quarta-feira, 28 de novembro de 2018

4409) "O Outro Lado do Vento" (28.11.2018)



Este filme póstumo de Orson Welles, lançado este ano depois de décadas de desencontros e atrasos, está em exibição no Netflix, e vem acompanhado por uma espécie de making of com o título Eles Vão Me Amar Depois de Morto, uma extensa reportagem com todos os envolvidos na realização do filme, anos atrás, e com sua finalização recente.

Ou seja, é um argumento tipo A Noite Americana (1973) de François Truffaut: vemos um filme, o filme “de fora”, sobre uma equipe que está realizando um segundo filme, o filme “de dentro”. Na história de Truffaut, ele próprio encarna o diretor deste segundo filme, cujo título é Je Vous Présente Pamela.

No caso de Welles, o filme-que-está-sendo-feito é um daqueles filmes-cabeça europeus de raros diálogos e gente vagando sem rumo por entre cenários inquietantes.

O filme “de fora” começa com o encerramento de mais um dia de filmagem.  Uma caravana de gente – atores, técnicos, imprensa, figurantes, gente peruando a filmagem – parte imediatamente para um rancho próximo, para uma festa boca-livre onde cenas já editadas do filme-cabeça serão exibidas. A festa dura a noite inteira; o filme termina ao amanhecer.

O diretor desse filme-cabeça, chamado igualmente The Other Side of the Wind, é Jake Hannaford, interpretado por John Huston. É um personagem e tanto, e Huston é bom ator, no sentido de que é um sujeito de inteligência rara, exuberante, viril, desbocado, e parece entender bem o personagem, um gênio paparicado e impulsivo.

O filme “de dentro” mostra uma mulher bonita sendo estalqueada por um rapaz bonito, sem que uma palavra seja trocada entre os dois. A certa altura ocorre o que os resenhadores chamam “uma tórrida cena de sexo” num carro em movimento, à noite, à chuva, em plena estrada. Depois os dois vagueiam por entre cenários de estúdio abandonados, entregues à chuva e ao vento.

O filme “de fora”, mostrando a festa, lembra muito aquelas sequências de F For Fake (“Verdades e Mentiras de Orson Welles”, 1978), com câmaras misturadas à multidão e uma sucessão estonteante de pessoas desconhecidas gritando perguntas, respostas, chamados, alusões, argumentos, que talvez a gente só entenda mesmo quando vê o filme pela segunda vez.

Montagem picotada, imagem com qualidade variável, um efeito de descontinuidade, de algaravia ininteligível, desorientação, o que acaba nos levando para dentro da festa, que não é outra coisa senão isto. Huston é o centro de tudo, e na última meia hora de filme está visivelmente bêbado, ou interpretando bem o papel de bêbado.

Em torno da bebedeira e da projeção de parte do copião do filme, rolam as rivalidades, discussões, traições e provocações que esperamos encontrar num filme sobre Hollywood. Feito por alguém que teve de Hollywood as experiências que couberam a Orson Welles.

Um papel importante é o do diretor Peter Bogdanovich (Na Mira da Morte, A Última Sessão de Cinema, Lua de Papel, etc.), meio que reproduzindo junto a “Jake Hannaford” (Huston) o papel que viveu fora dos filmes, junto ao próprio Orson Welles: entrevistador, biógrafo, fã, especialista, etc.


(um ator, Welles, dirigindo dois diretores, Huston e Bogdanovich)

O núcleo do enredo deste filme tem aquele tema que eu chamo, pegando carona no filme de Sidney Lumet, a Longa Jornada Noite Adentro. Uma noite insone vivida por um grupo de pessoas em crise; uma narrativa interminável que se encerra com o nascer do sol.  Tipo A Noite de Antonioni, o Quem Tem Medo de Virginia Woolf de Edward Albee, a festa de A Regra do Jogo de Jean Renoir...

É a agitação às cegas de um certo pessoal do cinema, que acorda cedo, trabalha duro, e de noite está com a cabeça tão acelerada que força o corpo a não dormir, a poder de bebida, de drogas, de sexo, de brigas, de gargalhadas, de agitação sem sentido, de qualquer coisa que pareça fazer o tempo sumir no horizonte.

É a noite do iguana, a noite dos desesperados, a noite dos mortos vivos, a noite do espantalho; é a Longa Jornada Noite Adentro.












domingo, 25 de novembro de 2018

4408) Visse? (25.11.2018)




(foto: Vanderlei Almeida)

Ainda não consultei a tabela, e não sei se o Flamengo já é “de fato” vice-campeão brasileiro, após a vitória de 2x0 sobre o Cruzeiro e a vitória de 1x0 do Palmeiras sobre o Vasco.

Um vice-campeonato por pontos corridos parece menos doloroso do que um vice num campeonato eliminatório por chaves como a Copa do Brasil ou a Libertadores. Aquele campeonato que a gente perde no derradeiro jogo.

Num destes torneios melodramáticos, de reviravoltas impossíveis e campanhas incontroláveis, você pode ser o oitavo dos oito classificados para a chave decisiva, e acabar sendo o campeão, como acho que já aconteceu com o Santos.

Tudo se decide num jogo, às vezes num lance, numa bola na trave, num gol perdido, num pênalte de Schrodinger, naqueles lances que no futuro virarão um “o empurrão em Sicrano” ou “a bola de Fulano que não cruzou a linha”. Esses mistérios que, à falta de outros registros e novos relatos, vão se perpetuar na eterna nuvem do “já que não se pode nunca saber como foi, pode-se afirmar qualquer versão que nos convenha”.

Um campeonato de pontos corridos tem também suas quedas bruscas e suas subidas estonteantes, mas é como se tudo acontecesse em câmara-lenta, as tendências de desempenho das equipes levam semanas para se delinear.

Num campeonato de pontos corridos, o que existe é um fluxo de desempenho único, do primeiro ao último jogo. Cada ponto vai contar, cada gol tem peso, e tudo o mais. É como se fosse um gigantesco jogo dividido em 38 fatias de noventa minutos.

Já num campeonato eliminatório, cada chave da parte decisiva está zerada em relação aos pontos ganhos e perdidos antes. Não tem mais contagem de pontos. Bate-se o martelo com o resultado dos jogos de ida e volta. É o mesmo jogo, só que menos gigantesco, tem apenas 180 minutos, dividido em dois segmentos de noventa.

