quarta-feira, 30 de novembro de 2022

4888) O realismo é perigoso? (30.11.2022)



A frase mais famosa de Guimarães Rosa talvez seja a de que “Viver é perigoso”, glosada e reglosada ao longo de todo o Grande Sertão: Veredas. Nas prateleiras da minha memória, está lado a lado com o “Caia na estrada, e perigas ver”, dos Novos Baianos. Dois faróis de sabedoria, que ajudam a gente a triangular trajetos.
 
Isto me vem à mente lendo algumas páginas sobre o destino trágico de Frederick Schiller Faust (1892-1944).  Ninguém o conhece por esse nome, que era seu nome verdadeiro e tem um curioso timbre germânico. Ele é conhecido como Max Brand.
 
É um dos maiores autores de histórias de faroeste, e produziu uma quantidade espantosa de romances e contos ao longo de uma vida que nem chegou a ser muito longa – ele morreu a poucos dias de completar 52 anos.  No Brasil, foi publicado dos anos 1950 em diante pela saudosa Editora Vecchi, que traduziu vários livros da sua série “Silvertip”.



Frederick Faust é considerado ainda hoje um poeta de talento, no estilo clássico, erudito. Financiava sua poesia com os abundantes livros de “Max Brand” (e outros pseudônimos), produzindo histórias de cowboys, índios, pistoleiros, rancheiros...
 
Escreveu algumas raras histórias de ficção científica, como The Smoking Land (1937), sobre uma civilização futurista oculta no Ártico. Escreveu também aventuras capa-e-espada ambientadas na Europa Renascentista, ao estilo de Dumas ou de Rafael Sabatini, como as aventuras de “Tizzo, the Firebrand”, sob o nome de “George Challis”.


 
Ganhou tanto dinheiro que resolveu ir morar na Itália. Comprou uma villa nas proximidades de Florença, onde batucava interminavelmente na máquina de escrever, enviando contos para todo tipo de revista, desde pulp magazines como Argosy até o caro The Saturday Evening Post.
 
Lee Server, um ótimo historiador da pulp fiction dos EUA, conta um aspecto interessante do estilo e da imaginação de Max Brand:
 
O seu Oeste era uma ambientação acima de tudo poética, com poucos pontos de referência reais, no espaço ou no tempo. Ele usou o tema das violentas fronteiras da América como um cenário quase abstrato para a recriação de épicos da Antiguidade ou mitos clássicos. O herói de The Untamed, o misterioso jovem chamado “Whistlin’” Dan Barry, é uma referência explícita ao “grande deus Pã”. Trailin’ reconta a história de Édipo, Pillar Mountain o mito de Teseu e Hired Guns é uma versão faroeste da Ilíada. Numa atitude bem característica, Brand realizou certa vez uma viagem ao Oeste por conta de seus editores, para se aclimatar e absorver a atmosfera local; passou o tempo quase todo num quarto de hotel, escrevendo mais algum dos seus faroestes inautênticos e extraordinariamente populares.
(Encyclopedia of Pulp Fiction Writers, Chackmark Books, 2002, trad. BT)
 
É uma revelação interessante, inclusive por esta aparente contradição na última frase. Pelo que diz o autor, Faust dava pouca atenção àqueles detalhes factuais de que a literatura norte-americana se orgulha tanto. Autor de best-seller adora dizer que no quilômetro tal de uma rodovia no Arizona há uma pedra e nela está rabiscado um nome – o leitor viaja até lá e constata que é verdade, publica foto e tudo. Faust não ligava para os detalhes factuais, típicos, documentais. Ia mais fundo, nos arquétipos emocionais da história de aventura épica; e, ao que parece, o público ia junto com ele, porque os livros são reeditados, e adaptados, até hoje. Ele criou, por exemplo, o personagem do “Dr. Kildare”, que apareceu em vários seriados famosos da televisão.



O que é incrível é que ele conseguisse fazer isso com a mesma constância e em tal quantidade. John Clute, na Encyclopedia of Science Fiction, diz que suas obras completas chegam à soma de 30 milhões de palavras. Um grande amigo de Faust, Frank Gruber, afirma em The Pulp Jungle (Sherbourne Press, 1967) que esse número chegou a 45 milhões.
 
Para efeito de comparação: Moby Dick tem 209 mil palavras, Guerra e Paz tem 561 mil, E o Vento Levou tem 418 mil.  
 
Frank Gruber, que dedica a ele um capítulo inteiro de The Pulp Jungle, conta com admiração que Faust era um homem enorme, com pernas compridas, mãos grandes. Costumava escrever sentado diante de uma mesinha com uma máquina de escrever portátil onde batucava sem parar.
 
Escrevia catorze páginas pela manhã, e dava o dia por terminado. Ia beber (“era o maior bebedor que conheci”, diz Gruber). Quando alguém o questionava, ele dizia que todo mundo é capaz de escrever catorze páginas num dia, mas que ele era o único capaz de fazer isso 365 dias por ano.
 
Eu conversava muitas vezes [diz Gruber] sobre os hábitos alcoólicos dele. Ele dizia apenas que conseguia escrever apenas depois de tomar algumas doses e “se evadir do mundo real”. Precisava do estímulo da bebida para se transportar àquele mundo de fantasia sobre o qual escrevia tão bem.
 
E Ron Goulart confirma, em Cheap Thrills (Hermes Press, 2007):
 
Para poder fazer a transição entre a escrita de poemas e a da prosa, Faust se convenceu de que precisava beber. Bebia xerez ou uísque pela manhã, cerveja ou vinho à tarde, coquetéis antes do jantar, vinho durante o jantar e uma dosezinha antes de dormir. Suas cartas para os amigos oscilavam entre declarações de que “a bebida atualmente está sob controle” a confissões de que “reconheço que só consigo escrever quando bebo.”
 
