sexta-feira, 25 de outubro de 2019

4516) "W, ou a Memória da Infância" (25.10.2019)




Este livro de Georges Perec (publicado em 1975) é uma mistura de memorialismo, romance de aventuras e distopia política.

Perec declarou certa vez o seu propósito de nunca escrever dois livros do mesmo tipo (ou “pertencentes ao mesmo gênero” – não lembro se ele chegou a verbalizar assim). Pelo que sei, conseguiu. Até sua morte, em 1982, cada obra sua tem perfil único, feição única.

O romance de Aventura Marítima de W começa na primeira pessoa, contado por um sujeito que faz um vago resumo de si mesmo, afirma que desertou do Exército e recebeu papéis falsos com o nome de “Gaspard Winckler”. Com isso foi morar na Alemanha onde agora, modestamente, obscuramente, trabalha numa oficina mecânica.

Um homem misterioso faz contato com ele. Diz saber que ele usa documentos falsos, e como os obteve. Explica que o verdadeiro “Gaspard Winckler” é um menino surdo-mudo de oito anos, filho de uma famosa cantora lírica. A mãe tentou de tudo para quebrar o isolamento do filho, que hoje seria considerado um pouco autista. Numa viagem de barco perto da Terra do Fogo, o barco naufraga, todos morrem – e o menino surdo-mudo desaparece.

O desconhecido incumbe o falso Gaspard Winckler de viajar para lá e encontrar o verdadeiro dono do seu nome.

Neste ponto, a narrativa se interrompe. Há um hiato indicado pelo sinal: 

(...) 

Acontece (em termos retóricos) uma aposiopese, uma interrupção do discurso sem que se conclua a idéia iniciada. O livro anuncia a sua “Segunda Parte”.

E o capítulo seguinte começa:

Lá longe, na outra extremidade do mundo, haveria uma ilha. Ela se chama W.

E tem início a descrição da Distopia Política: uma ilha onde vigora uma civilização masculinista voltada para os esportes e as competições em estilo olímpico. As descrições são minuciosas. Aquele mundo é só dos homens, e para os homens: as mulheres são em número reduzido, vivem presas em gineceus, servem apenas para executar trabalhos domésticos e para serem fecundadas.



Deduzimos que o falso Winckler viajou para o Atlântico Sul para localizar o menino e, de algum modo, foi parar nessa ilha, que fica nas imediações. Mas os capítulos, daí em diante, não são mais narrados por ele, e sim por um observador distanciado, que descreve, explica, afirma, comenta, mas jamais assume um “Eu” pessoal.

A ilha de W tem quatro aldeias que vivem em permanente competição atlética umas com as outras, num sistema complexo de campeonatos e torneios. A princípio temos a impressão de uma cultura saudável, voltada para o lema “mente sadia em corpo são”, mas aos poucos vão sendo descritos os jogos de poder, as imposições ditatoriais, a opressão das mulheres, as catimbas, as violências, as tramoias e as conspirações extra-campo que acabam decidindo os torneios atléticos.

A história que começara como uma romântica e aventurosa narrativa de Julio Verne acaba se transformando num pesadelo onde se mistura o culto ao corpo dos filmes nazistas de Leni Riefenstahl, a opressão kafkeana tipo Na Colônia Penal, e o jogo de controle e aleatoriedade que mergulha numa passividade perplexa as cobaias da “Loteria em Babilônia” de Jorge Luís Borges.

Essas duas narrativas se sucedem, com esse “buraco” bem no meio, quase como se o primeiro narrador tivesse sofrido um trauma que o deixou amnésico, incapaz de lembrar quem era ou o que buscava ali, e podendo apenas descrever o pesadelo olímpico em que acabou mergulhando.

E toda essa narrativa é intercalada pelas memórias intensamente pessoais do autor Georges Perec, sua escassa autobiografia: quem eram os pais, como morreram (o pai lutando pela França na II Guerra, a mãe no campo de Auschwitz), como foi criado pelos tios, onde estudou, com quem brincava, as casas onde morou, as coisas que lhe aconteciam sem que ele, pequeno, as compreendesse de todo.

Os capítulos são alternados: aventura, biografia, aventura, biografia... E também a narrativa pessoal sofre um “buraco” entre a Primeira e a Segunda Parte – justamente no trecho em que Perec, com seis anos, é embarcado às pressas num trem, pela mãe, para a casa de parentes, e nunca mais a vê.

Esse corte simétrico nas duas narrativas assinala a ruptura em ambas. Uma mãe morre. Um menino perde seu “chão”, desaparece. Um adulto vê-se impelido a salvar esse menino, mas o mundo agora virou um pesadelo totalitário.

Podem me chamar de doido, mas eu vejo um paralelo psicológico e estrutural entre essa narrativa e o Ciclo da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.


Ambos os autores tentam resgatar, através de uma narrativa com início aventuroso e excitante, uma infância que foi cortada bruscamente por uma tragédia. Essa narrativa de aventuras, fraturada pela tragédia, não é contada até o fim.

No caso de Ariano, a história de Quaderna, de Sinésio e do mistério da Pedra do Reino tem um “buraco” no centro – até hoje não sabemos direito o que aconteceu entre 1935 (quando a “Estranha Cavalgada” invadiu a vila de Taperoá) e 1938 (quando Quaderna presta seu depoimento ao Juiz Corregedor, narrando os fatos, mas nunca cobrindo todo o período).

As partes publicadas do romance de Ariano (o Romance da Pedra do Reino, sua continuação Ao Sol da Onça Caetana e o folhetim As Infâncias de Quaderna) se esvaem e ficam incompletas, pelo menos na forma com que foram iniciadas. (Tal como a “Aventura Marítima” em Perec.)

A obra romanesca posterior de Ariano é o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores (2017), que ainda não li por inteiro, mas que não é uma retomada dos romances anteriores, tal como no livro de Perec a Segunda Parte não é uma retomada da Primeira. Entre essas duas metades, há um buraco, um vazio, um corte, um trauma.

Como se a aventura romanesca se revelasse, a meio caminho, insuficiente para dar conta de todos os conteúdos traumáticos ainda por despejar. E fosse preciso jogar para o ar tudo que fora escrito e recomeçar de outro ponto, de outra voz, de outro eu, de outra realidade, porque no meio daquela história a ser contada havia um buraco negro sugando para dentro de si toda a energia psíquica que dali se aproximasse.