de verdade é um mundo de ficção científica onde a Terra está em guerra com a Lua.

Como em Truman, o personagem rompe a casca de dentro para fora, movido por uma paranóia, um estranhamento, a certeza de que estão acontecendo coisas inexplicáveis no mundo. Ele está disposto a ter seu mundo destruído, mas quer saber a verdade.

A cidade em que vive Ragle Gumm é uma cidade dos anos 1950; ele tem memórias da guerra, do tempo em que serviu num posto meteorológico numa ilha remota. Servir o exército numa guerra e ter que ficar vigiando nuvens pode ser péssimo para uns, adequado para outros.

Gumm sai de lá transformado num sujeito que, sem saber como, levado meramente pelo instinto e pelo esforço, adivinha diariamente onde vai tem mais probabilidade de cair uma bomba inimiga.

Gumm é um antecessor deste típico herói da FC cyberpunk, “o sujeito comum que tem um talento que ele usa mas não sabe explicar”. É o Case do livro Neuromancer e é Cayce Pollard da trilogia “Blue Ant”. É o seer, o homem que tem visões, e que na FC se transforma no homem cuja cabeça recebe algoritmos e os manipula de igual para igual.

É a pessoa cujo olho percebe detalhes, e cuja mente percebe padrões, e é capaz de tomar decisões quase sempre corretas em frações de segundo.

É o percebedor de padrões de regularidades, como os idiots savants que não conseguem se alimentar sozinhos mas resolvem em poucos minutos uma operação matemática complexa e enorme.



Esse mesmo tipo vamos encontrar depois em várias obras de Robert Silverberg, como o Martin Carvajal de The Stochastic Man (1975) cuja antevisão estatística abalava campanhas políticas e o mercado de ações, e o David Selig de Uma pequena morte (“Dying Inside”, 1972), o telepata que chegando à vida adulta começa a perder seus poderes mentais.



Anteriores ao protagonista deste livro de Dick são as raridades parapsicológicas que Theodore Sturgeon descreve em O Homem Sintético (“The Dreaming Jewels”, 1950) ou em More than human (1953). Não são heróis propriamente de inteligência superior. Desajustados sociais, marginais meio romantizados, esquisitos mas humanos. Pessoas que fazem algo sobrenatural, algo raro que pode ser útil, na paz e na guerra.

A Guerra Fria foi uma época em que todos os “talentos selvagens” relativos à mente foram sendo testados. Desde o LSD administrado sem aviso às cobaias, como na recente série de TV Wormwood quanto aos delírios de laboratório deixando sequelas.

Ou as verbas investidas em paranormalidade (há uma versão jocosa disto em Homens Que Olhavam Para as Cabras, 2009, de Grant Heslov), ou a criação de um “Arquivo X” só para rastrear o lumpen-sobrenatural.

É meio repetitivo falar em Guerra Fria como grande influência na obra de Dick, mas essa paranóia constante aparece em quase tudo dele. Não o medo do Comunismo ou do Nazismo, que aparecem citados em poucos livros. Mas o medo da sociedade de vigilância e punição a ser instalada para poder produzir uma defesa contra a ameaça comunista e nazista.

A Guerra Fria era a ameaça de uma guerra atômica que nunca chegou a acontecer (a não ser para duas cidades do Japão), e para que ela não acontecesse criaram-se imensas estruturas militares, tecnológicas, jurídicas, financeiras. A atual Sociedade da Hipervigilância pode até nem ter sido o objetivo inicial da Guerra Fria, mas é resultado dela.

É ao mesmo tempo a sociedade do espetáculo, da vigilância, da interconexão, do acompanhamento. De certa forma,Time Out of Joint é mais uma das obras de P. K. Dick onde um personagem parece dizer: “descobri que sou o homem mais importante do mundo”. Foi este o título de uma tradução portuguesa deste livro.


O paranóico descobriu-se no centro de um mundo que o conhece e acompanha suas ações com ansiedade. E não só isto: o mundo em que ele vive foi criado para ele, em função dele, é um paraíso classe-média feito à sua imagem e semelhança.

Já a vida pessoal de Truman Burbank, no filme de Peter Weir, é apenas o mais bem produzido reality show da Terra, e com uma cereja no bolo: o imenso novelão é encenado à revelia do personagem principal, para quem aquilo é uma cidade de verdade. Ele pensa que aquele trabalho é de verdade, que aquela esposa é de verdade...

Por isso que Truman Burbank gostava de tomar cerveja. Nenhum filósofo, nenhum cientista pode dizer que aquela cerveja que ele tomava ali não era real.

O Tempo Desconjuntado tem algumas das melhores páginas “philipkdickianas” da literatura de FC, aqueles trechos onde a fachada do Real se rasga e deixa entrever alguma coisa que existe por trás.

E no faz sentir admiração por um personagem que decide ir em frente e confirmar uma dessas duas hipóteses: ou eu fiquei louco, ou o mundo em que eu vivia era uma mentira.