quinta-feira, 20 de novembro de 2014

3663) Conto curto (20.11.2014)




(foto: Rui Palha)

Imagine uma cidade à noite, moderna, mas centrão velho decadente de alguma capital européia.  Centrão perto do cais do porto, onde esta rua aqui está deserta e na próxima tem dez bares cheios.  E imagine um sujeito andando apressado, não como quem foge de alguém, ou está com medo que alguém surja de uma sombra e o esfaqueie; mas como alguém que está um pouco atrasado para um compromisso mas está tranquilo, já recalculou seu tempo e sabe que naquele passo chegará na boa.  O homem anda, passa por arcadas vistas de baixo para cima, cruza pela faixa um asfalto molhado e brilhante, atravessa becos onde só se veem latas de lixo e o onipresente gato filmando tudo com os olhos.

O homem está avançando pela rua e agora está sendo visto de dentro de uma sala no quarto andar de um edifício vetusto e exuberante, como um hotel decandente para aristocratas que há vinte anos não consegue reformar suas instalações.  São dois homens de roupa escura e uma mulher com uma taça na mão.  Lá vem, diz um deles, atraindo a atenção dos dois, que conversavam em voz baixa.  O homem junto à janela tem os olhos de um demônio e o cavanhaque de um impostor.  O homem mais jovem é enorme, tem a barba por fazer, exibe um coldre-de-arma em diagonal no peito.  A mulher, bem, a mulher é a única coisa que eles dois enxergam, e essa foi a tragédia dos três.

O homem veio, a porta do edifício foi aberta, ele subiu os quatro andares, bateu à porta.  Abriram e ele se deparou com o trio: a mulher sentada bebericando seu gimlet, o homem mais velho de braços cruzados junto à janela, o grandão armado fechando a porta às suas costas.  Ele cambaleou, caiu de joelhos no meio da sala e recitou um soneto de Shakespeare.  Foi percorrido por um estremeção, tombou, e pareceu desacordado por algum tempo.

“Recebeu o implante dez anos atrás: este endereço, o texto, tudo", diz o homem mais velho.  "Mora a seis mil km daqui, e gastou tudo que tinha para cumprir essa missão sem sentido que lhe impusemos.”  O recém-chegado dormia, ressonava sonoro e largadão. O homem armado estava perplexo. “É hipnotismo?”  “Não,” disse o outro, “é uma recriação high-tech disso. Funciona com senhas.”  “Números?”  “Não,” foi a mulher quem respondeu. “Palavras.”  Virou-se para o mais velho e disse: “Vercingetórix em Mohenjo Daro”.  O rosto dele amarelou e ficou tão artificial quanto o cavanhaque.  Ela disse ao outro: “Weltanschauung no Seridó”.  O homem desabou, fulminado. Ela os revistou, pegou tudo que precisava, inclusive do homem que dormia.  Olhou bem para o rosto dele.  “Dez anos e não mudou nada,” pensou ela, “e ele dizia mesmo que iria até o fim do mundo até me encontrar”.