É claro que do ponto de vista narrativo esta segunda modalidade é folhetim puro, é uma tragédia ou uma epopéia por semana, um dobrar de apostas em bases cada vez mais altas. Esta modalidade agrada quem está em busca de emoções, de folhetim, de melodrama, de corações e mentes se dilacerando em busca da vitória.

O campeonato de pontos corridos é feito aquelas poupanças onde você deposita um real a cada graça recebida e reza para que exista alguém lastreando seu saldo. Tudo nele é longo prazo, tudo nele pode ser projetado ao longo de 38 fortalezas de pedra ligadas por extensas passarelas como na Muralha da China, esticando-se até a parte inferior do calendário do ano.

Se você perde um campeonato de pontos corridos porque ficou 1 ponto (digamos) atrás do campeão, é inevitável pensar que “os pontos que precisamos agora foram os perdidos no jogo A, no jogo B, etc”.

É muito raro um campeonato de pontos corridos ter no último jogo, decidindo campeão e vice, os dois clubes mais bem colocados. Aí sim, haveria uma disputa pelo título travada dentro de campo, na grama, um contra o outro.

Literariamente, o campeonato por chaves e confrontos eliminatórios tem o suspense e o sem-fôlego dos folhetins de Alexandre Dumas e Maurice Leblanc, e se assemelha em estrutura aos relatos mitológicos dos trabalhos de Hércules. Uma sucessão de desafios, onde a cada dois passos o herói colapsa na vida ou na morte.

Já o campeonato de pontos corridos parece aquelas sagas históricas a longo prazo, contando gerações sucessivas de uma mesma família, século entrando em século. Aquelas trilogias de Érico Verissimo ou aqueles catataus de Balzac. Um modelo que Garcia Márquez retomou numa chave de magia para contar suas famílias colombianas.

Também literariamente o campeonato eliminatório pode ser visto como uma coletânea de contos, ou como uma novela de capítulos sucessivos que são unidades dramáticas em si mesmas. O campeonato de pontos corridos é um romance de dimensões dickensianas, jorgeamadianas, tolkienianas.

Ou mais até, porque diferentemente da maioria dos livros esse campeonato é um barco onde todos os personagens entram juntos e ficam todos juntos até o dia da última rodada, não sai ninguém de cena até a cortina fechar.

Isso são comentários meio ao correr de pena e ao sabor da viração, motivados pelos resultados de hoje. Quem gosta de futebol gosta por uma infinidade de razões diferentes, que nem sempre são as mesmas do nosso vizinho do lado.

Uma das coisas que me dão prazer, independentemente de torcer por algum time, é acompanhar campeonatos e ver como se desenvolvem. Vale também para campeonatos de vôlei, basquete, tênis, qualquer coisa. (Não sei se nesses, internacionalmente, usa-se muito o sistema de pontos corridos.)

Este ano de 2018 tivemos uma Copa do Mundo com uma narrativa morna, e os grandes momentos, de verdadeira emoção, só aconteceram por inevitabilidade estatística.

Já o Campeonato Brasileiro de 2018 começou com o Flamengo se sustentando numa liderança que não visitava há anos, controlando jogos difíceis, derrubando adversários. A parada do meio do ano para a Copa do Mundo não fez bem ao time (que já nem terminou no mesmo pique o chamado “primeiro turno”). O São Paulo aproveitou esse baque e assumiu a ponta, por algumas semanas, acho.

E então o grande Felipão ressurgiu das cinzas, e logo no Palmeiras. A grandeza de um técnico ou de um atleta às vezes não é pela genialidade técnica ou pela grande figura humana, mas apenas por ser um cara capaz de obter o impensável e desmoralizar o impossível. Depois da derrota de 2014, achava-se que ele não voltaria mais, e ele voltou.

O Flamengo, este ano, promoveu mais um jovem craque (Lucas Paquetá) e vendeu dois (Paquetá e Vinicius Jr.). A defesa é de pouca conversa, dá suas cabeçadas, tanto a favor quanto contra. O time continua sem ataque. Henrique Dourado parece às vezes que está jogando a partida que está passando noutro canal.

O grande número de gols marcados pelo time não resulta de ele ter bons atacantes, resulta do volume de jogo que a equipe consegue exercer, e aí o gol pipoca de qualquer ponto.

O goleiro César tem aparecido muito bem. Diego jogou menos do que no ano passado, e este ano quem melhorou muito foi Everton Ribeiro, que é bom armador e bom finalizador. O time nunca é o ideal, mas dá pro gasto.











quinta-feira, 22 de novembro de 2018

4407) 50 anos do "Álbum Branco" (22.11.2018)




Essas comemorações de gente grisalha são boas porque levam a gente, às vezes, a escutar de novo um disco. Ou ler um livro pela primeira vez, tanto faz. A obra começa a existir de novo, ao estar sendo fruída.

O Álbum Branco é aquele disco barroco dos Beatles, cujos 50 anos de lançamento estão sendo comemorados este mês de novembro. (O lançamento britânico foi no dia 22, e nos EUA no dia 25.) Digo barroco porque é um disco de excessos, de contrastes, de um certo experimentalismo radical onde o entusiasmo é tanto que dispensa a busca de algum objetivo.

Minimalista na capa mas barroco por dentro. Essa exuberância vinha aumentando a cada disco depois de Revolver (1966), onde surgiram as peças orquestrais, a exploração do eletrônico e as sonoridades orientais, que voltariam com maior consciência e domínio no Sgt. Pepper’s (1967).

O álbum branco, gravado um ano depois do outro, é um bricabraque eclético que parece mais uma loja de antiguidades num quarteirão da moda jovem do que uma peça conceitualmente interessante e estruturalmente bem executada, como Sgt. Pepper’s tinha sido.

Reza a lenda que o álbum virou duplo para encerra um contrato de “x” discos que eles queriam cumprir logo, porque a negociação não tinha sido muito favorável para eles. O produtor George Martin teria dito que se eles tirassem daquelas centenas de fitas as doze melhores canções, seria um disco tão bom quanto o Pepper’s. Eles fincaram pé: não, vão ser dois elepês, e chau e bença.

Quais seriam umas hipotéticas doze ou treze faixas que representassem bem o White Album? Não me refiro a escolher as melhores (porque cada um tem as suas), mas as que melhor refletissem o perfil do álbum.  Que mostrasse o que havia de mais típico da sua instrumentação, seus temas, seus efeitos vocais, seu uso do violão acústico...

Uma playlist dessas faixas (o álbum tem trinta), para representar o espírito da obra.

