quarta-feira, 31 de julho de 2013

3252) Fogo de inverno (31.7.2013)




As nevadas foram mansas durante aqueles meses na província de Wu Wei. Quando o dia clareava, o Budista Tibetano saía de sua confortável casa de madeira, cumpria às pressas as tarefas necessárias para que o mundo não se acabasse, e voltava correndo para dentro, onde sua assistente (ou concubina, segundo outras traduções) já lhe preparara um narguilê. Todo dia passavam por ali jornaleiros de bicicleta, distribuindo folhetos com a tinta ainda úmida. O Budista Tibetano lia e balançava a cabeça, desconsolado.

“Saques e depredações na capital,” queixou-se ele. O Pavilhão do Chá, a Ópera de Arame, o Museu do Olho, tudo estava conflagrado por quebra-quebras e por confrontos entre os soldados do Império e os estudantes da Universidade das Filosofias. “Eles acusam os militares de golpistas, mas são mais golpistas que qualquer um, só querem o poder agora se for agora. São capazes de dar a vida pela Revolução, mas não admitem esperar dez anos por ela.”  Tomou um gole de chá e tentou ser filosófico. “A tragédia do revolucionário jovem é querer que tudo aconteça no seu tempo de vida, e de preferência no auge de sua energia e disposição. Vai precisar delas, porque vai ter que bater a cabeça numa parede por trinta anos.”  A companheira pegou na bandeja um biscoitinho da sorte e o entregou. Ele quebrou o biscoito, desenrolou o papel, leu: “E você, o que sugere?”

“Bem observado,” disse ele, jogando o papelucho pela janela. “Vem cá.” Ela veio, bem obediente, os dois se encostaram no peitoril, e ele apontou: “Estás vendo toda esta encosta, com suas casas? Neve e fogo. Nevascas e fogueiras. Isso é a política. A neve é a natureza. São as coisas que acontecem acima da nossa vontade ou da nossa conveniência. A seta do tempo. É o corpo do universo começando a esfriar. Já o fogo é cultura, é revolta, é vida proibida, é a vingança do homem contra a natureza, por lhe roubar o sol no inverno.” 

Ela assentiu, e disse: “Lindo, mas e os estudantes, que podem perder a qualquer momento os dentes ou o nariz? Enquanto isso, ficas aqui bebendo e fumando. Neve e fogo! Ora muito bem! O que tem isto a ver com os estudantes de filosofia e os guardas do palácio?” O Budista Tibetano espantou-se: “Mas em que é que a política ou o mundo podem te interessar?” E ela: “Não me diga que só porque você é homem, é filósofo, tem trinta papiros publicados, tem direitos que eu não tenho!” O Budista Tibetano se maravilhou, porque sabia que acabava de testemunhar a primeira frase feminista dita no Himalaia nos últimos mil anos. Fechou a janela e levou-a para dentro, pensando: “Administrar um Império deve ser mais fácil, mas administrar uma mulher é mais divertido.”


terça-feira, 30 de julho de 2013

3251) Galo! (30.7.2013)



Os torcedores do Treze que me desculpem, mas é do Galo mineiro que vou falar hoje. Para muita gente o conceito de torcer por mais de um clube é tão inadmissível quanto o de rezar para mais de um Deus. Se for assim, eu assumo: sou politeísta em matéria de futebol. Tenho vários altarezinhos com bandeiras e camisas de cores diferentes. E presto minhas homenagens a cada um desses santos, principalmente quando um deles faz milagre.

“Milagre” chega perto de descrever a façanha do Atlético-MG em conquistar a Taça Libertadores das Américas, no final de uma campanha tanto heróica quanto imprevisível. Faz parte do karma dos grandes clubes que todo mundo, a começar pela torcida e pela imprensa, lhe cobre a conquista de títulos importantes. O Atlético tem títulos regionais mas não ganha há cerca de 40 anos um Campeonato Brasileiro que já foi conquistado por times de menor projeção, como Coritiba, Guarani de Campinas e Atlético Paranaense. “Bateu na trave” algumas vezes, principalmente na derrota de 1977 para o truculento São Paulo de Rubens Minelli, e no ano passado, quando afracou na reta final e deixou o título, de mão beijada, para o Fluminense.

Depois de uma primeira fase arrasadora, em que “passou no rodo” todos os adversários, o Atlético sofreu nos jogos decisivos. Nessa fase final, raramente repetiu as atuações confiantes da primeira metade do torneio. Parecia haver um milhão de toneladas de concreto pesando nos ombros dos jogadores. Permitiu gols bobos, perdeu gols incríveis, deu aquelas mancadas que nos grandes times estão associadas ao apagão mental de quem está chegando próximo ao limite. Fez gols salvadores nos últimos minutos, quando tudo parecia perdido; e o goleiro Vítor defendeu pênaltis históricos em momentos cruciais.

Falei em milagre porque o Atlético criou, para si mesmo, problemas quase insuperáveis, e acabou superando-os, quase que sadicamente, só para fazer a torcida gemer mais fundo. Não sou torcedor de acompanhar o time, até porque os jogos do Atlético só passam na TV quando ele enfrenta os times do Rio. Destes seis últimos jogos, vi cinco, e em todos passei perto do enfarte. Logo eu que me considero muito mais torcedor do Treze ou do Flamengo. Quando o Flamengo trouxe Ronaldinho Gaúcho, fiquei imaginando que uma alegria muito grande estava reservada para mim. E estava mesmo, só que não para o flamenguista,  e sim para o atleticano. Podem torcer o nariz, mas essa vitória de Ronaldinho, comandando um time com muito talento e muita garra, valeu tanto quanto qualquer outra. Ele não é mais o mesmo que foi no passado. Nenhum de nós será, no futuro. O Atlético é campeão no presente. Viva o Galo.


domingo, 28 de julho de 2013

3250) Os Idealistas (28.7.2013)




(foto de Robert Frank)

Eles estão por toda parte. São pessoas que têm uma visão idealizada do mundo, uma visão excludente que procura o tempo inteiro distinguir o que se aproxima de um ideal estabelecido por eles, e depois descartar o resto. 

São chamados às vezes de elitistas, mas o seu elitismo social, que de fato existe, talvez não seja a origem de tudo. A origem de tudo é essa atitude filosófica, digamos, de quem diz mais ou menos: “Só o que é Bom merece existir”.

É uma atitude meio torre-de-marfim, sem dúvida, e que atrai com muita força aquelas pessoas ansiosas pela ascensão social, pelo reconhecimento intelectual ou pela criação de um ambiente utópico e superficialmente perfeito que lhes dê a ilusão de estar vivenciando O Mundo Como Deveria Ser. 

É uma atitude assim que deu origem àquelas expressões que vemos com tanta frequência em colunas sociais: “Sábado passado, a sociedade carioca esteve presente nos salões do Copacabana Palace para a festa de casamento de...”. Ora, “a sociedade carioca”, em termos realistas, pressupõe a totalidade dos 6 milhões de habitantes do Rio de Janeiro. Para quem se exprime assim, no entanto, “a sociedade carioca” são alguns milhares de pessoas que realmente contam, que têm de fato importância. O resto não existe.

No jornalismo cultural acontece o mesmo. Ele reflete a mentalidade das pessoas para quem rock-and-roll não é música, ficção científica não é literatura, cordel não é poesia, e assim por diante. 

Os defensores dessa visão definem cada uma dessas atividades a partir do perfil das obras que eles consideram importantes. Já que existem as grandes obras literárias, para o restante não basta dizer que são má literatura, é preciso dizer que não são literatura, que estão excluídos do campo literário, das discussões literárias.

