quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

4781) O mundo sem os Beatles: "Yesterday" (6.1.2022)


Um truque frequente da ficção fantástica é imaginar o nosso mundo quase igual ao que é – mas com uma mudança essencial, radical. Tudo igual – menos aquilo.
 
E mais: tudo igual, menos aquilo... e as consequências daquilo. Há inúmeras histórias alternativas em torno de premissas como (olha o maior clichê de todos) a vitória de Hitler na II Guerra Mundial. Ou a derrota da União, na Guerra Civil norte-americana. Ou um império romano onde não existiu Jesus Cristo. Ou um mundo onde a América não foi descoberta.
 
Adolfo Bioy Casares imaginou um mundo sem os celtas (“A Trama  Celeste”). Kim Stanley Robinson imaginou um milênio inteiro sem a Europa (que teria sido dizimada pela Peste Negra), em The Years of Rice and Salt.  E assim por diante.
 
Essas ausências podem ser menores, e mais idiossincráticas, mais peculiares. Georges Perec imaginou um mundo sem a letra “E” (La Disparition), e Damon Knight imaginou um mundo sem a letra O (“O”). Stanislaw Lem imaginou uma máquina capaz de “desexistir” qualquer coisa começando com “N” (The Cyberiad).
 
E Danny Boyle, com seus roteiristas Richard Curtis e Jack Barth, imaginou um mundo de pesadelo onde os Beatles jamais teriam existido. Existe o rock, os produtores, os executivos de gravadora, existem bandas... mas não os Beatles.
 
Yesterday (2019) é um filmezinho simpático de sessão da tarde, cujo argumento bem poderia ter sido concebido para uma série tipo Além da Imaginação.


Jack Malik (Himesh Patel) é um roqueiro comum, tentando decolar na carreira. Tem a seu lado a amiga e empresária Ellie (Lily James), apaixonada por ele em segredo. Uma noite, ele sofre um acidente no instante em que um fenômeno totalmente Twilight Zone interrompe por doze segundos toda a energia do globo. Quando sai do hospital, ele constata que o mundo é o mesmo – só que ninguém conhece os Beatles. Nem mesmo o Google.
 
O passo seguinte para ele (com um remorso e uma hesitação bem desenvolvidos no roteiro) é dizer a todo mundo que é o autor de musiquinhas como “Back in the USSR”... “Yesterday”... “Hey Jude”...
 
O enredo é sem muitas surpresas. Em seguida à premissa inicial, brotam piadinhas menores, bem distribuídas. Além dos Beatles, no novo mundo de Jack Malik não existem nem cigarros nem Coca-Cola – e ninguém percebe. Nada é insubstituível.


O Danny Boyle deste filme nem parece o autor de Trainspotting (1996), aquele filme cru, debochado, angustiado e cínico sobre rapazes escoceses que não têm o que fazer da vida. Trainspotting é um filme alternadamente pessimista e bem-humorado, fala de droga, de crime, de trambique, de solidão, de amizade, de autoritarismo, de carinho.
 
Lembra os filmes britânicos dos anos 1960 sobre rapazes sem rumo das vilas operárias e da baixa classe média, filmes como Billy Liar (1963) ou Saturday Night, Sunday Morning (1960), ou Gosto de Mel (1961), ou The Loneliness of the Long Distance Runner (1962) e tantos outros. Nada de Hollywood, na Grã-Bretanha daquele tempo. Uma vida amarga, uma vida em preto-e-branco, uma vida sem graça, sem amor, sem liberdade, sem alegria, sem pílula, sem sexo. Uma vida onde os Beatles (ainda) não existiam.


Um ponto de inflexão na carreira do diretor talvez seja o premiado Quem Quer Ser Um Milionário? (2008), que é uma história beeeeem Hollywoodiana (ou “Bollywoodiana”) sobre o rapaz humilde que vira milionário.
 
Jack Malik, o herdeiro espiritual dos Beatles em Yesterday, nada tem dos rapazes de Trainspotting: Não é um personagem visível (mesmo com o esforço do ator que o interpreta). É uma silhueta de papelão destinada pelo roteiro a ser um milionário, num filme todo articulado com a previsibilidade de um conto-de-fadas para adultos. (Ao que parece, todo adulto, hoje em dia, acredita que pode se tornar milionário.)


O mais interessante no filme de Boyle é o modo como o mundo fantástico procura acomodar suas camadas.  A natureza tem horror ao vácuo. Uma vez postulada a existência de um universo paralelo onde os Beatles nunca se formaram, a narrativa se desenvolve como se aquelas canções continuassem latentes, num limbo, pedindo para serem escritas, pedindo para surgir à tona.
 
E Jack Malik percebe a sua enorme responsabilidade. Como somente ele (aparentemente) lembra da existência dos Beatles, cabe-lhe trazer ao mundo todo o cancioneiro do quarteto de Liverpool. Um momento particularmente amargo do filme é quando vemos que Jack não lembra a letra de “Eleanor Rigby”, com a aterrorizante certeza de que, se ele não lembrar, a canção nunca vai ser gravada.
 
Carl Sagan, em seu livro Cosmos (1980), comenta a facilidade com que os tesouros culturais se perdem com o passar dos milênios, e a gente não se dá conta. Sagan lembra que das 123 peças teatrais atribuídas a Sófocles apenas sete sobreviveram. Como podemos ter certeza de que eram estas as melhores?
 
É como (diz ele) se conhecêssemos apenas duas peças de um tal William Shakespeare: Coriolano e Conto de Inverno, e tivessem chegado a nós apenas os títulos de outras, como Hamlet, Macbeth, Romeu e Julieta...
 
É este o drama de Jack Malik, porque tudo passa a depender da memória dele, da sua capacidade de recordar letras, melodias, harmonias, concepções de arranjo... Porque ele corre o risco de ficar existindo num mundo onde se perderam “For No One”, “Happiness Is a Warm Gun” ou “Here Comes The Sun”, mas em compensação talvez ele consiga lembrar tintim por tintim “Not a Second Time”... “Little Child”... “The Night Before”...



É um pouco como o drama do personagem de Borges no conto “Pierre Menard, autor do Quixote”. O fictício escritor francês quer reescrever “de memória” o livro de Cervantes. Por sorte, o livro não se perdeu, tudo é apenas um projeto quixotesco do autor, mas vendo Yesterday não há como não pensar que reescrever de memória algumas canções dos Beatles é quase tão difícil quanto reescrever o Quixote.
 
O filme de Danny Boyle é bobinho, é sessão-da-tarde, mas acaba sendo indiretamente uma homenagem à memória, à capacidade de salvar alguma coisa através da lembrança. Como no Fahrenheit 451 (livro de Ray Bradbury, filme de François Truffaut), em que num futuro onde os livros são proibidos a existência de uma obra depende apenas da sobrevivência de uma pessoa (uma só, em toda a humanidade) que traz aquele livro todo de cor em sua lembrança.