Quando começou a guerra, o ambiente na Itália ficou irrespirável. “Heinie” Faust (como os amigos o chamavam) encaixotou suas coisas e voltou para os EUA. Foi trabalhar em Hollywood. Estava ganhando 3 mil dólares fixos, por semana, para trabalhar em roteiros.
 
Seu amigo Steve Fisher, outro roteirista, autor de I Wake Up Screaming, conta que certa noite estavam conversando em Hollywood com um oficial do Exército que atuava como consultor técnico dos filmes. E Faust, ouvindo relatos da campanha da Itália, um país que ele conhecia tão bem, disse:
 
– Pois sabe o que eu gostaria, coronel? Gostaria de ir para a frente de batalha. Gostaria de viajar junto com uma companhia de soldados da infantaria. Comer junto com eles, dormir junto com eles, conversar à noite, ouvir suas histórias. Lutar ao lado deles, participar de ações no campo de batalha – e na volta escrever um livro contando a história daquela companhia. (trad. BT)
 
O coronel mexeu os pauzinhos a que tinha acesso. Agora é Ron Goulart quem conta:
 
Quando a guerra começou ele deu um jeito de ser indicado como correspondente de guerra para Harper’s Magazine. Escreveu da Itália para a esposa: “Não perco a esperança de sair disto tudo como um homem melhor. Sempre desejei ser capaz de virar a página, subir a um patamar mais elevado. “  Foi morto em maio de 1944, durante uma carga a uma posição da artilharia alemã, nas colinas italianas. Participou do avanço no meio dos jovens soldados. Tinha cinquenta e dois anos, e era o correspondente mais idoso na frente de batalha. (trad. BT)
 
É possível sugerir a hipótese de que o realismo literário, que “Max Brand” sempre evitou, tenha por fim causado indiretamente a morte de Heinie Faust.


 
 
 







domingo, 27 de novembro de 2022

4887) 33 livros (27.11.2022)





1
Aquele livro de uma editora descolada e moderna, que a gente pega no balcão da livraria e leva alguns minutos tentando entender as letras do título. 
 
2
Aquele livro grosso, caro, de texto cerrado em fonte pequena, que a gente compra sem folhear e guarda na estante sem abrir.
 
3
Aquele romance estrangeiro de capa instigante, contracapa cheia de fragmentos elogiosos, que a gente compra, começa a ler, e por volta da página 50 percebe que se trata do volume 3 de uma série cujos dois primeiros ninguém se lembrou de publicar aqui.
 
4
Aquele livro de contos de um dos seu autores preferidos, projeto gráfico sedutor, preço caríssimo, mas você acaba comprando porque dos quinze contos incluídos tem dois que você não tem ainda. 
 
5
Aquele livro chato pra caramba que você devolveu à prateleira várias vezes, e quando abre agora encontra dentro dele a conta de luz que acabou não pagando e que resultou naquela tremenda confusão do ano passado, a festa-de-aniversário com energia cortada.
 
6
Aquele livro de Fantasia Heróica, com 500 páginas, que você estava lendo no maior entusiasmo, mas precisou fazer uma viagem, a viagem se prolongou, na volta teve problemas de saúde, a vida veio em ondas como o mar, e agora você percebe que tinha parado na página 322... e agora não lembra nem como é o nome do rei.
 
7
Aquele livro que você tem, mas nenhuma bio-bibliografia do autor registra; e agora?
 
8
Aquele romance de um autor de quem você já leu (e gostou de) todo o resto, menos este, cuja leitura até hoje não engatou.




9
Aquele livro lido, querido e amado na infância, que você reencontrou na idade adulta, e guardou sem ler, para não estragar tudo. 
 
10
Aquele livro estrangeiro que veio com muitas páginas faltando, você mandou um email com foto para o autor, explicando, e recebeu um exemplar perfeito, com dedicatória.
 
11
Aquele livro cuja sinopse é até promissora, mas você não se anima a ler porque o autor é um chato.
 
12
Aquele livro cuja prosa é tão energética que você lê meia página e corre para o teclado, com a cabeça a mil.
 
13
Aquela coletânea enorme, bem produzida, futura referência para muitos anos, e para a qual você foi convidado a contribuir... mas não levou fé.
 
14
Aquele livro que você comprou por engano, leu por uma questão de amor-próprio, e gostou por mera teimosia.   
 
15
Aquele livro que qualquer frase, de qualquer página aberta ao acaso, serve de oráculo.
 
16
Aquele livro que, pela data anotada com sua letra na página de rosto, é o que está com você há mais tempo, na vida inteira.



17
Aquele livro todo sublinhado e anotado com sua letra, e que você não lembra de ter lido.
 
18
Aquele livro que alguém lhe emprestou há 25 anos, e que você ainda guarda, com a firme intenção de devolver.
 
19
Aquele livro precioso e insubstituível, mas já esbagaçado de tanto manuseio, e que você não manda pro encadernador com medo que ele suma.
 
20
Aquele livro que você já leu e releu sem compreender muito bem, mas sente ali verdade, sente ali grandeza, sai dali fortificado.
 
21
Aquele livro onde o autor não é ninguém, o texto não é nada, mas o que a dedicatória diz é tudo.
 
22
Aquele livro que você comprou num sebo por curiosidade, leu, guardou, se desfez dele numa mudança, precisa dele agora para um trabalho, e não anotou nem o título nem o autor.
 