Para esse idealismo, só “é” de fato o que corresponde ao seu ideal. Os idealistas têm uma concepção seletiva do mundo. Só existe o que se aproxima do modelo. São eles os primeiros a dizer: “Esse criminoso não é um ser humano”. Dizer que esse indivíduo não é um ser humano os autoriza a negar-lhe tudo que somos obrigados a conceder aos seres humanos por força da lei ou das tradições não escritas. 

Enquanto o ideal de ser humano foi o homem branco, considerava-se que as mulheres não tinham alma e que os negros eram animais.

O contrário dessa visão é a visão realista, que nos diz: cada grupo de seres inclui o que tem de melhor e de pior, e é pelo seu conjunto que deve ser julgado. De nada adianta um país ter dez milhões de milionários se nele ainda existirem dez mil miseráveis. 

O retrato de um país não é sua camada superior, é a justaposição e a comparação entre seus pontos extremos.







sábado, 27 de julho de 2013

3249) Mídia transparente (27.7.2013)



Vamos voltar um pouco ao tema da Mídia Ninja e das tecnologias de vigilância mútua entre o aparelho do Estado (e das Corporações) e a população civil. A onipresença das câmeras de segurança em nosso mundo urbano torna possível vigiar em tempo real (ou reconstituir “a posteriori”) os movimentos dos cidadãos através de uma cidade. A grande imprensa mostrou as deslocações do brasileiro Jean Charles antes de ser equivocadamente morto pela polícia londrina, sob suspeita de terrorismo, em 2005, e o modo como o carro da juíza Patrícia Accioly foi seguido pelos policiais que a mataram em Niterói, em 2008. Reconstituições assim poderão ser possíveis (em tese) em relação à maioria das pessoas, pois todas elas estarão em algum momento de seus trajetos urbanos passando pelo campo visual de uma câmera.

Nos EUA, carros da rádio-patrulha levam uma câmera apontada para a dianteira do carro; desse modo, quando os patrulheiros detêm um suspeito e param atrás do carro dele, todas as ações subsequentes (descer, mandar o motorista descer, revistá-lo, algemá-lo, dar-lhe uns safanões quando necessário) estarão sendo registradas para posterior avaliação no tribunal, se for requerido por alguém.

Milhares de câmeras portáteis nas mãos de manifestantes, cobrindo o tumulto de uma passeata, podem ser uma arma poderosa, se não para dissuadir a polícia de praticar as barbaridades costumeiras, pelo menos para atribuir responsabilidades “a posteriori”. Outra arma importante seria (não sei até que ponto isto já é contemplado pelas nossas leis atuais) a exigência de que qualquer procedimento policial fosse obrigatoriamente registrado em vídeo e áudio; e que no caso de a polícia não fornecer essas gravações, quando solicitadas por um juiz, isto fosse considerado um indício de possível culpabilidade. Uma micro-câmera numerada no capacete de cada policial envolvido na repressão de manifestações de rua. (E só faltava agora eles quebrarem a câmera com a mesma cara-de-pau com que arrancam o nome da farda.)

Câmeras no interior das delegacias, principalmente nas salas de interrogatório. É possível? Câmeras nos guichês de atendimento do Detran e outras repartições notórias pelo descaso, corrupção ou bagunça. É possível? Câmeras onde quer que ações governamentais e corporativas possam estar se chocando com o interesse da população. É possível? Se for, é preciso votar para que isto se transforme em lei, e que os bancos de imagens sejam acessíveis à sociedade organizada. Em termos enxadrísticos, o Povo precisa deixar de jogar com as peças pretas. Precisa jogar com as brancas, tomar a iniciativa contra (e colocar em xeque) Governos e Corporações.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

3248) Fenda no espaço (26.7.2013)




Seu Claudionor ajeitou o boné, limpou as sobrancelhas e olhou de novo o relógio de pulso. Quase meio-dia e o ônibus das onze, que passava ali onze e meia, estava atrasado. Sentado no tronco, ele puxou mais uma vez a maleta para perto de si, embora estivesse sozinho na beira da estrada, à sombra de uma mangueira. No sábado e na quarta aquela estradinha tinha um movimento danado, mas em dia comum era um eterno problema. Seu Claudionor olhou a cerca às suas costas, e por trás dela a pastagem que se estendia em colinas bem verdes sob um céu bem azul, parecendo uma foto que tinha no computador do filho dele.

De repente ele deu um pulo, porque ouviu um barulho atrás, como uma coisa se dilacerando, só que muito alto, alto mesmo, como uma vez que ele ia passando do lado daquelas caixas pretas depois de deixar as sobrinhas num show e partiu dali um guincho indescritível que o deixou quase surdo uma semana, um problema médico que o namorado da sobrinha lhe explicou depois chamar-se microfonia. E viu que junto com o ruído às suas costas a paisagem colorida se rasgava, verticalmente se dilacerava, abrindo uma obscena boca vertical alargada à força, com emprego de músculos e de puxões, por dois homens que pareciam passar através dela, cruzá-la, até tombarem os dois quase desfalecidos a três metros de distância.

E pela fresta saía uma luz escura, uma tenebrosidade de treva reluzente, mas era possível avistar por trás uma parede de coisas como massas moventes cobertas de sinais coloridos em líquido cristal. Os dois homens vestiam roupas resistentes e (Seu Claudionor só então percebeu) capacetes transparentes que cobriam o crânio e o rosto com uma folga interna de um centímetro. Tiraram os capacetes, sem olhar para Seu Claudionor. “Eu lhe disse que se aumentasse demais ia romper a película, e olha aí o que você aprontou,” disse um. E o outro: “A medição disse que podia. O que fazemos agora?”. O outro deu um tapinha na palma da mão esquerda, leu alguma coisa nela. “Temos que esperar quase dois minutos, até que ela se recomponha.”  Ergueram os dois o olhar. “Tem um nativo aí.” “Fornique-se o nativo. Valem menos que um algoritmo em alta.”

Eles falavam um português de sotaque arrevezado e de palavras desconfortáveis, mas falavam português. Seu Claudionor abaixou-se, pegou a maleta, abriu a maleta, tirou a doze, armou a doze, detonou os miolos de ambos, guardou tudo de novo. Só então foi até lá, enfiou um e depois o outro por aquela fenda que já se fechava. Sentou de volta, limpou as sobrancelhas, olhou o relógio, pensou no ônibus, deu uma passada geral em torno, viu a paisagem verde-azul, cuspiu de lado e disse: “Vôte”.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

3247) Artista profissional (25.7.2013)


Duas coisas que correram estes dias nas redes sociais me chamaram a atenção. 

Uma delas dizia respeito a um divertido post (cuja leitura aconselho) no blog “Recordar, repetir e elaborar” de Camila Pavanelli (em: http://bit.ly/1amO2EZ). O título já diz tudo: “Gente de humanas que faz um monte de coisa que não dá dinheiro”, onde ela relaciona e comenta algumas dezenas ou centenas de atividades que não dão dinheiro (eu próprio me enquadro numas 35). 

O outro foi um comentário de Fábio Cabral, da loja Passadisco (Recife), sobre um rapaz que lhe anunciou que ia montar uma banda e gravar um disco em 2015.

O cara que em 2013 já determina que vai gravar um disco em 2015 (por mais que gravar discos tenha se tornado fácil ultimamente) é claramente um futuro artista profissional, ou pelo menos tem a intenção de sê-lo. Está com um cronograma de compromissos. (O primeiro deve ser: “Compor doze músicas”). Será que está botando o carro adiante dos bois? Se ele tiver talento, até que não. Sei de muita gente que preparou cronogramas assim e depois sentou e produziu obras de alta qualidade.

Acontece que isso não é o comportamento típico da “gente de humanas” citado no post de Camila. “Gente de humanas”(leia-se: que estudou Ciências Humanas, em vez de Ciências Exatas ou Ciências Médicas) já é uma expressão irônica com que o pessoal designa a minha tribo, o pessoal que estudou artes, comunicação, ciências sociais, letras, filosofia, etc. 