Sem ordem de execução ou cronológica, algumas canções que acho representativas:

1) Violão acústico.
Durante o tempo em que ficaram na Índia com o Maharishi, os Beatles conviveram com Donovan, o compositor de “Atlantis”, “Mellow Yellow”, etc.  Donovan cultivava um estilo de dedilhado (em geral no tom de ré maior) comum em várias tipos de música folk. Outros que usaram muito isso na época foram Bob Dylan e Paul Simon. Essa forma de harmonização e de arpejar está presente em “Dear Prudence”, “Mother Nature’s Son”, “Sexy Sadie”, “Cry Baby Cry”. Cada um escolha a que lhe agrada mais.

2) Historinhas.
Se “Cry Baby Cry” não for escolhida para preencher o item anterior, pode muito bem representar este das historinhas, das letras que são como pequenas HQs. “Cry...” é sobre um reinado meio Lewis Carroll, meio Shirley Jackson, mas também tem o safari caricatural de “Bungalow Bill”, o faroeste busterkeatoniano de “Rocky Raccon”, o pré-reggae riponga de “Obladi Oblada”.

3) Experimentos.
A curiosidade dos Beatles, principalmente de McCartney, para com novos equipamentos de som ou novos instrumentos trouxe para este disco algumas das experiências mais extremas, que eles não repetiriam no futuro. É o caso de “Revolution 9”, a colagem de efeitos sonoros que muitos fãs consideram a pior faixa gravada pelos Beatles. Outras escolhas podem ser a algaravia metaleira de “Helter Skelter”, a  cacofonia obsessiva de “Wild Honey Pie”, a instalação-intervenção de “Why Don’t We Do It In The Road”.

4) Oldies.
O gosto dos Beatles por formas musicais “vintage”, de algumas gerações anteriores à deles, foi certificado na gravação de “When I’m Sixty-Four”. As “oldies” que podem representar essa categoria são “Honey Pie” (que Ian MacDonald considera “um consumado pastiche em escrita e em interpretação”), “Good Night” (que lembra aquelas canções-tema de novelas radiofônicas dos anos 1950), “I Will” (uma balada abolerada dos anos 1950).

Além dessas quatro fixas coringas, indico as minhas preferidas, aquelas que para mim caberiam em qualquer dos melhores discos dos Beatles.

5) “I’m so tired”
É uma das melhores músicas sobre a Insônia em todos os tempos. A voz de Lennon tentando acalentar a si mesma, depois explodindo de impaciência. Aquelas insônias em que cada tiquetaque o relógio parece mais pesado que o anterior.

6) “Julia”
Talvez seja a melhor música que Yoko Ono proporcionou a Lennon, e a delicadeza das imagens era uma coisa nova na poética dele: “ocean child” (o significado de “Yoko” em japonês), “silent cloud”, “sleeping sand”... Ian MacDonald comenta: “É a canção mais infantil e mais auto-reveladora de Lennon; Julia chega a ser quase demasiadamente pessoal para ser exposta ao consumo por parte do público”.

7) “Blackbird”
Seria uma resposta mccartneyana à música anterior, uma canção melodicamente conduzida por um ponteio de violão acústico, do princípio ao fim. Uma canção desse-tamanhinho que sabiamente foi gravada do tamanho ideal e ficou perfeita.

8) While My Guitar Gently Weeps
Esta canção de George é uma das mais ambiciosas musicalmente, e a gravação eu acho impecável: bateria, linha de baixo, levada, timbre lancinante da guitarra, o solo de Eric Clapton. Ian MacDonald não gosta nem um pouco desta faixa.

9) Martha My Dear
Esta canção de amor de MacCartney para sua cadela felpuda é um daqueles exemplos de uma montanha de criatividade e de esforço artesanal (arranjos orquestrais, gravações) parindo, no final de tudo, uma homenagem a um animal doméstico. Mas a elaboração musical vale por tudo.

10) Piggies
O mesmo vale para essa mistura do eletrônico com o barroco, para resultar numa sátira orwelliana à animalidade do mundo. Esses cravos bem temperados fazem pensar num curta surrealista dirigido por Walerian Borowczyk ou Jan Svankmajer.

11) Happiness Is A Warm Gun

Esta é talvez a música estruturalmente mais complexa do disco inteiro, e por muito tempo foi minha favorita, por ser uma espécie de trem com vários vagões sucessivos, cada qual diferentíssimo dos anteriores: “She’s not a girl...”; “She’s well acquainted...”; “I need a fix...”; “Mother Superior jump the gun...”; “Happiness is a warm gun...”; “When I hold you in my arms...”.

12) Long long long
Esta canção de George Harrison parece uma coisa fora do mundo, como um filme preto-e-branco tcheco com legendas em francês, filmado através de vidros fumê. Um clima de estranhamento, insubstancialidade, que está presente também em “Blue Jay Way” (de Magical Mystery Tour), em “Northern Song” (de Yellow Submarine) e em uma ou outra faixa do enorme All Things Must Pass, primeiro álbum solo de Harrison.

13) Yer Blues
Para muitos, a melhor faixa de Lennon no disco, e dá para ver por que. É o momento Janis Joplin, em que Lennon pega a voz que tem e canta como se tivesse a voz de  um Howlin’ Wolf. A letra é precisa e cortante. A voz em cada frase parece uma peça de seda se rasgando. Bateria, guitarras e baixo se atropelam uns aos outros mas isso mostra que o objetivo ali é explodir, não fazer uma coisa bonitinha. E foi gravada assim, tudo junto, cheia de erros, no que Ian MacDonald chama de audio vérité.

E pronto, não é mesmo? Treze faixas está de bom tamanho; não seria melhor do que Revolver ou Pepper, mas não é para esse tipo de comparação que as pessoas compõem e gravam músicas.












segunda-feira, 19 de novembro de 2018

4406) O menino Guimarães Rosa (19.11.2018)




Hoje se completam 51 anos da morte de João Guimarães Rosa, e acabei folheando um livro que li recentemente: Joãozito – Infância de Guimarães Rosa, de Vicente Guimarães (José Olympio/INL-MEC, 1972).

Vicente Guimarães está meio esquecido agora, mas foi um célebre autor infantil quando eu era menino, principalmente em textos veiculados na revista Sesinho, editada pelo SESI. Ele usava o pseudônimo “Vovô Felício” para assinar seus contos curtos, muito divertidos, e suas obras paradidáticas. Seu personagem mais original era João Bolinha, um boneco cujo corpo e membros eram feitos de bolas articuladas umas às outras.



