sábado, 18 de fevereiro de 2023

4914) Seis frases marcantes (18.2.2023)




1
Barão Henrich von Brokenstein, 58 anos, cientista gótico, em pleno tumulto de uma experiência laboratorial na torre do seu castelo expressionista, onde pretende utilizar um algoritmo viral para multiplicar em tempo recorde as células de um embrião de leão-da-montanha, no que é atrapalhado o tempo inteiro pelo seu prestimoso mas confuso ajudante Ygor Bitcovic, 48 anos, corcunda, neurótico, caolho, que tenta fazer seis coisas ao mesmo tempo e desorganiza sete, até que o Barão Brokenstein, ao empurrá-lo num gesto impaciente, agarra-o de novo pelos ombros, olha com atenção seu rosto magro, nariz adunco, queixo comprido... e o tapa-olho negro que está cobrindo o olho direito, em vez do esquerdo. Desorientado com essa imagem incongruente, o Barão tartamudeia: “Ygor! Tem algo de  diferente em teu rosto. Fizeste a barba, por acaso?...” E ele responde: “A minha barba nunca cresceu.”
 
2
Beto Miolo, 19 anos, primeiro volante do time juvenil do Rodoviários Esporte Clube, de Cabiúna (Alagoas), terminou eufórico seu primeiro treino na equipe principal; após o chuveiro abordou na saída do vestiário o técnico Joãozinho de Berto, e indagou como se saíra, ganhando um tapinha no ombro e o veredito: “Bom demais! Nota dez!”, o que o levou a fantasias de profissionalização, que foram incrementadas quando os colegas o chamaram para o almoço habitual no Bar do Haroldão, na esquina do campo, onde se sentaram em grupo, contando piadas, trocando provocações, enquanto Haroldão fazia aterrissar na mesa duas terrinas respeitáveis de uma macarronada à bolonhesa oleosa e descorada, que todos atacaram com o estoicismo dos famintos, até que Haroldão parou junto do técnico, botou o pano de prato no ombro, perguntou como estava o almoço, e Joãozinho de Berto respondeu com entusiasmo: “Bom demais! Nota dez!”.
 
3
Lucinha Mamede, 15 anos, aluna do Colégio Samaritano, bonitinha mas meio azougada, ao reagir de forma inesperadamente grosseira às tímidas investidas paqueratórias de seu colega de classe Mateus Rodrigues Lemos, 16 anos, e tentando justificar-se diante das colegas que a cercaram com os argumentos previsíveis  de “você não é essas brastemps” e “caiu na rede é peixe”, o que a fez explicar cheia de angústia: “Esse menino me passa uma energia muito negativa, eu acho que ele é feito somente de elétrons”.
 
4
Indaiara Ferreira de Sousa, 26 anos, dançarina da boate e pensão “Love To Love”, no km 136 da Rio-Bahia, ao ser convidada a dar um breve depoimento para uma equipe da TV Agreste que realizava um documentário sobre o cotidiano dos motoristas de caminhão, fregueses tradicionais daquele estabelecimento; ela concordou em gravar, pediu licença, foi lá dentro, voltou de banho tomado, roupa trocada, maquiagem feita, sentou junto à janela que lhe indicaram, ajeitou a longa cabeleira de índia, e à primeira pergunta do jornalista cruzou a perna num gesto aristocrático, ergueu as sobrancelhas e declarou: “Olha, meu bem, nós aqui temos uma vida... uma vida... uma vida favoravelmente maravilhada.”
 
5
Apolônio Romão Gadelha, 92 anos, coronel da Guarda Nacional, fazendeiro, ex-deputado, faleceu à 01:32 de uma madrugada fria na região do Teixeira, depois de uma noite inteira de aflição em que a respiração lhe vinha como que através de tubulações de esgoto; teve tempo, portanto, para se despedir espiritualmente de seus hectares e sesmarias, de seus celeiros e currais, de suas alfaias, seus dobrões, e de seus oito filhos e filhas que assistiram o desenlace de pé e de cabeça baixa, todos mansos e caladinhos. Quando seu rosto se imobilizou, a agora viúva, Dona Quitéria, 63 anos, abaixou-lhe as pálpebras, desprendeu da mão ainda morna do defunto os dedos entanguidos que a seguravam desde o final da tarde, ergueu-se, suspirou bem fundo, encarou aquele grupo de rostos náufragos e anunciou: “Vou fazer um café.”
 
6
Sandra Natália Girão, 52 anos, professora, chegou como todos os dias à Faculdade de Ciências Sociais Tobias Barreto, entrou na sala de aula às 7 em ponto, jogou na mesa a bolsa, os livros, e o material impresso, deu bom dia, e disparou um desabafo contido há anos, no sentido de que um país não prospera e uma nação não convive em paz se não huver um mínimo de contrato social entre as partes; se não se encurtar a distância entre o estrato mais rico e o mais pobre; se não forem usados todos os mecanismos jurídico-institucionais para extirpar a mentalidade colonialista, extrativista e escravocrata que ainda contamina nosso arremedo de República; se cada pessoa não se convencer de que ação política e cidadania são exercidas em casa e na rua nos sete dias da semana, e não apenas nas urnas de dois em dois anos; se não acabarmos com a cupidez insolente dos investidores, a cumplicidade servil dos cooptados, a retórica cínica e desonesta da pseudo-imprensa, e a passividade cega dos magarefes que se julgam donos do matadouro; e quando fez pausa para tomar respiração o rapaz de boné e óculos da segunda fila ergueu o braço e perguntou: “Cai na prova?...”