Eita pessoalzinho desprovido de magnetismo financeiro. Se colocarem a gente a meio metro de distância de uma moeda de 1 real, a moeda não se move um milímetro. Por outro lado, existem profissões em que o dinheiro literalmente corre atrás do sujeito.

Scott Fitzgerald já disse: “A gente não escreve porque quer dizer alguma coisa, escreve porque tem alguma coisa para dizer”. Parafraseando: a gente faz músicas, e um dia vem a necessidade de gravar um disco; mas existe gente que se compromete a fazer um disco (para ganhar dinheiro, claro) e isso o obriga a fazer músicas. A ordem desses dois fatores altera o produto. 

Gente-de-humanas pensará primeiro nos aspectos humanos das coisas que lhe passam pela cabeça, e só muito depois irá avaliar se aquilo dá dinheiro ou não. Para o artista “de humanas”, o dinheiro é consequência. 

Para certos artistas profissionais, o dinheiro é o objetivo, e a arte é uma mera obrigação tediosa.  (E eu sou um profissional, portanto a crítica que faço não é ao profissionalismo em si, mas à mentalidade que coloca o profissionalismo acima de tudo. Torna-se muitíssimo mais fácil manipular ou subornar um artista “profissional” do que um artista “de humanas”).





quarta-feira, 24 de julho de 2013

3246) Cordwainer Smith (24.7.2013)





Muitos centenários ilustres sendo comemorados este ano (Albert Camus, Vinicius de Moraes, Rubem Braga, para não falar no meu pai, Seu Nilo, e em seu/nosso amigo “Seu” Brasil). Quase deixei escapar o de uma das figuras mais talentosas e insólitas dentro da ficção científica.  Cordwainer Smith era o pseudônimo de Paul Linebarger (1913-1966) para sua obra de FC, da qual apenas uma parte foi publicada em vida.

Seus contos (não li os romances) mostram um futuro remoto em que pilotos de espaçonave ligam-se telepaticamente a gatos para absorver a energia necessária aos saltos no hiperespaço, e tecnologias extraordinárias permitem aos povos do futuro reconstituírem a cultura de uma época remota (a nossa) e viver nessas simulações. Os títulos dos seus contos têm uma poesia única, inconfundível: “Alpha Ralpha Boulevard”, “The Ballad of Lost C’Mell”, “The Dead Lady of Clown Town”, “Golden the Ship Was – Oh, Oh, Oh!”, etc.

Seu pai morou na China e colaborou na revolução republicana que destronou o “Último Imperador” (o do filme de Bertolucci). Ele próprio tornou-se oficial do exército dos EUA e voltou a morar na China, onde trabalhou com o serviço de inteligência. Seu livro Guerra Psicológica (1948) é considerado um clássico do gênero. A edição brasileira (Biblioteca do Exército, 1962) tem esta interessante epígrafe do autor: “O gênero humano seria certamente melhor se todos os homens do mundo fossem um pouco mais brasileiros do que o são hoje”.

É um dos “grandes autores pouco lidos” da FC. Seus contos são humanistas, e têm uma visão ética das situações extremas de um conflito militar ou social. São criações notáveis seu “Underpeople” (animais artificialmente evoluídos à forma humana, versão benigna das criações de Wells em A Ilha do Dr. Moreau), a Instrumentalidade do Homem (uma elite político-científica que governa os mundos), e as diferentes drogas (“santaclara”, “super-condamine”) que ele emprega ora como vício ora como alívio do sofrimento. Certa vez ele levou as filhas pequenas ao México e lhes mostrou as pirâmides de Chichen Itzá, onde havia sacrifícios humanos, e os murais de Siqueiros, para mostrar-lhes a medida da dor humana.

Smith emprega com frequência uma prosa poética como a de lendas orientais ou sagas antigas. Seus contos são vislumbres de um complexo futuro com dezenas de milhares de anos, numa colagem multicultural, onde a presença do Oriente é indireta mas forte. A antologia The Best of Cordwainer Smith (Ballantine, 1975) reúne seus doze melhores contos, uma preciosa introdução de J. J. Pierce, e uma cronologia do seu Universo. Seu websaite é: http://www.cordwainer-smith.com/.


terça-feira, 23 de julho de 2013

3245) Vai dar certo (23.7.2013)



(Max Klinger)


Eu sei. Eu sei que, avaliando bem, parece uma situação forte-apache-cercado-pelos-índios, mas dane-se, melhor cercado pelos índios dentro de um Forte Apache do que a pé, no descampado, tendo no bolso um canivete cego. 

Nenhuma situação é irremediável. Pra tudo na vida tem um jeito. A esperança é a última que morre. Bora jogar clichê por cima da paliçada e derrubar esses índios, não tem tribo que consiga fazer a reposição, porque o repertório de clichês positivistas e de auto-ajuda na língua portuguesa ultrapassa de muito o poder de expansão demográfica dos nativos americanos. Segure as pontas. Arroche o cinto. Assungue os cunhão da alma, e bora em frente.

No fim tudo dá certo, e se não está dando certo é porque ainda está longe do fim. Tudo está bem quando acaba bem, disse Shakespeare, e se o maior poeta do mundo disse isso quem sou eu para jogar a toalha, bater pino, correr de campo, baixar a crista? Eu vou é em frente. Vai dar certo. Vai melhorar. Vai dar certo sim, e é como dizia Augusto Matraga com fervor de cristão recém-convertido: “Pro céu eu vou, nem que seja a porrete!”. 

Daqui a pouco as coisas se aprumam. Se as coisas não se aprumarem, basta pespegar nelas um bom safanão, um contravapor daqueles de braço em recuada, que bote moral e mostre quem manda nessa tiborna. As coisas que se cuidem comigo, porque essa bixiga vai dar certo.

Pensamento positivo, concentração, determinação, feito jogador de futebol quando ouve preleção sobre “o objetivo do grupo”. Vai dar certo. As chances são boas, as estatísticas ajudam, o horóscopo de hoje deu otimista, o céu tá bonito, o pulso ainda pulsa. Por que não daria certo? Já deu certo antes, inclusive quando os prognósticos eram mais sombrios. Deu uma vez vai dar de novo. É só turbinar os neurônios, relaxar a kundalini, processar os fatores bioquímicos, respirar fundo, confiar na conjunção dos planetas e na maré favorável das probabilidades, arregaçar as mangas e cair na luta. 

Vai dar certo, prometo. Tem que acreditar, tem que entrar em campo com autoridade de time grande e furiosidade de time pequeno. O problema é dinheiro? De dinheiro está cheio o mundo. O problema é saúde? Saúde se cultiva e se desenvolve. O problema é a situação mundial? Daqui que o mundo se acabe meus átomos já estarão espalhados pra lá de Cochabamba. O problema é desilusão amorosa? Vista uma camisa nova, faça a barba e circule. 

Não interessam os índices da bolsa de apostas, os prognósticos da ciência, os tabus da superstição. A carne é fraca, a alma está rouca, o osso estala, o dente range, a boca seca, o mundo treme, mas eu vou mostrar quem sou, vou provar a todo mundo que no fim vai dar certo.





domingo, 21 de julho de 2013

3244) Lima Barreto (21.7.2013)




Há um movimento nas redes sociais, lançado por Josélia Aguiar, Álvaro Costa e Silva (“Marechal”) e André Vallias, e divulgado pela tradutora Denise Bottmann (do blog “Não gosto de plágio”) para que a Festa Literária de Paraty (Flip) de 2014 homenageie a obra de Lima Barreto. Há outros possíveis homenageados, como Rubem Braga. Essas homenagens causam sempre um momento de hesitação e remorso, porque de um modo geral todos os sugeridos merecem, e a gente, mesmo celebrando o escolhido, fica com pena dos descartados. Em todo caso, Lima Barreto é uma escolha justa, e mesmo que não se confirme vou aproveitar para conhecer melhor sua obra, da qual já li vários contos e artigos, mas nenhum romance. (Pois é, galera, não tenho problema em revelar o que não sei. O pouco que sei já me garante.)