Lembro com clareza de dois livros infanto-juvenis seus que li e reli quando garoto: Lenda da Palmeira (1944), sobre a fundação de Belo Horizonte, e a biografia de Rui Barbosa, Rui (1949).



Vicente era o irmão mais novo de “Chiquitinha”, D. Francisca Guimarães Rosa, mãe do escritor. Um tio meio “primo”, porque era apenas dois anos mais velho do que o sobrinho, e os dois compartilharam leituras, brincadeiras e aventuras. Uma amizade que durou até a morte de Rosa em 1967.

Joãozito é menos uma biografia do que uma rememoração nostálgica, com a previsível exuberância de afetos e louvores. Um livro simpático, que vale menos pela análise do que pela profusão de pequenos detalhes e episódios esclarecedores de aspectos do escritor e da obra.

Torna-se meio datado e cansativo pelo fato de Vicente tentar emular a linguagem do sobrinho, num jogo meio brincalhão, meio hagiográfico: “E como é gostoso, agradável, escrever assim, laborando as frases, enfeitando-as com palavras vigorosas, lendo-as e relendo-as, riscando, corrigindo, transformando, realizando hipérbatos e sínquises para mais vivazear o texto ou ao lugar-comum fugir”.

Com a repetição de um número limitado de truques, o estilo acaba lembrando mais o Yoda de Star Wars do que Rosa: “Tudo que você fez em literatura, Joãozito, genial foi.



No livro de “Vovô Felício”, contudo, encontram-se fartas informações sobre a cidade de Cordisburgo, seu ambiente social, sua história política; sobre a família Guimarães; sobre os personagens pitorescos do lugar; sobre férias, fazendas, gado, boiadas, brinquedos, leituras.

Vicente esclarece pequenos detalhes da formação cultural do escritor:

Em março de 1917, chegou a Cordisburgo, como coadjutor, o Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano, holandês. (...) [Com ele, Joãozito] além de curiosidar o holandês, aperfeiçoou os estudos de francês. Foi Frei Canísio o seu professor e não o Frei Estêvão, como noticiaram em diversas biografias suas, publicadas em jornais e livros. Houve informação errada. (p. 29-30)

A boa memória de Vicente o faz evocar pequenas lembranças da meninice que depois Rosa iria reproduzir em seus livros.

Como esta cantiga, usada por ele em “A Hora e Vez de Augusto Matraga”:

Eu já vi um gato ler
e um grilo botar escola;
nas asas de uma ema
vi jogar jogo de bola.
Só me falta ver agora
cender vela sem pavio
sungar pra riba a água do rio,
dar louvores e macaco,
o Sol se tremer com frio
e a Lua tomar tabaco. (...)
(p. 78)

E este episódio de brabeza cômica, usado em “Corpo Fechado”. Um valentão está na bodega quando chega outro, olha-o de cima a baixo e diz ao caixeiro: “Você, rapaz, tem aí dessas facas que entram na barriga e murgueiam?” O outro engrossa o cangote e pergunta também ao rapaz: “Ei, moço! Você tem aí dessas balas mauser que batem na testa e chateiam?” (p. 80)

Aqui e acolá pequenas pistas vocabulares, como a existência de um tal Alferes Felão, sujeito de maus bofes lá de Cordisburgo, que acabou virando nome comum na prosa rosiana, no Grande Sertão: “Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas filhas-de-deus – felão de mau”.

Um detalhe que sempre me chama a atenção é o do gosto de Rosa pela literatura policial. Aqui e acolá em suas conversas ele cita o Mistério Magazine de Ellery Queen, uma leitura recorrente, que muito o elevou em meu conceito.

Diz Vicente que um dia, os dois já morando no Rio de Janeiro, Joãozito, que estudava para o exame no Itamaraty, ligou para o tio-amigo. Estava com a cabeça agoniada, estudando há mais de vinte horas seguidas, precisava conversar para não ficar doido. Vicente correu ao Hotel Fluminense, onde Joãozito se hospedava.

Eu morava no Andaraí. O bonde que passava por minha casa ia justo atravessar a Praça da República. Não me demorei.
Ao chegar no quarto do hotel, bati na porta. Escutei: “Entre”.
Encontrei meu sobrinho nu, deitado, coberto por um lençol, comendo ostras e na mão tendo um livro policial.
Admirei-me: “Então você me chama porque está cansado de estudar e eu o encontro lendo romance policial!”.
Explicou: “Só assim consegui desviar meu pensamento. O romance policial me distraiu. Recurso lembrado só depois de meu telefonema a você”.

Esse concurso para o Itamaraty, em que Rosa foi aprovado em segundo lugar, deu-se em 1934. Nada me impede de especular que ele poderia estar lendo algum volume da Coleção Amarela (Editora Globo, Porto Alegre), como Na Pista do Alfinete Novo de Edgar Wallace (um dos preferidos de Ariano Suassuna), que saiu em 1933.

Joãozito é assim, cheio de pistas para os futuros biógrafos, inclusive esta:

Estudioso, culto, competente, possuía memória invejável. No dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras, almoçou, com sua mãe, em meu apartamento. Procurando obter minha opinião quanto à tonalidade de voz que devia manter ao microfone, reproduziu de cor, quase perfeita, a parte inicial de seu discurso, que gravamos, para que ele ouvisse e julgasse. Temos a fita. Lembrança preciosa. (p. 98)

“Temos a fita”!

Rosa era supersticiosíssimo, e sabe-se o quanto se cercava de rituais protetores. Temia a idade de 58 anos, porque (segundo Vicente) “de seus sete tios amigos, quatro morreram quando viviam os cinquenta e oito anos.”  Rosa morreu com cinquenta e nove.