23
Aquele livro que foi seguro a quatro mãos, lido a quatro olhos, recitado baixinho a duas bocas.
 
24
Aquele romance que é até legal, mas você acha os nomes dos personagens totalmente equivocados.



25
Aquele livro que, mal começa a ler, você tem a sensação de que já tinha lido antes, e que o autor dele também.
 
26
Aquele livro que por alguma razão misteriosa você leu e releu e não teve coragem de sublinhar.
 
27
Aquele livro que, a cada vez que você pega para ler, a lombada se quebra mais um pouco, e mais páginas se soltam.
 
28
Aquele romance cujo enredo, antes de chegar na metade, já deu três vezes a impressão de que estava acabando.
 
29
Aquela 1ª. edição raríssima que você achou por 10 reais na lona da calçada.
 
30
Aquele volume bobinho que você comprou somente pelo hábito de trazer um livro de cada cidade que visitava.
 
31
Aquele livro obscuro que um amigo lhe presenteou há dez anos, e toda vez que você o encontra ele pergunta: “E aí, leu?... Não é genial?...”
 
32
Aquele livro que só presta a capa.
 
33
Aquele livro de lombada à base de cola, que precisa ser sujeitado com as duas mãos para ser lido, porque se você o larga ele dá um pulo, feito menino birrento, e volta a se fechar.

 



quinta-feira, 24 de novembro de 2022

4886) "Em tradução livre" (24.11.2022)




Volta e meia eu me deparo, na imprensa, com essa expressão. Que eu entendo, e posso até usar; mas acho que tem gente usando sem necessidade.
 
Vi uma matéria sobre o lançamento do novo livro de Bob Dylan, um ensaio onde ele comenta canções clássicas (e algumas obscuras) da música norte-americana. Às folhas tantas, a matéria diz: 
 
Tudo aconteceu quando Bob Dylan mencionou Joe Satriani em uma fala de seu novo livro, "Philosophy of the Modern Song" ("Filosofia da Canção Moderna", em tradução livre).
 
Sinceramente, não me ocorre nenhuma outra tradução possível, livre ou não-livre, para esse título. E olha que eu sempre defendo a teoria de que “toda” frase pode ser traduzida de muitas maneiras diferentes.
 
Quando a pessoa usa esse álibi, está se precavendo contra uma possível crítica dos leitores. Está avisando: “Olha, eu não sou tradutor profissional, não sou especialista em tradução. Estou só dando essa versão livre, em português, para dar uma idéia ao leitor que não conhece inglês. Desculpe qualquer coisa.”
 
Uma escusa perfeitamente legítima.
 
Me acontece muitas vezes, principalmente ao escrever aqui no blog, que preciso citar e traduzir uma frase, um título, uma expressão qualquer. É uma frase complicadinha e eu fico hesitando entre duas ou três soluções possíveis. Mas... ora que diabos, estou só dando um exemplo, isto aqui é uma conversa. (Eu vejo blog como uma conversa, que pode ser mais formal ou menos, conforme o dia e a veneta.) O que faço? Mando a versão que no momento me parece mais passável, e sigo adiante.
 
Esse tipo de tradução é provisório, não-definitivo, não é preso a um atestado de legitimidade absoluta. Quem usa essa expressão o faz de maneira modesta, discreta, quase que pedindo desculpas por se meter a traduzir sem ser tradutor. Uma posição até elogiável, numa época de muita gente cheia-de-razão, como se diz na Paraíba.
 
Pouco tempo atrás estava rolando uma discussão sobre a série de TV Sandman, baseada na série de quadrinhos de Neil Gaiman. É um título que já havia sido usado por E. T. A. Hoffmann num conto famoso (“Der Sandmann”, 1817), sobre uma figura de pesadelo do folclore europeu.



Quando incluí o conto de Hoffmann numa antologia (Freud e o Estranho, Casa da Palavra, 2007), ele foi traduzido como “O Homem de Areia”. Tempos depois me ocorreu que uma tradução igualmente válida seria “O Homem da Areia” – porque esse personagem derrama areia nos olhos das crianças que não dormem, fazendo-os arder.
 
“O Homem de Areia”, título geralmente usado no Brasil, sugere um homem feito de areia; “O Homem da Areia” pode sugerir um homem que usa a areia para um fim específico, e a traz consigo num saquinho (como faz o personagem Morpheus, de Gaiman).
 
Sempre é possível encontrar uma tradução melhor que outra. Por isso os livros importantes são periodicamente traduzidos, para adequá-los à linguagem de cada época, à dicção de cada época, às nuances de vocabulário – que mudam o tempo todo.
 
O epíteto se aplica quando o livre-tradutor admite a probabilidade de outras soluções tradutórias  para aquela frase mas, por variadas razões, não quer se deter no exame dessas alternativas, até mesmo para não se desviar do assunto principal.
 
Muitas coisas que eu traduzo “en passant” (“de passagem”, em tradução livre) têm esta justificativa: “Olha, pessoal, esta frase aqui mereceria um exame mais aprofundado, mas vou botar esta versão quebra-galho, só pra dar uma idéia do que se trata”.



Se eu fosse me referir à canção mais famosa de Bob Dylan, “Blowin’ in the Wind”, diria: “Soprando no vento”. É a tradução mais imediata, mais ao pé da letra. Porque o sentido mesmo do verbo pediria algo como “Sendo soprada no vento”, ou “pelo vento”. The answer is blowin’ in the wind. A resposta está flutuando no vento, está pairando no vento, está sendo levada pelo vento...
 
Enfim: em diferentes momentos, eu optaria por diferentes soluções. Qualquer escolha deixaria uma inquietude de coisa-faltando. E eu acabaria apelando para a fórmula: “em tradução livre”.
 
 
 




segunda-feira, 21 de novembro de 2022

4885) Primeiras Estórias: "A Benfazeja" (21.11.2022)




É um dos contos mais estranhos da obra de Guimarães Rosa; o décimo-sétimo conto de Primeiras Estórias (1962). 
 
Começa pelo enunciado narrativo. É um conto onde a voz que narra está insistentemente se dirigindo a um possível público, um possível interlocutor coletivo, a quem ele trata de “vocês”. Não há como não lembrar que o enunciado narrativo do Grande Sertão: Veredas é de um narrador que se dirige a um interlocutor único, um “doutor”, um ouvinte culto que o escuta atentamente.
 