Lima Barreto (1881-1922) teve que batalhar contra muitos preconceitos. Primeiro, o da cor, que o fez compartilhar o destino de Cruz e Sousa, Machado de Assis (em parte) e outros autores negros ou mestiços de cem anos atrás, num Brasil branco que cerrava fileiras em torno de sua brancura como um time que está ganhando o jogo de 1x0 mas sente no adversário cada vez mais volume de jogo.

Outro preconceito foi devido à bebida e à loucura, um karma permanente do destino literário. Já frequentei o prédio da UFRJ na Praia Vermelha, no Rio, inclusive para fazer palestras, e sempre alguém comenta que foi ali que Lima Barreto ficou durante suas internações psiquiátricas. Algo parecido me ocorreu quando visitei há 30 anos o antigo presídio da Ilha Grande, e lembrei de Graciliano Ramos e suas memórias do cárcere. Alguns dos grandes escritores brasileiros do futuro talvez sejam pessoas de que nem eu nem vocês jamais ouvimos falar, pessoas que talvez estejam hoje numa cadeia, ou numa clínica de desintoxicação. Quem pode garantir?

Um traço notável de Lima como escritor é a clareza e a precisão de sua prosa, sem nada daquele maneirismo dos beletristas do seu tempo. Lima era direto, coloquial, usava um português sem paletó nem gravata, e isso era muitas vezes alegado como falta de cultura. Já comentei aqui nesta coluna o livro que contrapõe artigos de Lima Barreto e de Coelho Neto sobre futebol (O Fla-Flu literário, de Mauro Rosso, http://bit.ly/13yAvnj). É espantosa a atualidade da linguagem de Lima, comparada à do autor de “Sertão” – que aliás admiro, é um dos autores queridos da minha juventude. Sua prosa ornamental e pomposa envelheceu; a de Lima parece escrita dez anos atrás, ou mesmo este ano. Mas foi escrita naquele Brasil da República Velha, engessado, costurado por privilégios raciais e feudos políticos.


sábado, 20 de julho de 2013

3243) O ateu fundamentalista (20.7.2013)




Quem lê esta coluna já sabe que sou agnóstico, sem religião. Tenho uma forte tendência mística, mas ela não vai na direção da espiritualidade (a crença num mundo além da matéria, independente da matéria), e sim na direção de um mundo transcendental, além-matéria, que será um dia criado por nós, ou por outros seres tão materiais quanto nós. Em suma: meus impulsos místicos são plenamente satisfeitos pela vertente cosmológica, trans-humanista, da ficção científica. Um misticismo com raiz na ciência, ou então misticismo nenhum.

Mas não sou ateu. Me perguntam isso o tempo todo, e algumas pessoas não entendem como é que não me considero ateu, mesmo não acreditando em Deus. Primeiro (explico) existe o fato de que nada tenho contra a existência de um Deus, e na verdade acho que teríamos vários benefícios se uma divindade assim existisse, uma divindade como a dos cristãos, da cultura em que fui criado. (Sim, fui batizado, e casei uma vez na igreja, mas nunca me confessei nem fiz comunhão.) A questão é que nunca experimentei a fé intensa e espontânea que tantos religiosos descrevem, nem nunca me deparei com uma argumentação convincente da existência de um Deus. Não acredito em Deus como não acredito em vida na Lua. Acho que não existe; não tenho certeza, acho apenas que é pouquíssimo provável. Se me provarem amanhã que existe, serei o primeiro a mudar de opinião e dizer a todo mundo. Qual é o problema em ser convencido pelos fatos?

O que me irrita na religião são os fanáticos, os hipócritas (que pregam uma coisa e fazem outra às escondidas), e os proselitistas, os que do nada querem nos impor a sua crença (e se pudessem usar a força bruta para fazê-lo, não hesitariam).

E nos últimos tempos tenho visto muitos ateus adotando essa postura irritante dos piores religiosos que a gente vê por aí. Não lhes basta não crer em Deus: querem convencer os crentes a deixarem de crer, querem transformar a discussão religiosa em algo parecido com um confronto de militâncias políticas em reta final de campanha. É nessas horas que a gente percebe a tendência fundamentalista, autoritária, presente em ambos os grupos. Era de se esperar que predominasse no lado religioso o espírito humanista e compassivo dos que dizem experimentar a comunhão com a Divindade; e no lado dos ateus o equilíbrio sereno dos que dizem cultivar a busca desinteressada da sabedoria. Mas quando a discussão filosófica se aproxima da rivalidade político-partidária ou da cegueira futebolística... Vai ser engraçado qualquer dia ver Deus sendo defendido com porretes e a Ciência vindicada mediante coquetéis Molotov.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

3242) Mídia Ninja (19.7.2013)




Quinze anos atrás, o escritor de FC David Brin publicou um livro intitulado The Transparent Society (1998), em que discutia as consequências da rápida evolução das tecnologias de vigilância eletrônica. O livro desenvolvia um artigo homônimo de 1996 na revista Wired (http://bit.ly/3bGnct) e surgia num contexto em que a imprensa debatia com fervor o medo de estarmos penetrando num mundo totalmente Big Brother, um mundo de vigilância eletrônica permanente do Estado sobre os cidadãos.  Um mundo em que seria possível ao Estado, à polícia, até mesmo às forças de segurança de outra nação (vide a recente denúncia de espionagem norte-americana no Brasil) fiscalizar nossa vida pessoal, ter acesso à nossa vida financeira, rastrear nossos passos.

Brin contra-atacava esse medo dizendo: E se o feitiço virar contra o feiticeiro? E se esses mesmos instrumentos também permitirem ao cidadão vigiar o Estado? E se essas câmerazinhas não estiverem apenas nas mãos da polícia e dos espiões, mas nas mãos de cidadãos que poderão registrar as atividades do aparelho repressor do Estado, ou de quaisquer grupos organizados que os prejudiquem? E se qualquer cidadão puder ter acesso ao que qualquer câmara da cidade está filmando em cada momento? E se a prisão de um cidadão na rua estiver sendo observada por pessoas capazes de testemunhar qualquer arbitrariedade policial, pois o acesso a essas imagens não é privilégio de ninguém?

As recentes manifestações de rua no Brasil têm sido cobertas por manifestantes jovens com minicâmeras transmitindo ao vivo; grupos como Mídia Ninja (“Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”) e Olho da Rua. Noite e madrugada adentro, da minha casa, acompanho tudo que acontece acessando http://twitcasting.tv/ninja2rj/.  A imagem e o som não são 100%, a conexão cai de vez em quando... mas, amigos, esta é a fase irmãos-lumière de uma sociedade transparente como a sugerida por David Brin há 15 anos.

Dizia ele: “A chegada desses implementos em nossas cidades não pode ser retardada. Ricos, poderosos e as figuras de autoridade os terão, seja legalmente ou clandestinamente. As imitações vão se propagar, e vão se tornar menores, mais rápidas, mais baratas e mais inteligentes a cada ano que passe.” Quem vigia os vigilantes? – perguntava Alan Moore em Watchmen. Se nossa sociedade tende a uma perda geral de privacidade, a única maneira de tornar isto uma coisa positiva é estender esse fenômeno aos governos, às autoridades, aos aparelhos de repressão. Eles também estarão sendo vigiados, observados por milhares de pequenas câmaras.  Um Governo não pode exigir para si a privacidade que nega aos seus cidadãos.