Na parte final do livro vêm transcritas as cartas de João, muitas delas fornecendo opinião, crítica e conselho sobre os textos do tio. E ele nunca abre mão de seus princípios estéticos:

Nisso, aliás, como em tudo o mais, o que se passa aqui é mero reflexo do que vai pelos países cultos. A palavra de ordem é: construção, aprofundamento, elaboração cuidada e dolorosa da “matéria-prima” que a inspiração fornece, artesanato. (carta de 1947, p. 132)

É de se lamentar um pouco a diplomacia de Vicente Guimarães, omitindo, em sua transcrição das cartas, os nomes dos escritores contemporâneos que Rosa critica, confidencialmente:

Outros, são universalmente considerados como cretinos. Um exemplo: o nosso conterrâneo [.....], se bem que entendido um pouco de gramática e tendo jeito para folclorista, faz de palhaço, quando se mete a proferir sentenças sobre arte. (...) Exemplo: o meu amigo [.....], se bem que tendo, realmente, o “Fogo sagrado” e muita seiva rica, tomou um bonde errado; construiu sua obra baseando-a no tosco e no instintivo, e agora...  (p. 138-139)

Em outra carta transcrita no livro, para sua prima Lenice, do Curvelo, ele declara em 1966:

Posso dizer sinceramente que, de tudo o que escrevi, gosto mais é da estória do Miguilim (o título é “Campo Geral”), do livro Corpo de Baile. Por que? Porque ele é mais forte que o autor, sempre me emociona; eu choro, cada vez que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas. Mas, o porquê, mesmo, a gente não sabe, são mistérios do mundo afetivo. (p. 173)

Joãozito é um livro precioso; puxando com pente-fino as adiposidades, os pastiches de estilo, as repetições, as compreensíveis hipérboles afetivas de quem rememora uma pessoa querida e importante, resta muita, muita coisa sobre o ambiente que formou a cabeça-miguilim do autor de “Campo Geral”.

Para quem quer ter uma idéia do ambiente histórico, social e familiar do autor, é leitura indispensável.











sexta-feira, 16 de novembro de 2018

4405) O Passageiro: Profissão, Repórter (16.11.2018)



Existe uma interessante filmografia do romance policial noir filmado por diretores europeus. Em geral, cineastas europeus filmando romances norte-americanos. O Passageiro (Profissão: Repórter) (1975) de Michelangelo Antonioni se baseia num conto de Mark Peploe, “Fatal Exit”, adaptado por ele mesmo.

Peploe seria autor, em seguida, dos roteiros de ótimos filmes como O Último Imperador e O Céu Que Nos Protege, de Bernardo Bertolucci.

É um romance policial noir porque traz algumas características essenciais desse gênero: vazio existencial, um indivíduo problemático vivendo uma situação limite, a presença do crime e da violência, uma situação de permanente fuga às cegas.

Por outro lado, não parece um romance noir autêntico por pelo menos duas oposições. A narrativa noir é geralmente um gênero noturno, e o filme de Antonioni tem 100% de cenas diurnas (só o último plano mostra o crepúsculo); e o noir é mais identificado com um ambiente opressivo/decadente urbano; e o filme transita do deserto africano para ambientes “turísticos” de Munique, Londres, Barcelona, etc.

David Locke (Jack Nicholson) é um jornalista britânico na África, cobrindo guerrilheiros rebeldes. Está de saco cheio da vida que leva. No hotelzinho africano remoto onde se hospedou, morre um inglês (Mr. Robertson) que parece muito com ele. Ninguém ali conhece nenhum dos dois. E Locke pensa: Que tal se eu trocar as fotos dos passaportes e assumir a identidade desse cara, deixando todo mundo pensar que eu morri?

A partir daí, o filme se transforma numa espécie de thriller hitchcockiano de perseguição. Ele não sabia que Robertson era traficante de armas para os guerrilheiros; e não podia prever que seu colega da BBC e sua esposa iriam perseguir “Robertson” pela Europa, para saber o que acontecera com “Locke”.

Chamar um filme assim de thriller é muito inadequado. Filme de Antonioni é sempre um frigorífico de emoções internalizadas, violência fora de quadro, poucos sobressaltos. Antonioni é o anti-Hitchcock. É também um anti-Highsmith, porque ninguém pode deixar de lembrar, vendo a primeira meia hora deste filme, de O Talentoso Mr. Ripley, em que um sujeito aproveita a morte de outro para assumir sua identidade.

Lembra também O Segundo Rosto (“Seconds”, 1966) de John Frankenheimer, uma FC sobre mudança de identidade. E o protagonista do romance O Bigode (“Le Moustache”, 1986) de Emmanuel Carrère, que ao raspar o bigode começa a se transformar em outra pessoa e acaba fugindo de Paris para Hong Kong.

Um dos grandes temas do século 20: uma pessoa que quer apagar o próprio passado e recomeçar do zero.

Antonioni fazia um cinema arquitetônico, onde tudo era concebido em termos de espaços e de deslocamentos de pessoas nesses espaços. Seus primeiros filmes têm uma superfície clássica e fria, de enquadramentos perfeitos mas pouco envolvimento emocional.

Isto se mantém na maior parte de O Passageiro. Aqui, no entanto, o trabalho de áudio é extraordinário. Ouve-se o que o personagem Locke está ouvindo, até as moscas do deserto. O envolvimento acústico compensa a frieza do exterior visual.

O filme começa entre as casas caiadas de branco do deserto do Chade, passa pela exuberância visual de Londres, Munique e Barcelona, e se encerra entre as casas caiadas de branco do interior da Espanha. As últimas cenas (o assassinato de Locke/Robertson) acontecem numa pousada modesta diante de uma praça de touros.

A cena mais famosa do filme, e uma das maiores do cinema de sua época, acontece no final: é o plano-sequência de cerca de sete minutos em que Locke deita na cama do quarto e a câmera começa um lento movimento na direção da janela aberta, passa por entre as grades e faz um giro de 180 graus mostrando a pousada, agora à distância. Durante esse movimento os assassinos chegam, entram no quarto e o abatem com um único tiro.

As câmeras 35mm da época eram pesadas, ruidosas, e a execução deste movimento requereu uma complicada engenharia. Durante aqueles minutos, o filme “abandona” o personagem à sua própria sorte, sai para a tarde ensolarada e mostra, à distância (do ponto de vista da Plaza de Toros), a chegada e a fuga dos assassinos, e depois a vinda das pessoas que descobrem o corpo. Tudo de forma distanciada, despojada, não-emotiva, com carimbo de Antonioni.



Outra cena, no entanto, é menos falada e me parece tão brilhante quanto essa. É o momento, aos 21 minutos de filme, quando Locke, tendo descoberto que Robertson morreu de parada cardíaca no quarto vizinho, começa a executar a troca de identidades.

Vemos Locke sem camisa, sentado à mesa, trocando as fotos no passaportes enquanto escuta (em seu gravador de repórter) uma conversa que gravou dias antes com Robertson. Ouvimos as falas dos dois (o que nos dá a informação clara da história pessoal de cada um, e de que tinham bebido juntos no hotel e se conhecido). Então a câmera mostra, sem corte, os dois conversando do lado de fora da janela.

É um flash-back sem que haja um corte entre a imagem do presente e a do passado. Um pouco ao estilo de Morangos Silvestres (1957) de Bergman, mas com uma realização mais complexa, e brilhante.

