quinta-feira, 8 de abril de 2010

1887) “Watchmen” o Filme (27.3.2009)



É mais um filme de super-heróis com orçamento de centenas de milhões de dólares, e cheio de efeitos especiais? Sim, não deixa de ser. Mas é também um filme escrito por Alan Moore, um dos grandes (e mais sérios) roteiristas de quadrinhos de nosso tempo, embora nem sempre tenha sido transposto para a tela de maneira justa. (A Liga Extraordinária, por exemplo, foi uma diluição e uma violação da HQ original.) Como tudo que Moore escreve, é uma exploração, uma homenagem e uma crítica ao gênero escolhido.

As melhores coisas do filme são os personagens de Rorschach, o caçador de criminosos deprê, existencialista, desiludido e cruel, e do Dr. Manhattan, o gigante azul com super-poderes. Cabe a este último uma notável sequência de efeitos especiais passada em Marte, com um gigantesco relógio de vidro (ou coisa parecida). E a trilha sonora com Bob Dylan, Leonard Cohen, Jimi Hendrix e outros contemporâneos à primeira edição de série de quadrinhos.

Watchmen segue a tendência de captar um grupo de super-heróis na meia-idade, em crise, questionando seu passado e insatisfeitos com seu futuro. A América em que vivem é uma América alternativa, sombria. Um mundo em que os EUA derrotaram o Vietnam, Nixon cumpre um terceiro mandato, e os Watchmen, antigos defensores da Lei, estão sendo mortos misteriosamente um por um. Quem dá o tom do filme é o diário escrito por Rorschach, acompanhando toda a narrativa como um monólogo em voz baixa na trilha sonora.

A gente pode dizer, vendo esses filmes e lendo esses álbuns, que os super-heróis norte-americanos viveram duas eras. A primeira foi a Era Radiante, quando brotaram Super-Homem, Batman, o Fantasma, etc., heróis que combatiam bandidos em nome dos ideais de uma América honesta, justa, democrática. Um país de valores voltados para o amor, o trabalho honesto e a família; uma América em quem só os bandidos não acreditavam, e por isto deveriam ser punidos. A outra é a Era Tenebrosa, a atual, em que eles combatem em nome de valores em declínio, e vêem a sua América afundada na corrupção, na truculência política, na violência, no sadismo e nas drogas. Tentam salvar um mundo que não quer (e não merece) ser salvo.

Os filmes de super-heróis estão cada vez mais se dividindo em dois troncos. De um lado, o simples espetáculo dos efeitos especiais, da aventura inconsequente mas levemente moralizadora; filmes que conseguem dar uma sobrevida à Era Radiante dos quadrinhos. De outro lado, uma série de filmes “noir”, problemáticos, que devem mais ao romance policial sórdido do que à ficção científica, e que encarnam um certo “vigilantismo” – a noção de que o mundo é podre, as autoridades são corruptas, e cabe a nós fazermos a justiça com nossas próprias mãos. Essa noção é subjacente aos quadrinhos de super-heróis, que sempre foram uma espécie de polícia por conta própria, suprindo a incapacidade das forças do governo para enfrentar os arqui-vilões.

1886) Os deserdados de Deus (26.3.2009)



(Praça de São Pedro, Vaticano)

Há pouco tempo a Igreja Católica criou uma polêmica do nada quando um bispo anunciou a excomunhão das pessoas responsáveis pelo aborto de uma menina de 9 anos, estuprada e grávida de gêmeos. A reação geral foi tão forte que autoridades mais elevadas apressaram-se em conciliar e a dizer que não era bem assim. Agora, o Papa, em visita à África, diz que a distribuição de camisinhas não apenas não detém a Aids, como pode contribuir para sua disseminação.

Eu tenho uma relação de respeito e impaciência com a Igreja Católica. Não sou cristão, mas fui criado na cultura cristã, como a maioria dos brasileiros, e me sinto no direito de dar palpite – assim como não sou filiado a nenhum partido político mas dou palpite na condução do país. (É, aliás, algo que essas instituições têm em comum: uns acham que só se chega a Deus através de uma igreja organizada, outros acham que só se faz política através das máfias partidárias.) Acho o Cristianismo muito deficiente em explicar a origem do Universo e da vida; neste aspecto, o que a Ciência diz me parece mais próximo da verdade, embora, por definição, saibamos que jamais saberemos.