Guimarães Rosa é conhecido pela empatia, pela simpatia com que descreve e examina pessoas pobres ou mesmo miseráveis: doidos-de-rua, mendigos, caboclos broncos dos grotões. Uma exceção notável são os “catrumanos” que o bando de Riobaldo encontra no Grande Sertão: Veredas. Criaturas infra, que chegam a parecer sub-humanas (“quadrúmanos”) de tão rudimentares em sua fala, em seu comportamento. Mas em obras como “O Recado do Morro” (em Corpo de Baile) já se vê uma sucessão de doidos andrajosos e simpáticos, de vagabundos curiosos e inofensivos.
 
Em “A Benfazeja”, no entanto, a dupla de mendigos (que depois se expande em trio, ao ser referido um terceiro personagem) lembra aqueles mendigos sórdidos de filmes de Luís Buñuel, como Viridiana ou Los Olvidados. Mendigos imundos, antipáticos, repelentes, que não despertam a compaixão.   


(Viridiana, de Luís Buñuel) 


A personagem do título é uma mendiga  chamada de Mula-Marmela, que se arrasta pela cidadezinha servindo de guia para um cego, o Retrupé, um cego azedo, buñuelesco, cruel.
 
O homem maligno, com cara de matador de gente. Sobre os trapos, trazia um facão, pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E gritava, com uma voz de cão, superlativa. Se alguém falasse, ou risse, ele parava, esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo; não sabia nem podia. (p. 126)
 
Logo adiante, o narrador nos faz a revelação de que o Retrupé é filho do finado marido dela, o Mumbungo, um sujeito igualmente mau: “célebre-cruel e iníquo, muito criminoso, homem de gostar do sabor de sangue, monstro de perversias”. E que este tinha sido assassinado pela própria Mula-Marmela.
 
Dessa forma, o conto se coloca em torno dessa trindade de má aparência. Tudo que ele nos revela sobre os três mendigos é negativo. Chega a lembrar em certos momentos o modo como Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas, se refere aos jagunços inimigos, os “hermógenes” e os “ricardões”, assim coletivizados, misturados na mesma essência-ruim dos seus líderes.
 
E de parágrafo em parágrafo o autor vai descascando camadas dessa situação desconfortável, revelando motivações subjacentes.
 
O pai, o Mumbungo, se vivia bem com a mulher, a Mula-Marmela, e se ela precisava dele, como os pobres precisam uns dos outros, por que, então, o matou? (...) Mas, quando ela matou o marido, sem que se saiba a clara e externa razão, todos aqui respiraram, e bendisseram a Deus. (...) Mas não a recompensaram, a ela, a Mula-Marmela, ao contrário: deixaram-na no escárnio de apontada à amargura, e na muda miséria, pois que eis. (...) A mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora – da obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus escondidos corações, imploravam.  (p. 128)
 
Começa a se delinear, assim a razão desse dedo-em-riste do narrador, desse “vocês” com que ele se dirige a alguém – aos habitantes do lugar? Esse tratamento aparentemente respeitoso, do qual ele se serve para apostrofá-los:
 
E vocês não sabem que...
Vocês nunca desconfiaram...
Vejam vocês mesmos...
 
O horror despertado pela Mula-Marmela não é apenas o horror da repulsa pela sujeira e feiura. É um horror mesclado de remorso, por ter ela servido de executante da “obra altissima”, servido de carrasca em nome desse “vocês” sem rosto, eliminando o detestado Mumbungo. (Na França, dava-se ao carrasco oficial da República o título de “Senhor das Altas Obras”). 
 
Aos poucos, o narrador começa a fazer pequenas ressalvas sobre a criatura:
 
Ela cuida dele, guia-o, trata-o como a um mais infeliz, mais feroz, mais fraco. (p. 130)
 
Ela mesma o conduz, paciente, às mulheres, e espera-o cá fora, zela para que não o maltratem. (p. 132)
 
Mas, reparando com mais tento, veriam, pelo menos, como ela não é capaz de pegar estouvadamente em alguma coisa, nem deixa de curvar-se para apanhar um caco de vidro no chão da rua, e pô-lo de lado, por perigoso. (p. 131)
 
É uma situação clássica, a da personagem que é desprezada pelo grupo, mas usada por ele quando necessário, para “fazer o serviço sujo”. Referência maior: Bola de Sebo (1880), de Guy de Maupassant.
 
Dessa massa informe de degradação humana o narrador vai extraindo pequenas redenções, pequenos gestos de humanidade que ainda bruxuleiam na mendiga.




Na reta final do desfecho do conto (“no fino do funil”, como diz saborosamente o autor) o cego Retrupé, alucinado por uma raiva sem rosto, puxa a faca, tenta matar a velha, gira desferindo golpes na treva e no vácuo, enquanto ela se mantém afastada. Ele tomba no chão, aos choros: “-- Mãe... mamãe... minha mãe!” Ela recolhe o chapéu caído, coloca-o de volta na cabeça dele, limpa a poeira: “ – Meu filho...”
 
O desfecho é trágico – o cego Retrupé morre durante a noite, com uma crise de falta de ar, e não falta quem na vila afirme que ela o teria estrangulado durante o sono, para ver-se livre dele. Quem pode saber? Mal vista, mal pensada e mal querida, a Mula Marmela vai-se embora dali, no derradeiro parágrafo:
 
E, nunca se esqueçam, tomem na lembrança, narrem aos seus filhos, havidos ou vindouros, o que vocês viram com esses seus olhos terrivorosos, e não souberam impedir, nem compreender, nem agraciar. De como, quando ia a partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando – se para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com quem ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem nela, entanto. (p. 134)
 
É um conto que se destaca na obra de Rosa, pela ambientação persistentemente repulsiva, incômoda, brutal. Mais uma vez, não me vem outro paralelo senão os filmes de Luís Buñuel sobre aquela multidão de aleijados, cegos, leprosos, arrastando-se esfarrapados pelas estradas poeirentas da Espanha ou do México. É a tragédia lumpen, a degradação dos que não têm nada, dos que horrorizam os olhos e malassombram a lembrança, mas onde o narrador (ao contrário dos interlocutores a quem se dirige o tempo inteiro) vê uma chamazinha de empatia e de humanidade.
 