3241) O tempo presente (18.7.2013)




(Flip 2013: Noemi Jaffe, Ferrari, Galera)

Numa palestra da Flip 2013, mediada por Noemi Jaffe, Daniel Galera e Jerôme Ferrari falaram, entre muitas outras coisas, da relação de seus personagens com o tempo. O livro de Galera, Barba ensopada de sangue (2012), fala de um rapaz que vai morar num balneário e aproveita para pesquisar a vida de seu avô, sobre o qual sabe pouca coisa. O de Jerôme, Sermão sobre a queda de Roma (2012)  fala de dois amigos que se afastam de Paris e montam um bar na Córsega, onde pretendem viver mais ou menos ao abrigo de grandes agitações e grandes mudanças.

Galera comentou a certa altura o quanto é difícil viver no presente. Na maior parte do tempo estamos preocupados com o futuro ou então estamos remexendo na memória, no passado. Jerôme observou que o projeto do bar na Córsega serve para seus personagens como a tentativa de produzir um futuro que seja a infindável repetição do presente. Uma tentativa de congelar o tempo.

O presente é feito de partes iguais de passado e futuro. É um entrelaçamento de memória e vontade, a memória checando o que ficou para trás e a vontade nos obrigando a avaliar o tempo inteiro o que nos pode suceder mais à frente.

O romance moderno superou a antiga construção cronológica tipo passado-presente-futuro, onde os fatos pareciam seguir uma sucessão numérica. No romance atual, os tempos estão todos superpostos, mesmo quando há um fio de enredo nos tranquilizando com a sugestão de uma estrutura tipo começo-meio-fim. Um romance como Os Detetives Selvagens (1998) de Roberto Bolaño avança a passos trôpegos, porque a cada página as informações sobre o passado se multiplicam; na verdade, é rumo ao passado que avançam as investigações sobre os dois poetas que são os personagens principais.

A incapacidade de viver no presente, observada por Daniel Galera, é aparentemente anulada nos romances narrados no presente do indicativo. Essa narrativa aqui-e-agora, que lembra a imediaticidade de um filme ou de um videogame, procura chamar a atenção para esse espaço instável onde memória e vontade travam um cabo-de-guerra incessante. Viver num “eterno presente” exprime o desejo de cancelar a morte mas por outro lado impede de ajustar contas com o tempo. O presente é feito de passado e futuro assim como o café-com-leite é feito de leite e café. A cada momento mudam as proporções de cada um, mas estão sempre ali, são a substância mental da nossa experiência. O romance de hoje percebe isso e busca a expressão desse tempo híbrido em que cada trecho do presente parece estar se estendendo rumo às duas outras direções, como uma corda de violão que só vibra no centro porque está presa nas duas extremidades.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

3240) "O Estrangeiro" (17.7.2013)





O “romance noir” norte-americano conta histórias angustiadas de crime, carregadas de fatalidade, desesperança, e da sensação de quem está num mundo movido por forças incompreensíveis e inconscientes de si mesmas. 

Nada nos impede de ver dessa maneira O Estrangeiro de Albert Camus. Ele é um equivalente filosoficamente mais denso das histórias policiais soturnas de James M. Cain, David Goodis, Horace McCoy. 

Lançado em 1942, sua repercussão crítica ao longo das décadas seguintes (aumentada com a concessão do Prêmio Nobel a Camus em 1957 e sua morte precoce, aos 46 anos, em 1960) foi associada à visão existencialista do mundo e à visão do absurdo.

Seria uma atividade tipo “o ovo ou a galinha” tentar descobrir se Camus lia romances policiais norte-americanos na Argélia ou se via os “filmes noir” dos anos 1940. 

Em muitos desses filmes encontramos perfeitos equivalentes do Meursault de seu livro: indivíduos sem um projeto de vida, sem um propósito, vivendo para o presente e aceitando, meio atordoados, o que o presente lhes impõe. Não têm ambições nem fazem planos para o futuro; não são capazes de grandes afetos nem de grandes ódios; avançam pela vida como que anestesiados, meio indiferentes, cultivando pequenos objetivos – arranjar algum dinheiro, ter onde dormir, comer sem fome, amar sem amor.

Meursault é assim, e é até surpreendente que uma garota como Marie Cardona queira casar com ele. A resposta dele é típica: concorda em casar com ela, “se isso a faz feliz”, mas dá a entender que nunca tomaria a iniciativa de pedi-la, e que se outra mulher lhe fizesse a proposta ele provavelmente aceitaria também. 

A passividade de Meursault o conduz ao crime e à condenação, quando todas as provas, em retrospecto, parecem defini-lo como um homem frio, insensível, cruel. Ele é o indivíduo alienado, disponível, sem projeto, exposto ao vento das vontades alheias, que podem levá-lo em qualquer direção. 

Atentados políticos são muitas vezes praticados por gente assim, gente como Lee Oswald, Sirhan Sirhan, Ali Agca. Foram soprados por uma doutrina assim como um barco é soprado pelo vento, mas essa doutrina lhes é essencialmente estranha.

O Estrangeiro é uma história de crime tipo “whydunit”, onde o que importa não é “quem” cometeu o crime nem “como”, e sim “por quê”. 

“Por causa do calor”, diz ele ao explicar ao tribunal por que abateu um árabe a tiros, na praia. Meursault é o homem absurdo, num mundo em que não chorar no enterro da mãe é tão crime quanto matar um homem. O livro se passa em Argel, mas não é difícil imaginá-lo nos EUA, a história de um rapaz do Bronx que mata um negro a tiros durante um passeio a Coney Island.






segunda-feira, 15 de julho de 2013

3239) Parafuso (16.7.2013)




O parafuso está um degrau acima do prego, em termos de evolução. Quem inventou o prego? Os primeiros eram talvez pedaços de graveto usados para perfurar e unir folhas largas da cobertura de uma cabana, fixando-as umas às outras. Depois que o metal começou a ser forjado, não custou muito perceber que ele, se pontiagudo, podia fazer o mesmo com dois pedaços de madeira. Já o parafuso exigiu uma mente mais sofisticada. A idéia de enfiar um prego torcendo-o, ao invés de batendo, deve ter ocorrido aos usuários milhares de anos antes de alguém ser capaz de esmerilhar no metal a rosca que o ajuda a penetrar e depois o mantém preso.

A palavra inglesa para parafuso, “screw”, é a mesma para o verbo que indica o ato sexual, nosso famoso verbo com F. Há um simbolismo fálico evidente, mas seria mais lógico o uso de “nail” (prego), cujo movimento corresponde de modo mais instintivo ao do ato em si. Prego e parafuso envolvem conceitos diferentes de movimento: o movimento reto para a frente e o movimento helicoidal para a frente. Para fazer a forma evoluir de um ao outro é preciso partir para um conceito totalmente diferente. Era o mesmo impasse dos sujeitos que tentaram inventar o avião construindo máquinas que batiam as asas, imitando o voo dos pássaros. Levou algum tempo até todo mundo perceber que o caminho não era esse.

O movimento helicoidal do parafuso (basicamente os movimentos simultâneos de giro em torno de si mesmo e de avanço num eixo retilíneo perpendicular – me corrijam se isto está errado) foi uma conquista conceitual sofisticada. Seria interessante ver se a fenda na cabeça (onde se insere a chave de fenda) surgiu logo, ou se os primeiros parafusos tinham uma haste projetada para cima e eram torcidos com o dedo (como as chaves comuns).