A melhor coisa do cristianismo é o seu humanismo, sua valorização da pessoa em si, o seu senso de fraternidade, de que somos todos iguais e estamos todos juntos, e que, como já disse o ateu Bertolt Brecht, “ninguém no mundo será livre enquanto existir uma só pessoa presa”. Surgindo no meio da arrogante e cruel cultura romana, o cristianismo primitivo pegou o que havia de melhor nos humanismos anteriores e criou uma mistura tão forte que resiste até hoje.

Esses problemas que o Vaticano agora enfrenta resultam da maneira errada com que a Igreja encara o sexo. Foi um conjunto de decisões estratégicas tomados há mais de mil anos, mas que vêm apartando a Igreja, cada vez mais, da direção em que vai o mundo. O celibato dos sacerdotes é uma dessas decisões. Se eu fosse cristão, viveria em crise espiritual 24 horas por dia, porque a Igreja defende idéias que considero não apenas erradas, mas catastróficas do ponto de vista social. O cristianismo herdou muito do patriarcalismo puritano da cultura hebraica. O mundo está indo noutra direção, uma direção que me parece mais saudável.

A Igreja não sabe lidar com o sexo e com os assuntos correlatos (virgindade, uniões civis, opções sexuais, controle da natalidade, doenças venéreas). Já ouvi muitos cristãos sinceros dizerem: “Eu desobedeço ao que minha Igreja manda fazer, porque acho que a Igreja está errada. Deus está vendo tudo e sabe que a decisão moralmente mais correta é esta.” O que é uma pena, porque é justamente nesse aspecto da vida sexual e das decisões morais concernentes ao sexo que a Igreja está erodindo todo o humanismo que ela mesma criou em dois milênios. Ela praticamente inventou o espírito de fraternidade e de caridade que nos salva; e suas decisões sobre o universo do sexo, a cada década, a afastam desse espírito.

1885) Poe: Os embustes de jornal (25.3.2009)



Edgar Allan Poe é conhecido como precursor do romance policial e da história de terror, e se considerava acima de tudo um poeta, no sentido romântico do termo: um criador da Beleza através de palavras. 

Para sobreviver, foi jornalista a vida inteira, colaborando em jornais e editando diversas revistas literárias. E essa vivência o colocou no centro de uma tendência do século 19 que teve amplificações curiosas no século 20. 

Essa tendência foi a dos embustes jornalísticos – matérias inventadas que se faziam passar por relatos autênticos, e muitas vezes iludiam por completo um público leitor que, carente de informação mas incapacitado de encontrá-la por conta própria, acabava acreditando nas peças que jornalistas desocupados lhes pregavam. 

O primeiro embuste bem sucedido de Poe foi “A Aventura Sem Par de Hans Pfaall”, publicado no Southern Literary Messenger, de Richmond, em junho de 1835. O texto é basicamente uma carta escrita por um holandês às autoridades de Amsterdam, narrando com detalhes sua viagem de balão até a Lua, e fornecendo alguns detalhes sobre a paisagem e os habitantes lunares. 

Poe tinha conhecimentos sólidos de astronomia e de balonagem, e era um leitor veloz e onívoro quando precisava informar-se sobre algo. Seu relato, apesar do tom evidentemente satírico (e de um pós-escrito que praticamente entrega o embuste) tinha um tom de tal verossimilhança astronáutica que enganou muitos leitores. É bem possível que essa narrativa tenha fornecido a Julio Verne boa parte da inspiração para seu clássico Da Terra à Lua (1865). 

Poe preparou o terreno para o que ficou conhecido como “O Grande Embuste Lunar”, perpetrado pelo jornal New York Sun a partir de agosto daquele ano, dois meses após “Pfaall”. Os artigos proclamavam que Sir John Herschel (um dos maiores astrônomos da época) tinha descoberto pelo telescópio sinais de vida na Lua. Cada novo artigo dava mais detalhes, alternadamente verossímeis e fantasiosos, sobre a fauna selenita. O jornal conseguiu uma vendagem espantosa nesse período, e a autoria dos artigos, ainda que duvidosa, é hoje atribuída a Richard Locke, jornalista do Sun

Poe ficou um tanto enciumado. O tom satírico de seu próprio texto tinha impedido que ele fosse tão levado a sério quanto dos artigos de Locke, que eram escritos, como dizemos hoje, “na maior cara de pau”. Ele estava na época trabalhando numa continuação das aventuras de “Hans Pfaall” mas abandonou o projeto, por achar que depois do embuste do Sun ser confirmado ninguém mais poderia levá-lo a sério. 