("Mullholland Drive", de 
David Lynch


 





sexta-feira, 18 de novembro de 2022

4884) A vergonha de Annie Ernaux (18.11.2022)

 


O Prêmio Nobel é bom quando celebra um autor que a gente gosta. Me lembro de que comemorei os nomes de José Saramago, William Golding, Mario Vargas Llosa. 

Também é útil quando nos revela nomes que a gente desconhecia. Quando a francesa Annie Ernaux ganhou o prêmio semanas atrás, houve muita troca de comentários nas redes sociais, e em função disso acabei tendo acesso a livros dela, cuja obra eu nunca tinha lido.
 
O que me chamou a atenção foram os comentários de que ela escreve parecido com Georges Perec, uma ficção meio autobiográfica mas narrada com distanciamento, sem nostalgia ou sentimentalismo. Perec tem alguns livros assim, e o seu W, ou a Memória da Infância é uma complexa experiência em que se misturam ficção especulativa e memória.
 
Peguei para ler La Honte (1997), já traduzido no Brasil (A Vergonha, Fósforo Editora, trad. Marília Garcia). É um relato curto onde ela aborda um fato crucial de sua juventude: o dia em que seu pai tentou matar sua mãe, em 15 de junho de 1952. (Annie Ernaux nasceu em 1940.)
 
Depois de um almoço do domingo, o casal discute sem parar. O marido está alterado, tremendo convulsivamente, e começa a bater na mulher. A filha sobe correndo para seu quarto, apavorada. A mãe grita por socorro, a menina desce e vê os dois ainda brigando, na adega, enquanto o pai ergue uma foice.
 
“Foi tudo muito rápido”, como se diz, e Annie lembra apenas que depois estão os três distanciados, ela chorando, o pai sentado à janela, a mãe perto do fogão. Trocam frases ásperas, mas parece que tudo se dilui, como em tantas brigas domésticas; e os três saem para passear de bicicleta, como fazem todos os domingos. Diz ela: “E nunca mais se tocou naquele assunto”.
 
Como é de esperar, esse episódio (até moderado, se a gente pensar no que acontece por aí) fica incrustado na memória da menina e logo nas primeiras páginas a autora, agora adulta, confessa que está escrevendo sobre aquilo pela primeira vez.


(Annie Ernaux)
 
A prosa de Annie Ernaux, neste livro pelo menos, é uma prosa cristalina; tem do cristal tanto a clareza quanto a rigidez, tanto a luminosidade quanto a crispação íntima. Não se desmancha em queixas nem em melodrama. Os franceses, tão emotivos! – conseguiram desenvolver um tipo de prosa distanciada para analisar os próprios sentimentos, traumas, emoções turbulentas. Será o resultado de quatro séculos de cartesianismo e cem anos de psicanálise?
 
La Honte se anuncia como o relato de um evento traumático, “vergonhoso”. Uma briga de casal como milhões de outras, uma violência da parte mais forte sobre a mais fraca. Annie Ernaux descreve com objetividade cinematográfica o ambiente, o local, o momento, os detalhes que a memória conseguiu salvar. Uma cena, apenas – e desta cena o livro inteiro se desdobra, como um pop-up.
 
Porque a partir daí ela recua, vai se afastando desse nódulo problemático, deixa-o meio que para trás. Vai mostrando a pessoa que era o pai, a pessoa que era a mãe. Comenta fotografias de infância – que na literatura são sempre um excelente pretexto para a produção de fantasias afetivas. Descreve o lar, uma típica combinação de vida privada e trabalho público, pois a família administra um pequeno café-mercearia, e mora no restante da casa; ali, misturam-se o espaço de atendimento aos fregueses e a residência privada.
 
Descreve a cidadezinha de “Y”, seu espaço físico, seu espaço social – ali moram os ricos, aqui os remediados, ali os pobres. Comenta a mentalidade local, as fofocas, a vigilância recíproca, as maledicências a meia voz, o medo de “cair na boca do povo”. Impossível não ver o que há de profundamente nordestino (brasileiro?) nesse vilarejo da Normandia, que surge no livro como se eu já o conhecesse. Junto com a mãe, a menina Annie lê romances de M. Delly e de Max du Veuzit, os mesmos que eu, adolescente, via às dezenas nos sebos de Campina Grande e do Recife.


Começa uma longa descrição da vida escolar da garota, que parece ao leitor, num primeiro momento, uma mudança de assunto, uma virada de página, deixando para trás o episódio violento. À medida que ela avança no relato, no entanto, começa a revelar um contexto social que remete o tempo inteiro à infelicidade do pai e da mãe.
 
Annie foi matriculada (sabe-se lá a que custo) numa escola particular de freiras católicas, e não na modesta escola pública que caberia à filha de um pequeno comerciante, ex-camponês, ex-operário. É a única da família que teve a chance desse upgrade social, sem dúvida por esforço de sua mãe, que tem devaneios de ascensão (o pai é rústico e ressentido). 
 
Nessa escola católica e emproada a menina tem acesso às incontáveis pequenas humilhações de quem percebe o tempo inteiro o quanto é mal vestida, inadequada. E brota nela um sentido mais amplo de vergonha, que não é apenas a vergonha do que o pai tentou fazer à mãe, mas a vergonha de serem todos três aquilo que inevitavelmente são.
 