Jack Nicholson, um excelente ator mas cheio de cacoetes, tem aqui um dos seus melhores trabalhos. Contido por Antonioni, ele parece o tempo inteiro carregado de perplexidade e tensão, a ponto de explodir. Seu jogo de cena com Maria Schneider funciona porque vemos nele um homem que anda sobre um fio de navalha, e nela uma garota “moderna”, viajando sozinha por sua conta, e que se envolve na história dele meio por atração, meio por curiosidade.

Locke joga tudo em sua troca de identidade, e perde. Sua fuga é como a fuga do personagem do conto “Encontro em Samarra”, que julga estar fugindo da morte e na verdade está indo ao encontro dela.

Na reta final da fuga inútil, Locke conta para a garota a história do sujeito cego desde a infância que, depois de adulto, faz uma cirurgia e recupera a visão. Antes, ele atravessava as ruas com sua bengala, muito tranquilo. Depois, fica assustado ao ver todos aqueles carros na expectativa, prontos para avançar. E percebe (só então) que ninguém tinha lhe dito o quanto o mundo é feio.

A troca de identidades de Locke pode ter sido uma tentativa de ganhar um ponto de vista diferente sobre o mundo, mas não é o que acontece. Como tantos outros personagens do romance policial noir, ele parece condenado desde a primeira frase.

Revendo o filme agora em DVD, lembrei que quando o vi pela primeira vez, escrevi sobre ele no Diário da Borborema e citei esta estrofe da Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima:

Também há as naus que não chegam
mesmo sem ter naufragado:
não porque nunca tivessem
quem as guiasse no mar
ou não tivessem velame
ou leme ou âncora ou vento
ou porque se embebedassem
ou rotas se despregassem,
mas simplesmente porque
já estavam podres no tronco
da árvore de que as tiraram.
(VI, Canto V)







terça-feira, 13 de novembro de 2018

4404) A música e a reza (13.11.2018)



Vieram me perguntar por que eu passo tanto tempo ouvindo música. Não ouço muita música. Meus amigos ouvem mais do que eu. Muitos deles não pegam um metrô Carioca-Cinelândia sem plugar as oiças. Todo bar tem música, todo rádio e TV tem música. A próxima evolução será um chip estéreo incrustado juntos aos nossos martelos e labirintos, puxado a surdo de escola.

É porque eu ouço muitas vezes com uma certa concentração. Uma vez eu estava na sala de um casal de amigos e vieram me mostrar o disco novo não lembro de quem. Era no tempo do elepê, de modo que prestei atenção às três ou quatro músicas (era um disco instrumental) daquele lado. Aí quando foram mudar, minha amiga falou:

– Você ouve tão concentrado que parecia que tava rezando.

A maioria das pessoas não gosta de música, gosta de música-de-fundo, música que possa ficar em segundo plano. Elas acham que a vida vai bem, ou vai mal, mas em todo caso iria certamente melhor com uma trilha sonora ao fundo. Um mero acompanhamento.

A música é um refratador de emoções, pega aquele foco emocional da gente naquele instante e o dispersa com bons resultados, iluminando uma área mais ampla ao redor da memória.

Ouvir música é como ler poesia, ou rezar, ou estar pensando numa coisa decisiva que está para acontecer com dia e hora marcados. A pessoa se espalha pela própria vida afora, como tinta numa tela. Tudo que a gente já viveu (tudo não, claro) parece emergir, coisas sentidas, pensadas, visualizadas, coisas pedidas com fervor a um poço escuro e talvez vazio.

A música pode ser manipulativa. Basta ouvir um anúncio, ou ouvir a trilha de John Carpenter para seus thrillers de horror. Ela é um “indutor emocional”, conforme usada em muito cinema e muita TV por aí. Ela explica subliminarmente ao ouvinte como ele deve se sentir, como a dramaturgia precisa que ele se sinta. Na verdade, ordena que ele se sinta assim, e qualquer um acaba sentindo, até eu.

Esse doping musical é um pouco forçação de barra e um pouco consequência do vexame de quando a gente está finalizando uma cena e vê que ela está meio mequetrefe.  Não há suspense? Enfia um crescendo de orquestra de dentro do qual se eleva um rasgado dissonante, e basta um plano da porta para quem está no sofá presumir a vinda de Freddy Kruger.  É beijo? Violino.

Os violinos são como o molho vinagrete, sempre dão a impressão de estar melhorando aquilo que os recebe.  Não se pode negar a eficácia e a necessidade desses recursos, mas isso é apenas o lado adestrador da música, o seu lado pavloviano.

A música não é apenas para estender um tapete onde “outra coisa” vai desfilar. Lembro sempre a história do garotinho de cinco anos que viu o pai escutando a música na sala e perguntou “onde estava passando o filminho”. O guri achava que uma música sem imagem era algo amputado, faltando uma coisa.

Música é para ser ouvida a sós, à meia luz, com enorme silêncio, numa sala tranquila onde não vá entrar nenhum alarido de um momento para outro? Talvez, mas se só pudesse ser de mil outras formas também.

Vendo aqueles documentários sobre o jazz, aquelas décadas de quando ele brotou do dixieland e das orquestras de metais, a gente vê como era uma música dançante no começo. Foi se sofisticando ao longo do século e virando música mais para ouvir do que para dançar. Uma música que era para os negros dançarem virou música para os brancos escutarem. (Isso é o tipo da frase-de-efeito de cronista cuja simetria estrutural lhe dá mais credibilidade do que ela comporta.)

A música ideal talvez fosse aquela que pudesse (o mesmo som, o mesmo fonograma) botar para dançar num salão centenas de pessoas, e pudesse também ser fruída por uma só, a sós, à meia-luz, etc.












domingo, 11 de novembro de 2018

4403) Mandacaru Vermelho (11.11.2018)




O bom de certos trabalhos que a gente pega é que tudo é pretexto pra fazer pesquisa, que é um dos lazeres mais produtivos que a nossa espécie já inventou.

Fui checar algum detalhe de ficha técnica e achei no YouTube uma versão restaurada de Mandacaru Vermelho (1961), um longa de Nelson Pereira dos Santos que eu não lembrava de ter visto por inteiro. Não tinha, então vi agora. É considerado por meio mundo como um ensaio para Vidas Secas.

Nelson levou a equipe para Juazeiro da Bahia para filmar seu roteiro baseado em Graciliano, mas tinha chovido, o sertão estava verde, e mesmo o filme sendo em preto e branco o ambiente que ele precisava não estava existindo. Ele aproveitou e filmou essa espécie de faroeste caboclo.

