sexta-feira, 5 de abril de 2013

3152) Reality shows (5.4.2013)





Num artigo de 2001 sobre os “reality shows”, que ele comparava aos espetáculos sangrentos do Coliseu romano, Salman Rushdie perguntava quanto tempo iria demorar até acontecer a primeira morte ao vivo, e quanto tempo iria decorrer entre esta e a segunda. Essa pergunta começou a ser respondida, de certo modo, nos últimos dias, quando morreu um participante do programa Koh Lanta (a versão francesa do Survivor), e uma semana depois suicidou-se um médico da equipe do programa, acusado de negligência. As duas mortes não ocorreram ao vivo, diante das câmaras, mas acho que não devemos ser tão puristas. Aliás, acabará acontecendo.

Gerald Babin, de 25 anos, sentiu-se mal em 22 de março, no primeiro dia de gravação, durante um dos puxadíssimos exercícios que os participantes tinham de fazer. Foi retirado de barco da ilha onde as provas acontecem (a imprensa considerou que se o levassem de helicóptero talvez ele tivesse sido salvo), e morreu em seguida, de ataque cardíaco. A imprensa francesa, ao que parece, fez inúmeras críticas ao programa e responsabilizou o médico Thierry Costa, de 38 anos. Entre outras coisas, foi dito que a gravação continuou durante nove minutos sem ser interrompida, mesmo com o participante sentindo-se mal, e que ele ainda teria tido que dar uma entrevista antes de ser socorrido.

Uma semana após a morte de Babin, Costa suicidou-se num hotel do Camboja, pedindo que seu corpo fosse cremado e as cinzas espalhadas lá mesmo, e nunca fossem levadas de volta para a França. Numa nota manuscrita, o médico afirmou que a imprensa enxovalhou seu nome, e que nunca mais teria coragem de voltar para a França e encarar as pessoas.

Existem situações humanas tão viciadas e tortas desde a origem que todo mundo lá dentro é vítima e é culpado. Os programas tipo Big Brother que se misturam com esportes radicais ou técnicas de sobrevivência alimentam um voyeurismo doentio na platéia – aquela expectativa de que a qualquer momento vai acontecer alguma coisa séria. Não diferem muito de uma tourada, onde a expectativa do sangue e da morte (da morte humana) está implícita na fórmula. Uma morte humana ganha outro significado se existe uma câmara apontada para ela, acompanhando-a, registrando-a, preservando-a para sempre. Pouco importa se tudo foi arranjado de tal jeito que a morte, por caminhos aleatórios, acabe acontecendo; não se sabe bem quem vai morrer, como, nem quando, mas no momento em que essa morte é transmitida estamos tocando com o dedo numa medula proibida da existência. É como se víssemos o instante da fecundação de alguém; a forma mais requintada de invasão de privacidade.