O ponto alto desse pesadelo gelado é a excursão de ônibus ao santuário de Lourdes, quando ela e o pai são repetidamente humilhados pela desatenção dos garçons, o esnobismo dos companheiros de viagem, e a constatação de que são “pobres”, não pertencem àquele mundo.



(No destaque, o País de Caux)
 
Logo nas primeiras páginas vi que a autora chamava apenas de “Y.” a cidadezinha onde morava com os pais. Achei normal, e segui adiante. De repente, ela diz:
 
Em junho de 52, eu nunca havia saído daquele território a que se dá o nome, de maneira bem vaga, mas compreendida por todos “aqui entre a gente”, como o país de Caux, à margem direita do Sena, entre Le Havre e Rouen. (trad. BT)
 
Caiu uma ficha do tamanho do Louvre. “Y” era então Yvetôt!... Porque essa região que ela descreve é a região de Arsène Lupin, na costa da Normandia: Rouen, Dieppe, Le Havre, Étretat... É ali que se passam algumas das aventuras mais célebres do “ladrão de casaca”: A Agulha Oca... A Condessa de Cagliostro... O Mistério do Rio do Ouro... 

É o território que Lupin conhece como a palma da mão, onde travou suas maiores batalhas contra inimigos poderosos, onde decifrou enigmas seculares da história da França, onde esconde os seus tesouros.
 
E assim, por uma dessas magias da literatura, toda a pequena e dolorosa aventura de Annie Ernaux tornou-se mais real para mim. Mais real ainda do que me havia sido revelado pelo bisturi de sua prosa. Eu conheço (de minha infância também, de meus doze anos também) aquelas cidades antigas encarapitadas entre morros e vales, aquelas igrejas em ruínas, aqueles camponeses surrados pelo tempo, de cenho franzido, de queixo duro. Aqueles rochedos místicos e sangrentos. Aquela Normandia sisuda, arraigada em si mesma, suspeitosa do mundo lá de fora. Um povo de segredos enterrados. Um povo que presenciou crimes e que poderia contá-los, mas só à força de bisturi.



(As falésias de Étretat; o país de Lupin) 
 






terça-feira, 15 de novembro de 2022

4883) Os esquemas da Fifa (15.11.2022)


 
A Copa do Mundo se aproxima. Mesmo estando meio distanciado do futebol, eu decidi me presentear com um spoiler do que vem por aí – e fui assistir no Netflix a série-documentário Esquemas da Fifa, dirigida por Daniel Gordon.
 
Em quatro episódios, a série descreve o escândalo que estourou em 2015, quando altos dirigentes da Fifa foram presos, numa operação simultânea em vários países – por corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa... O cardápio habitual de quem mexe com muita grana.
 
Dizem que toda honestidade tem seu preço; algumas são meramente mais caras do que outras. O mundo do futebol não é necessariamente composto por gente mais honesta ou desonesta do que o mundo da indústria automobilística, o mundo dos cosméticos, o mundo do rock ou o mundo das telecomunicações. Qualquer lugar onde role muito dinheiro torna-se um terreno fértil para a desonestidade. O restante vai ser determinado pelo formato interno dessa indústria, ou comércio, ou mercado, etc. Pelas relações de produção, pelos freios e contrapesos junto aos governos, imprensa, público, etc.
 
O formato interno da Fifa, a confederação internacional de futebol, revelou-se extremamente propício para a roubalheira. O documentário mostra os primórdios da entidade e o espírito meio ingênuo, quase amadorístico, que ela manteve até a gestão de Sir Stanley Rous. O qual foi substituído pelo brasileiro João Havelange, uma raposa no pleno sentido da palavra.


(João Havelange e seu sucessor Joseph Blatter)
 
Havelange assumiu em 1974 e passou a transformar o futebol internacional, injetando nele dois modelos de conduta: o big business e a política. Não poderia dar certo, e não deu. A Fifa se transformou em um enorme instrumento de enriquecimento ilícito e corrupção moral.
 
Praticamente todos os entrevistados falam idealisticamente sobre o impulso de desenvolver o esporte em todos os países – principalmente nos mais pobres, onde a juventude vive aos deusdará. O esporte pode ensinar lições de vida (concordo). Pode ensinar o valor do talento individual e o valor do espírito coletivo (concordo). Pode aproximar culturas diferentes, até mesmo num contexto de competição e rivalidade, mas diluindo estes dois aspectos em benefício de um ideal maior, o esporte (concordo). Mas... No papel tudo é bonito, e no microfone tudo soa bem.
 
Contratos bilionários, pesadas comissões e subornos cada vez mais explícitos são revelados ao longo dos quatro episódios. Curiosamente, a série aborda com destaque a decisão da Fifa de votar simultaneamente os locais das Copas do Mundo de 2018 (deu Rússia) e 2022 (deu Qatar). Há todo um detalhamento do envolvimento político dos xeiques do Qatar, que os documentaristas praticamente espremem no canto da parede, exigindo explicações.


Nem uma palavra é dita sobre a Copa da Rússia. Talvez porque já tenha acontecido, e (como se diz por aí) não adianta dar chute em cachorro morto. Talvez.
 
Lembro muito bem de quando Ronaldo Fenômeno teve um piripaque no dia da decisão da Copa de 1998, na França. As mais mirabolantes teorias da conspiração foram propostas. Desde as explicações de mero suborno (cheguei a ver listas apócrifas, com o preço de cada jogador: Fulano, X mil dólares; Sicrano, Y...) até explicações que envolviam extraterrestres reptilianos e controle mental via satélite (o que explicava as cabeças raspadas de vários jogadores).
 