Chamaram esse tipo de filme de “nordestern”, em alguma época, e o filme de Nelson, mesmo sem cangaceiros, tem uma linha direta com o cangaço, conforme tornado famoso pelo filme do paulista Lima Barreto, O Cangaceiro (1953). Sem falar que essa geração de Nelson, dos que estavam ma primeira década do ofício, tinham os faroestes P&B de John Ford como uma referência de respeito.

Tendo que improvisar um argumento novo em cima da perna, Nelson Pereira, na época com seus 33 anos, recorreu a um arquétipo antigo do cordel e do filme de cowboy, o Vaqueiro Que Róba A Filha Do Fazendeiro. É diferente de montecchios-e-capuletos. É o plebeu que invade com seus cromossomos bastardos um sangue-azul qualquer.

Com isso ele armou um desses tantos épicos de famílias-em-feudo, famílias donas de terras e sempre em guerra para defendê-las; histórias de que todo sertanejo sabe carradas de exemplos.

Quem lidera a caça ao casal fujão é uma matriarca seca, ríspida, engasturada, de revólver em punho. Ela é o fator de arrasto da narrativa, mais até do que o casal de apaixonados em fuga. Digamos que o casal de noivos puxa a narrativa; a matriarca a empurra, com vigor. Ao longo da caçada humana, há vários entreveros de soco, de tiros, de facão, há perseguições e emboscadas, há armadilhas (mas que qualquer um já prevê) e surpresas (que hoje não surpreendem mais).

Dizem que Nelson não gostava do filme, talvez por modéstia, porque pegou para si o papel do romeu. Algumas violências são um pouco chocantes hoje: algumas das mortes a sangue frio, por exemplo. No filme, são cenas brutais, mas vistas com certa indiferença pelo narrador. São partes de uma cena. É pêi, e bufo. Hoje, seriam exploradas ate o último pixel e o derradeiro segundo.

Há uma luta final de facão que resulta bem coreografada, um dever-de-casa que foi feito. Porque o cinema a essa altura tinha uma coreografia já catalogada de ataques, bloqueios de lâmina, jogos de pernas, ameaços e negaceios, estocadas fatais. Já em 1961 existia um acervo reconhecível de “passos” que qualquer comedor-de-castanha-confeitada de olhos grudados na tela já sabia reconhecer.

Um dos objetivos do clichê cinematográfico é dizer a uma faixa do público: fique à vontade, é aquilo que você já viu, você já sabe.

O faroeste americano criou toda essa coreografia de rifles por entre rochedos, ricochetes, infiltração por entre lajedos e caatinga, atiradores buscando uns aos outros, o retinir das balas na pedra. Lembro de Kazuo Ishiguro, comentando a diferença de enfoque da luta de espadachins:

Quando cheguei à Grã-Bretanha aos cinco anos uma das coisas que me chocavam na cultura ocidental eram as cenas de lutas de espadas em filmes como Zorro. O que eu conhecia era a tradição dos samurais, onde toda habilidade e experiência converge para um único instante que separa ao vencedor e o perdedor, a vida e a morte. Toda a tradição samurai é a respeito disso: desde os mangá até filmes de arte como os de Kurosawa. É parte da magia e da tensão de uma luta, no que me diz respeito. Mas então eu via pessoas como Basil Rathbone como o xerife de Nottingham e Errol Flynn como Robin Hood e eles tinham longas conversas enquanto batiam com as espadas uma na outra, e a mão que não estava segurando a espada fazia uma espécie de gestos vagos no ar, e a idéia parecia ser a de conduzir o adversário até a beira de um precipício enquanto o distraía com um longo diálogo expositivo a respeito do enredo do filme. (...) Nos filmes de samurai, os dois oponentes se encaram durante um longo tempo, então acontece uma violência com a rapidez do relâmpago, e acabou.”

Como é a luta final de facões em Mandacaru Vermelho? É de um laconismo oriental, pouquíssimas falas, uma exclamação qualquer e só. Nada daquelas teatralidades, tipo “pois é, Augusto, você não sabia o que estava fazendo ao praticar uma infâmia como a sua contra uma família como a nossa. Prepare sua alma, cabra da peste!”

Ou coisa parecida. Não, o filme é econômico em diálogos, e isso é bom, porque eles vêm com peso. É uma luta em silêncio, a gente não sabe o que o personagem está pensando.

Ao longo da narrativa, há reviravoltas na atitude e nos julgamentos dos personagens. É uma história de remorsos, ressentimentos, vinganças, traições, deslealdades. E tudo isso deflagrado pelo Vaqueiro.

Roubar a filha do fazendeiro é um pouco como “raptar uma condessa filha de um conde orgulhoso”. É o objetivo de todos os aventureiros do cordel e dos romances de capa e espada. Li em algum lugar que Nelson estava lendo várias coisas de Jorge Amado, durante essa estada na Bahia, então alguma coisa disso tudo deve vir refratada em alguma história do baiano.

O diálogo é enxuto, me parece verossímil nas possibilidades de um filme de então, sem aqueles nordestinismos obrigatórios, “oxente bichim”. Várias falas irônicas bem colocadas. Uma personagem como a matriarca da família ofendida (Jurema Penna) é das que só dizem uma coisa uma vez. É como uma Maria Moura, de Rachel de Queiroz, só que envelhecida no crime, ressecada de agonia e rancor. Não há muita oratória, há frases como facão afiado que passa e já tora.

Uma coisa que não encaixou muito, pelo meu gosto atual, foi a música de Remo Usai, o maestro que fez um milhão de trilhas para o cinema desse momento. Tem uma pegada nordestina, conforme a encomenda; mas é uma música executada por orquestra, e nem mesmo um triângulo a deixa menos radiofônica. Não parece uma música dali.

Vai ver que Glauber Rocha viu o filme de Nelson e talvez tenha anotado mentalmente: Nada de trilha sonora com orquestra carioca, tem que ser uma voz áspera e uma viola cortante, e veio Sérgio Ricardo. A música de Usai é uma bela ilustração pregada numa paisagem; a de Sérgio Ricardo parece que é aquela paisagem que está cantando. Um recado do morro. Qualquer morro.