O mais interessante dos embustes de qualquer natureza é que por mais implausíveis que sejam acabam sendo acreditados por milhares ou milhões de pessoas. Nos anos 1830, em que circulavam as mais espantosas (para a época) descobertas astronômicas através de telescópios, e que a navegação por balões se tornava uma realidade, qualquer aventura dessa natureza poderia ser acreditada.






1884) “Quem quer ser um milionário” (24.3.2009)



O vencedor do Oscar deste ano é uma co-produção inglesa-americana rodada na Índia, mas é como filme indiano que conquista nossa simpatia. Apesar de milênios de distância, há uma sintonia de inconsciente coletivo entre Índia e Brasil. São dois países tão parecidos que Pedro Álvares Cabral descobriu um quando procurava o outro.

O filme confessa ser influenciado por Cidade de Deus. Vi gente ficar indignada; eu acho ótimo. Quando imitamos os americanos, diz-se que não temos personalidade; quando eles nos imitam, diz-se que damos idéias de graça. Ora, amigos, os americanos só não imitam o que desconhecem, e só não são imitados pelos que ainda não invadiram. Slumdog Millionaire mostra favelas que não perdem para as nossas, e um elenco de atores infantis iguaizinhos aos guris que nos pedem uma moeda na calçada. Até seus gangsters são clones dos nossos bicheiros.

O grande trunfo comercial do filme é um roteiro que reúne tudo que a Academia gosta de premiar e os americanos de assistir: disputa entre o irmão bom e o irmão mau, história de amor com sucessivas separações e reencontros ao longo dos anos, rapaz pobre que fica rico, crime que não compensa, amor que triunfa. E tem um trunfo técnico. O argumento é um Ovo de Colombo: um rapaz favelado acerta uma dúzia de perguntas aleatórias num programa de TV, e a cada pergunta feita surge um flash-back para mostrar (da maneira mais simples e convincente) por que motivo o rapaz sabia a resposta para justamente aquela pergunta.

Note-se que nem sempre ele sabe a resposta. Em um caso, alguém lhe aplica um golpe e ele recorre à sabedoria da rua (ou seja, à sua percepção instintiva da desonestidade) para evitá-lo; e há outra vez em que ele simplesmente joga, aposta, arrisca, sem medo, sorridente, de peito aberto, que é como se deve jogar o jogo. Se perder, perdeu, e daí?

Vi no jornal USA Today um comentário curioso do filme, assinado por Claudia Puig. Diz ela que o filme tem “uma narrativa vigorosa e um estonteante realismo mágico”; mais adiante, fala de “imagens surrealistas”. É curioso, porque não vi nem uma coisa nem outra. Para mim é um filme absolutamente realista do começo ao fim (com exceção da canção durante os letreiros finais). Mas eu entendo. Por exemplo: para um americano, um garoto pular dentro de uma fossa e sair correndo, coberto de excremento, para pedir um autógrafo, é realismo mágico. Para nós, é tão real quanto uma cena de Nelson Rodrigues.

A indústria subterrânea de fabricar meninos mendigos não é surrealismo: é Charles Dickens puro. A espantosa pobreza da Índia, mesclada a uma riqueza igualmente inconcebível, cria enormes tensões sociais que são o terreno ideal para a produção de histórias em que algumas pessoas são totalmente indefesas e outras totalmente poderosas, em que alguns são totalmente ingênuos e outros totalmente malévolos. É o terreno ideal para o melodrama e o folhetim.

1883) Cegueira cultural (22.3.2009)



A incapacidade de ver algo não tem nada a ver com nossos olhos, e sim com a nossa educação. Jorge Luís Borges observava que um índio vê uma cadeira de um modo diferente de nós, porque elas não existem na sua cultura. Quando vemos uma cadeira, sabemos que aquela plataforma horizontal serve para apoiarmos nossas nádegas enquanto descansamos nossas pernas, e que o restante (encosto, braços, pernas) é de importância secundária. Um índio talvez veja uma cadeira e fique intrigado com aquela árvore estranha que tem quatro troncos em vez de um só.