Li há muitíssimos anos num livro policial qualquer, provavelmente de Agatha Christie ou alguma aventura do Padre Brown, de Chesterton, o detetive explicando: “Muitos suspeitos de um crime mentem, mesmo sendo inocentes. O assassino não é o único a mentir. Alguns inocentes mentem por medo, outros por conveniência, outros por hábito.” E a conclusão: “Quando vemos todo mundo mentindo, a verdade fica irreconhecível.”
 
A corrupção política, tal como os crimes investigados por Hercule Poirot, não é um samba de uma nota só. Não acontece sempre pelos mesmos motivos, nem seguindo os mesmos processos. Cada caso é um caso. Em outro livro policial, vi um mafioso, um tipo Don Corleone, explicando ao seu braço-direito: “É preciso saber o ponto fraco de um homem, para poder suborná-lo. Homens honestos, que rejeitariam horrorizados um milhão de dólares, podem entregar tudo em troca de um fim de semana com uma chacrete que admiram à distância”.



Um dos temas repetidos mais insistentemente em Os Esquemas da Fifa é o da sensação de poder e a certeza da impunidade. A Fifa levantou quantidades astronômicas de dinheiro ao longo de décadas. De uma hora para outra, os dirigentes do futebol de 120 países se viam projetados num universo de carros de luxo, hotéis 6 estrelas, restaurantes finíssimos, presentes caros, mulheres lindas e aquiescentes, salas Vip, tapete vermelho, jantares com primeiros ministros e presidentes. Muitas vezes nem era preciso o suborno. Bastava o cargo – e a liturgia do cargo.
 
Só que o uso do cachimbo deixa a boca torta, e lá pelo terceiro episódio da série chegamos à parte decadente e farsesca: os famosos envelopes de papel pardo com milhares de dólares dentro, entregues numa suite de hotel, enquanto os outros esperam sua vez na ante-sala. É como dar um salto brusco de São Conrado para Rio das Pedras.
 
O produtor da série, Miles Coleman, declara: “O grande problema é que numa entidade como a Fida não existe voto direto, voto popular. São os delegados das federações que votam. Então... basta você convencer 120 pessoas, e você pode se perpetuar no poder, por um longo tempo.”
 
Eu sou impregnado de futebol desde a infância, é algo que está nos genes de meu pai ou no feijão da minha mãe. Lá em casa todo mundo tem time. Já fui jornalista esportivo, já fiz parte de torcida organizada, já fui funcionário do meu clube do coração. Conheço conversa de vestiário, de sala de reunião, de bastidores. Sempre soube que o futebol é todo contaminado de safadeza. E daí? Nesta vida, neste mundo, o que não é?
 
Meus amigos leigos me veem reclamando das diretorias corruptas, dos juízes desonestos, dos jogadores mercenários, do VAR, da bandeirinha de córner, do gandula. Perguntam: Por que continua torcendo, se sabe que tudo aquilo é um teatro, e que muitas vezes o resultado do jogo (e do campeonato) foi acertado de antemão?
 
Não sei. O futebol é uma coisa tão fascinante que a gente consegue, quando o juiz faz “pí!...” esquecer de tudo e acreditar que o jogo é somente o jogo. Como quando vai num show musical num estádio repleto, e faz de conta que não está vendo aqueles logotipos coloridos piscando, mostrando quem paga pelo espetáculo e quem manda em você. Ou quando assiste a novela de TV fingindo que aquilo é de verdade, e faz de conta que não dá atenção aos comerciais.
 
A mente humana não foi programada para aceitar doses muito grandes de realidade. Temos necessidade de acreditar que “apesar de tudo existe uma fonte de água pura”. Sabemos que não existe. Mas sabemos também que só deixará mesmo de existir quando a gente não acreditar mais nela.


(by Chappatte)
 





sábado, 12 de novembro de 2022

4882) Miniconto também é conto (12.11.2022)




Volta e meia estou retornando, aqui, ao tema do “Microconto” ou “Miniconto” – o conto curtíssimo. Esse conceito se desdobra em inúmeras fórmulas relativas a sua extensão, mas no frigir dos ovos todos têm esse aspecto essencial em comum: são curtíssimos.
 
(O conceito de “curtíssimo”, é claro, é tão subjetivo quanto o de “bom”. Cada pessoa traça sua linha-limite onde lhe convém.)
 
Existem contos de menos de 100 palavras; contos de 100 caracteres; contos de 6 palavras; contos de 6 linhas... Qualquer fórmula nova é geralmente bem vinda. Note-se que muitos desses textos são produzidos num regime de desafio – revistas, jornais, websaites etc. lançam a provocação, e os leitores chovem com suas respostas. É um teste, de fato. Um teste de contenção, de síntese, de foco.
 
Não há, portanto, muita necessidade de “definir o que é mini/microconto”, até porque ninguém tem uma definição científica do que é conto. Digamos, então, que um conto é uma história curta, e que um mini/microconto é uma história curtíssima. O resto é como nas Casas José Araújo: “quem manda é o freguês”.


Quem lida com esse tipo de texto derrapa facilmente na comodidade de achar que basta escrever uma frase para que ela seja automaticamente um miniconto. Quer ver? Vou inventar agora, de improviso, três minicontos desse tipo.
 
1)      Abriu a janela e constatou, em pânico, que o Brasil existia mesmo.
2)      Pousaram no asteróide, e extraíram minérios valiosos até morrerem de fome.
3)      Reencontrar você só serve para confirmar minhas suspeitas.
 
Tentarei teorizar estes exemplos banais, mas característicos.
 
No primeiro, temos apenas a descrição de uma ação física e uma reação psicológica, um fato com duração de alguns segundos (a “abrição” da janela). Não há enredo, história, narrativa – há um flash único. Isto ficou mais parecido  com um cartum de Jaguar do que com um filme. Eu posso até chamar isso de miniconto, mas sem muito entusiasmo; para mim, chamá-lo de “cartum verbal” ou de mera piada me parece mais adequado.
 