É famosa a quadrinha popular, de autor incerto: “A saudade é um parafuso / que na rosca quando cai / só entra se for torcendo / porque batendo não vai; / e se enferrujar por dentro / pode quebrar, mas não sai”. Henry James escreveu sua famosa história de terror Outra Volta do Parafuso baseado na idéia de que fantasmas perseguindo uma criança seriam (para usar uma expressão popular) um arrocho, e se fossem duas crianças seria outro arrocho maior ainda. O aperto dos parafusos não é necessariamente uma coisa ruim: sempre dizemos que Fulano de tal tem um parafuso frouxo (ou faltando) quando constatamos que ele não bate bem da cabeça. “Ter um parafuso a menos” é sinal de desorientação mental, e dizem que o painel de Aldo Locatelli no aeroporto de Porto Alegre era informalmente chamado de Bagunça na Oficina, pois os personagens pareciam todos em busca de um parafuso desaparecido.


sábado, 13 de julho de 2013

3238) Ensaios literários (14.7.2013)




(Flip 2013: Pires, Dyer, Sullivan)

Nascer na Paraíba foi uma das melhores coisas que poderiam ter me acontecido, porque eu sou por natureza um cidadão do mundo. Se nascesse em Paris ou Nova York, eu me diluiria em generalidades e irrelevâncias, ainda que lucrativas. Ser paraibano, estar por assim dizer perto da bandeirinha de corner do Palco do Universo me serviu (como serve a todos nós) de alerta. O alerta parece dizer: você é o centro do seu mundo mas não é o centro do mundo. O mundo é maior do que você, e não vai perceber sua existência, a menos que você faça alguma coisa importante. Te vira, véi.

Isso me vem à mente ao considerar a mesa realizada na Flip, entre os ensaístas Geoff Dyer (Inglaterra) e John Jeremy Sullivan (EUA), mediados pelo brasileiro Paulo Roberto Pires. Dyer e Sullivan são dois ensaístas literários da velha escola, ou seja, escrevem textos longos, meditativos, críticos, geralmente na primeira pessoa, mas envolvendo, em torno do objeto principal do texto, uma grande quantidade de referências pessoais, literárias, culturais, políticas, etc. Um ensaísta da velha escola, ao escrever sobre um parafuso, coloca por alguns minutos o parafuso no centro do seu mundo mental, e faz convergir tudo que sabe na direção desse pequeno objeto.

Paulo Roberto Pires observou com propriedade que no Brasil o termo “ensaio” se aplica muitas vezes ao ensaio acadêmico: duro, árido, cheio de jargão, manietado por uma estrutura referencial e demonstrativa que deixa muito pouco terreno para a expressão pessoal. Já o ensaio que estou chamando aqui de “velha escola” nada impõe em termos de estilo ou de estrutura. O autor é livre para concebê-lo, e cada um vai na direção de si mesmo. Um inglês como Dyer talvez derive (não li nada dele ainda) na direção de autores como G. K. Chesterton, capaz de falar longamente e interessantemente sobre qualquer assunto; ou na de George Orwell, cujos ensaios são tão agudos e ácidos quanto sua ficção. Um norte-americano como Sullivan (comprei dele a coletânea Pulphead) pode recorrer à farta inspiração literária de um Edmund Wilson ou à experiência de Norman Mailer, desde que saiba temperá-las com a doidice de Hunter Thompson ou Lester Bangs.

Enfim: o ensaio literário é quando o autor mobiliza tudo que sabe, tudo que leu, tudo que viveu, para falar de assuntos tão bobos quanto um show de rock evangélico, uma luta de box, uma convenção de delegados de polícia, uma eleição presidencial, uma dose de mescalina, uma briga de vizinhos... Um autor, e todo o seu mundo mental, convergindo de uma vez só sobre um assunto. Se o autor e o mundo valerem a pena, o assunto pode ser até um parafuso.


3237) O trem de Gotán City (13.7.2013)




(foto: Gavin Hammond)

Gotán City tem 32 roteiros turísticos de trem.  Comprei o carnê “Vida de Charles Windstern”. O trem chia, o vapor silva, a engrenagem rumoreja e se põe em movimento, e eu tiro da pasta o Guia Informativo.  Desfilam na janela armazéns com vidraças quebradas e manchas verdes de infiltrações antigas.  Outdoors descascando como pele após a praia.  Homens gordos de macacão, sentados em pilhas de dormentes, com charuto apagado na boca.  A primeira parada do trem é na Rua 152, a 1 km da estação. 

Vemos a placa indicando o lugar onde havia a casa em que Charles nasceu, em 2011.  Em seu lugar ergue-se hoje uma pet-shop de oito andares, toda de vidro fumê, luzes de mercúrio, comerciais em loop na fachada de cristal líquido. O altofalante do trem refere-se a Charles como “o último grande pensador do século”. O trem arranca.

A próxima parada, na Rua 200, mostra de longe o soturno Colégio Gospel onde Charles estudou até os 16 anos.  Continua intacto; é mantido por subvenções coletadas em oito países.  No tempo de Charles formava 400 alunos por ano, agora forma 55 (o Reitorado afirma que os critérios tornaram-se mais exigentes). A estátua de Charles no jardim foi removida temporariamente para conserto na tubulação de esgoto.  Está deitada na horizontal, perto do muro, sua mão erguida se projeta sobre o laguinho onde bóiam folhas secas.

As paradas seguintes mostram a praça onde Charles foi alvejado durante uma manifestação sindical; o hospital onde ficou interno durante os seis anos seguintes, cruciais para sua formação teórica, quando leu tudo que estava ao seu alcance; o primeiro shopping onde pregou, pela primeira vez, após a cura e a conversão. Cada vez que o comboio se detém, os vidros-telas das janelas superpõem imagens históricas e texto escrolado à paisagem que observamos lá fora. 

Eu deveria sentir gratidão pela qualidade dos écrans das janelas, a alta definição das imagens que se superpõem ao que vem lá de fora, o esfumado das sombras e das cores, o delineamento das formas. Eu deveria agradecer pela exatidão com que a arte se superpõe ao mundo em pedra e osso.  Eu deveria ler tudo aquilo e acreditar piamente que existiu um dia um cara chamado Carlos Windsurf ou coisa parecida e que o que quer que esse camarada tenha feito mudou a vida, mudou o mundo como o conhecemos. Karl existiu? Foi um líder? Um messias? Um caudilho impiedoso e que falava bem? A viagem continua, e, diz um item no “Você Sabia?” do folheto promocional, “a biografia estocada de Charles tem certa de seis milhões de items para acesso aleatório, de modo que nenhuma vida, nenhuma história é igual à outra em Gotán City.”


sexta-feira, 12 de julho de 2013

3236) Escrevendo clichês (12.7.2013)






O clichê é uma expressão que, quando foi usada pela primeira vez, produziu nos leitores uma emoção poética instantânea.  Pela associação de idéias que fazia, ou talvez pelo seu modo de visualizar uma coisa de uma maneira original, mas reconhecível. Quando um jornalista descreve um acidente de carro e se refere às “ferragens retorcidas”, está usando um modo de dizer que em certo momento foi novo, produziu um efeito visual novo, trouxe uma informação nova para o leitor. O problema é que todo mundo começou a usar essa expressão; os jornais de 50 anos atrás estão cheios dela. O leitor, depois da décima vez, não está mais recebendo qualquer informação nova. Aquilo virou um carimbo repetitivo, sem novidade. E os redatores sem imaginação continuam recorrendo a ele, achando que estão sendo literários, que estão sendo expressivos.

Qualquer frase pode se transformar num clichê. Muitas vezes é um modo de dizer que foi popularizado pelo título de uma obra de muita repercussão. Depois que Zuenir Ventura publicou seu ótimo livro-reportagem 1968: o Ano Que Não Terminou, surgiu uma infinidade de livros falando num dia que não começou, numa semana que não acabou, etc. A expressão “a pergunta que não quer calar” incorporou-se em poucos anos ao linguajar escrito da nossa imprensa e às respostas de entrevistados, sempre que alguém quer introduzir uma questão da maior importância, ou para a qual não se está dando a atenção devida. Um clichê adjetivo que rapidamente se grudou ao nosso discurso coletivo foi a expressão “de plantão” para caracterizar um grupo de pessoas que compartilham uma atitude – daí falarmos  o tempo inteiro nos alarmistas de plantão, nos aproveitadores de plantão, nos críticos de plantão.

