quarta-feira, 1 de outubro de 2008

0568) Vamos salvar Ruanda! (13.1.2005)



Você se lembra de Bangladesh, caro leitor? Talvez lembre, se for como eu um fã dos Beatles. George Harrison promoveu nos anos 1970 um concerto beneficente para essa nação vizinha à Índia, concerto que resultou num álbum duplo que é um belo momento político e musical da história do Rock. Bangladesh passou por uma guerra civil, dezenas de milhares de mortos juncavam as estradas, crianças famintas olhavam para as câmaras da TV européia.

Você se lembra de Ruanda? Um país minúsculo e super-populoso, encravado bem no miolo da África. No começo dos anos 1990, uma guerra tribal entre os Hutus e os Tutsis matou mais de um milhão de pessoas, e arrasou a economia do país. Dezenas de milhares de mortos juncavam as estradas, crianças famintas olhavam para as câmaras da TV européia.

Você se lembra do Sudão? Este é mais recente, porque a guerra civil daquele país matou nos últimos anos mais de 2 milhões de pessoas e deixou 4 milhões de refugiados. Os EUA e a ex-URSS venderam milhões de dólares em armas para o país, cada qual tentando contrabalançar a influência do outro. Dezenas de milhares de mortos juncavam as estradas, crianças famintas olhavam para as câmaras da TV européia.

Neste momento, o mundo tenta socorrer as vítimas da Tsunami que destruiu o litoral de vários países asiáticos. Pela contagem de hoje, são 155 mil mortos, número que pode até duplicar se ocorrerem epidemias. Já foram levantados 4,6 bilhões de dólares em donativos. O piloto de Fórmula-1 Michael Schumacher doou 10 milhões de dólares do próprio bolso. O Presidente Bush doou 10 mil dólares.

Por que ninguém levanta uma grana assim para ajudar Ruanda ou o Sudão? Talvez porque todo mundo saiba que o problema do Sudão é político, e se mandarem dinheiro para os pobres esse dinheiro vai ter que passar pela mãos dos ricos, que é pegajosa pra caramba, tudo que chega ali fica grudado. Ou talvez por outro motivo. É que as tsunamis da Indonésia mataram dezenas de milhares de europeus, norte-americanos, australianos. Não foi uma dessas catástrofes em que, do ponto de vista dos ocidentais, morrem apenas os “locais”. Desta vez morreu “gente de verdade”, conterrâneos nossos que todo ano iam tomar banho nas canoas-quebradas e jericoacoaras de lá.

Num artigo anterior (“A música invisível”, 30.3.2003) falei que é mais fácil a gente dar esmola a um mendigo que canta do que a um que apenas exibe as suas escrófulas. É pena que nenhum europeu costumasse pegar um bronze nas praias de Ruanda ou do Sudão, se é que as há. Porque nosso bolso se abre muito mais facilmente para ajudar alguém com quem temos uma relação afetiva, alguém que já nos deu alguma coisa, alguém que já nos recebeu. Pobre Ruanda, país sem “resorts”, sem morenas de sarong. A reconstrução de países como a Indonésia, o Sri Lanka ou a Tailândia (e nada tenho contra isto, viu?) é, uma vez mais, a reconstrução de algo que de certa forma é “nosso”. O que não é “nosso” pode se danar.

0567) Vanderlei Luxemburgo (12.1.2005)



É um dos sujeitos mais chatos deste país, mas todo ano eu torço pelo time que ele dirige. Ano retrasado foi o Cruzeiro, ano passado foi o Santos, e em 2005 deverá ser o Real Madrid. O que me coloca um grave problema filosófico, porque no momento sou Barcelona de carteirinha, graças ao futebol magnífico de Ronaldinho Gaúcho, Eto’o e Deco.

É um mistério curioso, o de Luxemburgo. O sujeito é arrogante, tem a ostentação ansiosa dos novos-ricos, assediou sexualmente a manicure, está metido até o gogó em negociatas financeiras, mas os times que ele dirige jogam o futebol mais rápido e mais ofensivo do Brasil. No ano passado, o Cruzeiro foi campeão brasileiro com mais de 100 gols marcados no campeonato. Este ano, o Santos fez a mesma coisa.

Luxemburgo treinou o Flamengo no tempo em que Romário era ditador na Gávea. Dois bicudos não se beijam, e Luxemburgo acabou defenestrado. Só quero ver como ele vai se virar no Real Madrid. O Real tem uma constelação de egos gigantescos, com 7 prêmios de Melhor Jogador do Mundo (3 de Ronaldo, 3 de Zidane e 1 de Figo). Além do mais, dizem que existe uma máfia dos jogadores locais, chefiada pelo artilheiro Raúl, para fazer frente a essa enxurrada de ídolos estrangeiros. Ou seja: se dois bicudos não se beijam, eu quero ver o que acontece com uma dúzia deles no mesmo vestiário.

Numa entrevista recente, Roberto Carlos, que já trabalhou com Luxemburgo no Palmeiras, dizia que ele é o técnico que mais sabe “ler uma partida”. Tem técnicos que são assim. Não têm complicados esquemas gráficos na cabeça, mas percebem que no time adversário há um botinudo que precisa ser enquadrado, há um cara veloz que precisa ser contido, há dois zagueiros com timings que não combinam e é só jogar a bola entre eles... coisas assim. Houve um momento em que o futebol começou a ser muito comparado com o xadrez, e criou-se uma moda de tabuleiros com botões imantados, que o técnico ficava manipulando: “Você faz o overlapping pela direita, aí Fulano se apresenta para a triangulação, e ao mesmo tempo Sicrano precisa fugir na diagonal para atrair o beque...” Reconheço que esses esquemas tem lá os seus méritos, mas o futebol não é somente uma coreografia. Um técnico nunca pode planejar com exatidão. É como a famosa frase de Garrincha, quando Feola lhe disse para driblar o zagueiro e cruzar: “Já combinaram com o zagueiro?”

Luxemburgo sabe que não se pode combinar com o zagueiro, e que futebol consiste em neutralizar o adversário quando este tem a bola, tomar-lhe a bola, e atacar. Numa entrevista recente, ele explicou o ovo-de-colombo do futebol ofensivo: “Digamos que eu tenho cinco jogos. Se jogar para empatar, e conseguir empatar todos cinco, eu ganho cinco pontos. Se eu jogar para ganhar, e perder três jogos de goleada, mas mesmo assim ganhar os outros dois, eu ganho seis pontos.” Não, amigos, futebol não é uma caixinha de surpresas. Futebol tem lógica.