Por que? Porque, mais do que no conto comum, no miniconto o desafio é contar uma história. Frase, qualquer um escreve. Contar uma história numa frase é outro patamar. É este o grande desafio, a rede na quadra de tênis. Sem ela não tem graça.
 
E vamos ao exemplo 2. Aqui, sim. Por bobo que seja, há um fio de história, há um mínimo de narrativa, uma sequência temporal de três fatos em que cada um é resultado dos anteriores, o que é um requisito básico de uma narrativa literária. O texto ilustra concretamente (e isto foi involuntário de minha parte, foi instintivo) a famosa estrutura “começo – meio – fim”.
 
Em poucas frases ficou clara a ambientação, o gênero literário (ficção científica), tudo sem muito esforço. Há uma leve tintura de final-surpresa, de desfecho imprevisto, o que não é fácil de obter em tão curto espaço – é a famosa arte de “dar um drible em cima de um lenço”. Com alguma boa vontade, posso considerar isso um miniconto.
 
O terceiro exemplo não é um conto nem aqui nem na China. (Claro que qualquer pessoa pode chamá-lo de conto; também pode chamar de avestruz, de sanfona, do escambau. “Chamar” é grátis.) É uma frase apenas, uma reflexão silenciosa, um fragmento de idéia. Relendo agora, me ocorre que seria um pouquinho mais narrativo se fosse em forma de fala, de diálogo:
 
-- Olha, reencontrar você só serve para confirmar minhas suspeitas...
 
Isto nos permitiria fantasiar visualmente o reencontro e a conversa entre dois ex-cônjuges, dois ex-sócios, etc. 
 
Já ministrei oficinas sobre “O Conto Narrativo” como uma forma de enfatizar a existência, na ficção, de uma gradação que tem num extremo a Narração Pura (se é que isto existe) e no extremo oposto a Reflexão Pura (idem). Toda (!) narrativa mistura as duas coisas: a Narração, ou os fatos físicos que acontecem, e a Reflexão, os comentários íntimos dos personagens (ou do autor).


(Clarice, por Bertoni)
 

 
Clarice Lispector é extraordinária contista pela sua habilidade em inventar e misturar todas as nuances possíveis desses dois elementos, em praticamente tudo que escreve. Falei “habilidade” mas o reverso obrigatório dessa moeda é “espontaneidade”, que ela usa em igual medida. Acho que ela não escreve desse jeito porque estudou as variadas correntes teóricas; escreve (acredito eu) porque é desse jeito que ela pensa.
 
Não é uma autora intelectual, dada a planejar estruturas complexas. Acho que era uma intuitiva que lia muito. O que produz lhe sai num jorro de imprevistos, de repentes, de infrações às regras e geralmente levamos algum tempo para admitir que uma parte da cabeça dela mantinha tudo marromeno no lugar certo, de forma satisfatória, e enriquecedora, para o leitor.
 
Tudo isso constitui, principalmente quando reduzido às dimensões exíguas do mini e do micro, uma arte de malabarismo, difícil de praticar em duas ou três páginas, e ainda mais em duas ou três linhas – ou em qualquer outra minifórmula.


Um levantamento interessante e útil foi feito por Carlos Willian Leite na Revista Bula:
 
https://www.revistabula.com/1787-de-anton-tchekhov-a-franz-kafka-30-microcontos-de-ate-100-caracteres/
 
Ele montou uma pequena antologia comentada de microcontos, e aconselho uma olhada. De minha parte, comentarei alguns que me parecem esclarecedores.
 
a)      Tempo. Inesperadamente, inventei uma máquina do
(Alan Moore)
 
Este é um clássico. O autor sugere um engraçado loop acidental com grande economia de meios. Há inúmeras tirinhas de HQ e cartuns usando truques parecidos.
 
 
b)      Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida.
(Anton Tchecov)
 
Eu já conhecia este, mas não como microconto, e sim como a semente de um desafio lançado pelo autor russo: desenvolver essa idéia de forma plausível. Pode não parecer, mas grandes contos da história da literatura surgiram de provocações desse tipo entre amigos escritores: “Duvido você ser capaz de escrever um conto onde acontece, etc etc etc”.



 
c)       A mulher que amei se transformou em fantasma. Eu sou o lugar das aparições.
(Juan José Arreola)
 
O mexicano Arreola é um dos meus contistas-obscuros favoritos; aconselho sua coletânea clássica Confabulário Total, publicada no Brasil tempos atrás (há edições pela Edinova e pela Arte & Letra).  Seu conto é curioso porque se encrava, sem muito esforço, naquilo que é chamado “o fantástico todoroviano”, a partir das teorizações de Tzvetan Todorov: uma história que pode ser classificada tanto como um evento sobrenatural quanto como um evento meramente psicológico.
 
 
d)      Pegou o chapéu, embrulhou o sol, então nunca mais amanheceu.
(Menalton Braff)
 
Existe narração aí. Um gesto corriqueiro que redunda num fato fantástico, descomunal, contado com a singeleza de um Ray Bradbury ou Mario Quintava. (Ou então, dado o caráter fortemente visual deste exemplo, como um quadro de Marc Chagall ou um cartum de Juarez Machado.)
 
 
 
e)      Eu ainda faço café para dois.
(Zak Nelson)
 
Para ninguém pensar que eu sou radical, eis um exemplo onde o vetor narrativo é mínimo, tudo se reduz a um comentário singelo, mas o modo contido e reflexivo com que ele é feito nos induz a supor um passado, supor um acontecimento qualquer (uma morte? uma separação?) e isto estica, de certa forma, o elástico narrativo.
 
“Narração” é isso: um elástico que se estica, cuja tensão aumenta à medida que o texto avança, e num texto literário a certa altura estamos lidando com vários “elásticos” simultâneos, e é da tensão e relaxamento de cada um deles que advém o prazer da leitura.