Acho que foi a apresentadora e entrevistadora Leda Nagle (que trabalhou muito tempo na Globo, e hoje está, acho, na Rede Brasil) quem popularizou a expressão “com certeza”. Ela sempre se despedia ao fim dos programas dizendo: “ E estaremos amanhã de volta. Com certeza.” Esse bordão foi se repetindo e acabou virando sinônimo de “sim”. Hoje em dia, pergunta-se: “Este é o seu novo CD?”, e o cantor responde: “Com certeza”. Toda vez que eu digo isso, numa entrevista, dou o dia por perdido.

Em vez de dizer que a estréia próxima do show está lhe dando um “friozinho na barriga”, diga que o está fazendo perder o sono, ou o apetite. Em vez de dizer que um goleiro foi um “espectador privilegiado” da partida, diga qualquer outra coisa – que ele tirou férias antecipadas, ou que passou o jogo no stand-by, ou que estava hibernando. Dispense o clichê velho. Se achar um bom substituto, ele pode até virar um clichê novo.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

3235) Um Pessoa muito pessoal (11.7.2013)




Um dos momentos mais intimistas e de maior empatia da 11a. Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) foi o recital de Fernando Pessoa feito pela cantora Maria Bethânia e pela professora Cleonice Berardinelli, “Dona Cléo”. Maria Bethânia foi uma das maiores divulgadoras da poesia de Pessoa em seus shows, a partir (creio) de Rosa dos Ventos, e depois em todos os outros em que trabalhou sob a direção de Fauzi Arap, a quem ela atribui tê-la “aplicado” com a poesia do português. Dona Cléo, aos 96 anos, considerada a maior especialista pessoana no Brasil, diz ter sido “inoculada” ainda aos vinte e poucos, por seu professor Thiers Martins Moreira, a quem dedicou um dos seus estudos sobre o poeta.

Respondendo a perguntas da platéia, entremeadas a provocações amistosas do mediador Júlio César Diniz, as duas recitaram poemas alternados dos heterônimos de Pessoa, e, às vezes, em estilo “mourão voltado”, cada uma dizendo uma linha. Poemas ditos em voz alta, principalmente por pessoas que os leem, releem e examinam há muitos anos, sempre trazem surpresas. Cada interpretação é pessoal. Certos versos parecem plácidos e tranquilos até que os ouvimos ditos com voz veemente, e percebemos que havia uma tempestade por baixo dele. Um tom interrogativo ou hesitante pode enriquecer uma frase aparentemente banal. Em geral, quando lemos, temos como único guia musical a pontuação gráfica, que serve como uma espécie de notação musical: indica pausas, força, pergunta, mudança de tom, etc.  A leitura na voz alheia nos mostra que outras pontuações, além da escolhida pelo autor, podem ser aplicadas àquelas frases.

Pessoa foi único em sua multiplicidade assumida. Depois dele percebemos que muitos outros poetas poderiam ter usado heterônimos para explicar facetas diversas de si mesmo. O Augusto dos Anjos humano e afetivo de “Ricordanza della mia gioventù” e “A árvore da serra” não é necessariamente a mesma personalidade que concebeu as visões tenebrosas do “Poema Negro” e das “Tristezas de um quarto minguante”.

É surpreendente também constatar que o baú de Pessoa tem mais material que o de Raul Seixas. Desde a morte do poeta em 1935 não param de aparecer poemas inéditos, que Dona Cléo afirma serem às vezes quase ilegíveis, pela idade do papel e da tinta, além da própria caligrafia do autor. Requerem lupa, requerem fotos e ampliações, requerem longas discussões sobre palavras borradas ou obscuras. Como se cada palavra fosse ao mesmo tempo várias outras, e cada uma dessas escolhas nos desse a possibilidade de compor, por multiplicação combinatória, incontáveis poemas diferentes.


quarta-feira, 10 de julho de 2013

3234) A Vida e os Tempos de Oklahoma James (10.7.2013)




Cap. 1 – De como ele estreou na Antropologia (e ganhou seu nome de guerra) aos oito anos, ao encontrar no quintal da casa dos pais um pedaço de osso que ele por algum motivo obscuro levou ao Museu local, e não à polícia, como 99% das pessoas fariam.

Cap. 2 – De como a exumação de preciosidades virou idéia fixa do jovem, durante sua graduação no Crato, seu mestrado na USP, seu doutorado na Sorbonne e sua residência nos trópicos.

Cap. 3 – De como suas boas notas e melhores recomendações acadêmicas ajudaram a aprovar-lhe uma verba para um safari; e das providências de ordem prática que tomou. 

Cap. 4 – De como um mês depois ele percorria desertos inacessíveis, a meio caminho entre o país onde Judas perdeu as botas e o lugar onde o vento faz a curva. 

Cap. 5 – De como conduzia consigo abundante ferramental científico e etnográfico, levado por cinco buanas com caixas na cabeça, andando ritmadamente, dizendo uga-uga.

Cap. 6 – De como um dia eles cruzaram o leito seco e fundo de um rio e se depararam com uma paisagem nunca antes vista por um homem ocidental.

Cap. 7 – De como, ao penetrar nas ruínas ainda habitadas dessa civilização desconhecida, fotografaram os aborígines, recolheram manuscritos, encaixotaram relíquias, com Oklahoma James dando ordens e os buanas obedecendo e dizendo uga-uga.

Cap. 8 – De como estavam todos tão excitados com a descoberta que erraram o caminho de volta e, marchando na direção errada, foram dar num deserto pra lá de inóspito.

Cap. 9 – De como Oklahoma James, de tanto dar ordens aos buanas, se cansou daquela resposta de uga-uga e ordenou que daí em diante a língua deles fosse balaco-baco.

Cap. 10 – De como chegaram num vale fértil e verdejante, sendo que nele uma lagoa, e nela uma ilha, e nessa ilha uma revoada de mulheres de pele branca e macia, trajando véus de musselina, riso brejeiro e nada mais.

Cap. 11 – De como três séculos depois, mercê de um inverno tão rigoroso que congelou a lagoa, Oklahoma e seus buanas conseguiram fugir daquele malsinado recanto, roubando canoas e pondo-se rio abaixo numa alucinada fuga.

Cap. 12 – De como após várias peripécias desembocaram num porto fluvial onde Oklahoma tinha amigos, com os quais combinou um leilão imediato do material arqueológico.

Cap. 13 – De como os fregueses locais compraram tudo, e só lhe bastou recolher a grana e chamar os buanas, balaco-baco, balaco-baco.

Cap. 14 – De como o trazimento das relíquias de pouco serviu, mas que o fato de terem largado entre os aborígines, para esvaziar os caixotes, todo seu ferramental científico e etnográfico, criou no milênio seguinte quatro civilizações e dois povos nômades.


terça-feira, 9 de julho de 2013

3233) Baleia na Flip (9.7.2013)






Ela se esgueira por entre as pernas da multidão e passeia encantada com tantas luzes e cores. Entende que está havendo festa, e quer participar. Aqui e ali jogam-lhe um osso de galinha, um resto de hot-dog que ela abocanha antes que chegue ao chão. Passa invisível e célere, vendo tudo com olhos compreensivos. 

Vê madames grisalhas com xales e chapéus de palhinha enfeitados de flores, fotografando os barcos a oscilar no rio. Jovens casais de mãos dadas e olhares paralelos. Vendedores de churros e de cordéis. Músicos de rua tentando tocar mais alto do que a algaravia dos grupos que passam diante deles e sorriem sem escutá-los. 