Acho que quem escrever alguma história do nosso “nordestern” tem que dedicar um capítulo às cenas de lajedos, que estão para o gênero assim como os desfiladeiros estão para John Ford. O lajedo é ponto de encontro para grupos, de peroração para os beatos, de enfrentamento para duelistas. Seria interessante comparar as cenas-de-lajedo deste filme de Nelson com as de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que foi feito logo depois.
  



quarta-feira, 7 de novembro de 2018

4402) Lembranças de Zé Limeira (7.11.2018)




De vez em quando eu digo a alguém que sou de Campina Grande e a pessoa diz: “Ah, então me fala alguma coisa sobre Zé Limeira... Ele era como?!”

Eu sou velho, mas pegue leve. Zé Limeira, de acordo com o indispensável Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, dos meus mestres e amigos Átila Almeida e José Alves Sobrinho, faleceu no já longínquo ano de 1955.

Quem sabe maiores detalhes sobre a vida real dele é o poeta Astier Basílio, que está preparando uma biografia de Orlando Tejo. Tejo foi “O Homem Que Viu Zé Limeira”, conforme o título do excelente documentário de Maurício Melo Júnior, que pode ser assistido aqui:

Limeira ficou conhecido como “o Poeta do Absurdo” por versos cheios de disparates impecavelmente rimados e metrificados como estes:

Eu me chamo Zé Limeira
de Lima Limão Limança;
a estrada de São Bento
bezerro de vaca mansa...
Valha-me Nossa Senhora,
tão bombardeando a França!

Eu já cantei no Recife
perto do Pronto Socorro:
ganhei duzentos mil-réis
comprei duzentos cachorro;
ano passado eu morri
mas esse ano eu não morro.

Eu só gosto dessa moça
porque tem vegetação,
porteira de pau-a-pique,
três pneus de caminhão,
peido de jumenta ruça...
e haja chuva no Sertão!

Eram versos que, nos meus 10, 11 anos, meu pai recitava para gargalhada geral nas noitadas boêmias do terraço da nossa casa no Alto Branco.

Orlando Tejo transformou Limeira em mito com seu livro Zé Limeira, Poeta do Absurdo (1973). É um livro irregular e brilhante, talvez o mais criativo já escrito sobre a poética dos cantadores. O “livro sobre cantadores” geralmente se desenvolve na chave do relato jornalístico e documental (registro de versos), com uma ou outra incursão descritiva do ambiente, ou rememoração lírica.

Tejo projetou nesse gênero tão severo uma dose inesperada de humor, doidice e inverossimilhança. E ao mesmo tempo uma dose de prosa de ficção, porque quando começa a contar um fato o homem se entusiasma, e a prosa se apossa dele e leva a história pra onde bem entende.

O capítulo 11 registra muitos versos e os encaixa num leve romancear que dá mais vida ao relato. Em muitos trechos de Tejo, a gente chega a se esquecer e a ler aquilo como um romance. Isso não ocorre nos relatos de cantoria. Nem mesmo dos que mais caprichavam na parte narrativa, como F. Coutinho Filho ou Leonardo Mota. Já Orlando Tejo, nesses trechos, se emparelha com Oliveira Paiva e sua descrição de festejos de fazenda, em Dona Guidinha do Poço.

O capítulo 13, “Pela última vez em Campina”, reconstitui uma longa cantoria entre Limeira e José Gonçalves, num cabaré da feira, num belo momento da prosa urbana. De fato, um leitor preguiçoso dos folcloristas tradicionais se espantaria com este parágrafo de Tejo, descrevendo o amanhecer do dia, quando os cantadores começam a se despedir:

A cidade despertava ao berro metálico das sirenes, o operariado – termostato da máquina do desenvolvimento – deslocando-se dos subúrbios para a faina do dia-a-dia, lotando os coletivos, apinhando as calçadas, chegando para as fábricas. Era o atendimento à voz das chaminés que na sua multiplicidade saturavam os céus da metrópole dos sertões nordestinos, turvando de progresso o alto da paisagem serrana.

Tejo retrata e recompõe a cantoria urbana com a mesma fluência com que resgata e reafirma o perfil da cantoria de sítio, a cantoria de vilarejo. Não sei se esse parque industrial todo já fazia parte da Campina Grande pré-1955, ou se isso já era o Tejo dos anos 1970 finalizando o livro e se entusiasmando ao teclado; pouco importa. A cantoria hoje é assim.

A parte com que eu implico no livro de Tejo é o capítulo 5, “O Poeta do Absurdo e o Absurdo dos Poetas”, quando ele começa a implicar com a poesia modernista em geral. Como poeta, Tejo era um híbrido de parnasiano e cordelista. Para improvisar um soneto bastava que lhe botassem lápis e papel na frente. Se fosse soneto de patifaria, melhor ainda.

Nessa parte do livro ele adota a tática de, para elogiar as doidices de Limeira, mostrar que os poetas ditos eruditos eram autores de disparates maiores do que os do cantador do Teixeira. E nessa varrida não escapam os surrealistas franceses nem os concretistas paulistanos. Tejo, com os bigodes eriçados de um polemista profissional, desce o chanfalho numa enorme lista de exemplos modernistas.

Zé Limeira não precisa ser comparado a nada disso. Tem sua receita personalíssima e ao mesmo tempo universal. Para imitá-lo basta ir um pouco nessa direção: a fluência na criação instantânea de neologismos, da colagem de elementos díspares, da justaposição do ilustre ao plebeu. A presteza e a articulação melódica do verso se sobrepondo a qualquer longínqua intenção de fazer sentido.

Limeira lembra alguma coisa de Marc Chagall, de Bispo do Rosário, de Gordurinha.

Me lembro de versos recitados por Dona Joana, uma mulher que ajudava minha mãe no trabalho doméstico e sabia muitos versos como este, que decorei:

Peguei na cobra jibóia
com dez dias de viagem;
pisei na ponta da vagem
tirei vinte e cinco jóia;
aonde chove e não móia
lá na várzea da agurita
onde os pombo canta e grita
dá volta no cotovelo:
quero um cacho de cabelo
da morena mais bonita.

Não sei o autor do verso, mas Limeira está todo aí. Tem a imagem visual marcante: o cara pisando a ponta do rabo de uma cobra de encontro ao chão, enquanto estica o corpo dela, abre-o (com uma faca?) e dali retira jóias como caroços de uma vagem. Tem a palavra absurda que pode ser corruptela e pode ser invenção (agurita). Tem uma Natureza surpreendente como a de um mundo de desenho animado (essa chuva, esses pombos). E tudo isso para glosar um mote bem lugar-comum, daqueles que geralmente só inspiram versos pedestres e sem imaginação.