Baleia ergue as orelhas e recebe a música; entende o riso largo no rosto do rapaz cabeludo, de chapéu, cigarro oblíquo na boca. Ela sabe quando alguém está feliz.

Baleia vai se esquentar na banda ensolarada da Praça da Matriz, a meia distância das pessoas de papelão colorido penduradas em arames, dos pés-de-livros. Passam professoras tangendo bandos de crianças rumo a um circo azul. Homens rosados, de barbas muito brancas, caminham devagar, sempre sorrindo, principalmente quando falam sozinhos segurando algo junto à orelha. 

Na ponte embandeirada, grupos se cruzam indo e voltando, apontando para coisas que Baleia procura em vão com seus olhos obedientes. Um estralejar de rojões bem perto a faz dar um pulo e sumir correndo por entre as tendas de doce e de pipoca.

Agora é de noite. As ruas estão escuras e brilhantes, os restaurantes estão mais cheirosos, o movimento aumentou. Já não se ouve o cloc-cloc das charretes com seus cavalos imprudentes que não respeitam o direito de ir-e-vir dos cães. 

A música recrudesceu, e Baleia já sabe que onde músicas são tocadas paira uma exaltação boa e as possibilidades de osso de galinha aumentam. Ela cruza a ponte. Para diante da entrada de uma tenda gigante, cavernosa, onde ressoam vozes pausadas e cultas através de alto-falantes. Todos os dias os humanos, sempre tão agitados, se organizam em filas pacientes para ter acesso ao que ocorre lá dentro.

Baleia vai, vem, ilude uma mosca grandona que lhe persegue o focinho, senta-se alerta olhando a grande parede ocre coberta de sinais. Ela tem hoje os ouvidos cheios de canções e de conversas. 

Seus olhos estão acostumados a ver aquelas formiguinhas pretas inscritas por toda parte, e percorrem aquelas linhas, cujo sentido está quase ao seu alcance, até que se detêm na derradeira palavra. Um frêmito atávico, genético, ativado por milênios de simbiose, relampeja em seus neuroniozinhos e Baleia assoletra: “P-r-e-á-s...”. Preás! Sua cauda sorri de reconhecimento. Preás! A vida presta.







segunda-feira, 8 de julho de 2013

3232) 10 Canções (7.7.2013)





(Sidney Miller, Brasil - Do Guarani ao Guaraná)



“O mundo é um moinho” (Cartola), tocando no rádio da prateleira do botequim quase deserto, na noite em que Vamberto fumou um maço de cigarros, tomou oito uísques e ligou onze vezes para o celular de Marlene, que só dava fora de área.

“Luzia Luluza” (Gilberto Gil), cantarolado quase toda tarde por Soninha enquanto vende ingressos na bilheteria de um multiplex, lembrando o primo que lhe mandou esse mp3 no dia em que soube onde ela passaria a trabalhar.

“Stairway to Heaven” (Led Zeppelin) cantado mais-ou-menos ao violão por um rapaz numa festa, e servindo de trilha sonora involuntária para algo que acontecia num terraço próximo. 

“Private Dancer” (Tina Turner), que quando tocava nas festas Mariinha botava pra quebrar nas coreografias, sem entender pirocas da letra.

“Alice’s Restaurant” (Arlo Guthrie), numa versão em português, fidelíssima e aparentemente integral, que Laércio escutou cantada no bar ao lado de um restaurante onde ele estava tendo a reunião de trabalho mais crucial dos últimos dez anos, e viajou na manhã seguinte sem nem saber quem era o cara.

“Puxando fogo” (Elino Julião), que lembrava a Carlos sua infância, quando seus pais tinham uma barraca de bebida e tiragostos, e de vez em quando, no domingo à noite, depois da saída do último freguês, eles botavam essa música, dançavam os dois na barraca vazia, depois desarmavam tudo e iam para casa na maior paz.

“Até pensei” (Chico Buarque), que tocava numa loja de discos, fazendo Adalberto parar para escutá-la por três minutos, findos os quais encontrou casualmente na calçada o Dr. Vieira que não via há anos e que depois de uma boa prosa acabou por oferecer-lhe o emprego de que ele tanto precisava.

“Rue Watt” (Boris Vian). Era (ele descobriu muitos anos depois) a música-tema, ou, como se dizia na época, “a característica”, do melodrama rádio-folhetinesco “A Bastilha do teu Coração”, onde sua mãe era locutora e atriz. Teve um choque quando ouviu a música durante seu doutorado em Bardologia.

“Na Emenda” (Trio Nordestino), impossivelmente escutado por Guilherme e Mariana em Amsterdam, da calçada, vindo de um terceiro andar de uma casa desconhecida, numa noite de inverno zero-graus, e que os consolou do frio, da distância, da nostalgia gastronômica e de alguns desencontros da alma.

“Pois é, pra quê?” (Sidney Miller), uma balada nostálgica e existencialista, puxada por um assobio estradeiro e um violão mínimo, cartum e litogravura cravando e certificando as arestas ásperas do espírito do ser, o recorte cruel das aparências pop, a gincana de colagens dos tropicalistas. A fotografia de um momento cheio de curvas, feita por uma mente que queria tudo entender.









3231) Rorschach (6.7.2013)




Este sobrenome evoca o criador dos famosos cartões com borrões de tinta que os psicólogos mostravam aos pacientes, pedindo uma interpretação. A primeira vez que ouvi falar neles foi num livro de FC da antiga Coleção Futurâmica, Pânico na Terra de L. R. Fanthorpe. Um capítulo inteiro, numa nave, mostra a psicóloga da equipe submetendo todos os oficiais a esse teste, e qualificando o resultado de cada um. Muitos desses borrões são simétricos, porque produzidos através de respingos de tinta num cartão que é depois dobrado sobre si mesmo, e desdobrado depois, exibindo as manchas.

Muitos anos atrás vi numa revista francesa de cinema, em algum lugar, a expressão “Glauber Rorschach” para se referir ao diretor baiano. A vantagem das imagens Rorschach é que elas permitem uma grande variedade de interpretações. Estas não são totalmente espontâneas. O borrão simétrico induz uma semelhança inconsciente com plantas ou com animais que têm esse tipo de estrutura.

O personagem chamado Rorschach na série dos Watchmen (roteiro para quadrinhos de Alan Moore, filme de Zack Snyder) tem uma máscara como um tecido branco cobrindo sua cabeça e seu rosto inteiro. Nessa superfície branca de tecido flutuam e deslizam manchas negras, num movimento perpétuo, como um protetor de tela escondendo o verdadeiro rosto de alguém. Talvez os borrões pretos no espaço branco reflitam o nosso moído mental inconsciente, que nunca cessa, nunca diminui, e nunca chega a lugar nenhum. Um holograma da mente humana.

E como é possível haver um tecido assim, por onde as manchas passem sem deixar rastro? Poderíamos estabelecer (quem é de FC pensa logo em algo deste jeito) que esse tecido é uma espécie de superfície polímera, recoberta de pequenas estruturas em forma de poliedro bidimensional (no caso, mais precisamente, em forma de hexágono). Cada hexágono-célula pode estar apagado ou aceso, zero ou um. Como ele está cercado por seis outros hexágonos, podemos estabelecer que o fato dele ser preto ou branco depende de cada condição momentânea dos seis que o limitam. Se em cada microssegundo houver em volta dele, por exemplo, cinco positivos e um negativo (ou seis positivos e nenhum negativo), positiva ela será. Se no instante seguinte as outras mudarem, ficando, p. ex., quatro negativas e duas positivas, a célula no centro desse círculo imediatamente ficará negativa. O estado de cada ponto luminoso dependerá dos que o cercam, mas nenhum deles controla o processo.

As manchas negras na máscara branca de Rorschach têm a imprevisibilidade estatística das tempestades, dos terremotos, de tudo que é tão grande que não pode ser previsto a curto prazo.