Num artigo sobre Leon Tolstoi em The New Yorker, James Woods comenta “…uma técnica pela qual Tolstoi viria a ser elogiado pelos críticos formalistas russos das décadas de 1920 e depois: o distanciamento, a arte de tornar estranho o que é familiar. Às vezes, isto envolve a visão do mundo com os olhos de uma criança. Quando Natacha vai à ópera, ela se recusa a ver qualquer outra coisa além de telões pintados e homens e mulheres com roupas esquisitas, e acha tudo aquilo falso e pretensioso”.

Todo espetáculo precisa da suspensão voluntária de descrença. Senão, nada acontece. No romance de fantasia Swordspoint (1987), Ellen Kushner mostra personagens indo ao teatro pela primeira vez:

“Em seguida, aconteceu uma cena num hospício, com todo mundo cantando e dançando. O que a cena fazia ali Richard nunca descobriu; mas quando ela acabou, foi erguida uma cortina por trás dela, revelando uma enorme escadaria que dividia o palco de alto a baixo. O espadachim apareceu, e anunciou que era meia-noite, e que isto o libertava da missão imposta pelo duque”.

Um espectador com um mínimo de experiência entende que a cena musical está ali justamente para dar tempo a que seja preparada a escadaria para a cena seguinte; e que as horas anunciadas pelos personagens não correspondem à hora marcada pelo relógio do público.

Em seu conto “A Busca de Averróis” (em O Aleph), Borges comenta a crise intelectual de um muçulmano que, vindo de uma cultura onde não existia o teatro, era incapaz de compreender o sentido de uma peça:

“Uma tarde, os mercadores muçulmanos de Sin Kalan me conduziram a uma casa de madeira pintada, na qual viviam algumas pessoas. Não se pode contar como era essa casa, que mais parecia um só quarto, com filas de armários ou balcões, uns sobre os outros. Nessas cavidades havia gente comendo e bebendo, e também no chão, e também num terraço. As pessoas desse terraço tocavam tambor e alaúde, menos umas quinze ou vinte (com máscaras vermelhas) que rezavam, cantavam e dialogavam. Estavam presas, e ninguém via o cárcere; cavalgavam, mas não se percebia o cavalo; combatiam, mas as espadas eram de cana; morriam, e logo estavam de pé”.

Estes três exemplos teatrais bastam para ilustrar que toda representação do real é absurda, quando ignoramos (ou quando nos recusamos a conhecer) o código em que foi concebida. Vale para qualquer tipo de espetáculo, para o cinema, a literatura.









1882) Por que parar o tempo? (21.3.2009)




(foto: marleen1951)

O roteirista Tulio Pinelli conta que certa vez estava no Uzbequistão em companhia de Michelangelo Antonioni. Os dois procuravam locações para um filme que estavam começando a realizar. Um dia, vindo de carro por uma estrada, deram carona a três uzbeques. Segundo Pinelli, eram homens majestosos, usando turbantes e vestimentas tradicionais, e pareciam três estátuas religiosas. Quando chegaram no ponto onde eles iam saltar, Antonioni parou o carro e, como um gesto de despedida, tirou uma foto polaróide dos três e a deu de presente. Os homens olharam a foto e a devolveram a Antonioni, perguntando: “Por que parar o tempo?”.

O que teria dito o uzbeque se Antonioni os tivesse filmado caminhando, e depois exibido as imagens? Perceberia que a intenção de quem fotografa ou filma não é propriamente de parar o tempo, e sim de duplicá-lo, multiplicá-lo? Achamos que a foto é um “instante parado” do tempo porque ele retrata uma fração de segundo e dá a impressão de que o que temos ali é “um instante inteiro”. Mas não é. Mesmo numa foto parada, temos a presença de vários instantes sucessivos. Ou você, caro leitor, nunca tirou uma foto que saiu borrada?

Não falo em fotografia fora de foco, falo naquelas fotos em que um movimento rápido (o braço de um tenista, as asas de um pássaro, etc.) aparecem registradas em várias posições sucessivas, mescladas, transformadas num borrão de movimento que invade a tal fração-de-segundo em que a foto é tirada, revelando que é impossível parar o tempo, e que só temos essa ilusão quando fotografamos objetos imóveis.

Dizem que a primeira foto em que aparece um ser humano foi tirada do alto de uma água-furtada parisiense. A foto, que precisou de vários minutos de exposição para poder absorver luz suficiente, mostra pedaços de telhados, uma rua, carros parados, e numa esquina a silhueta difusa de um homem no passeio, que, com a perna semi-erguida, está tendo os sapatos lustrados por um engraxate. A rua estava cheia de movimento, mas tudo passou rápido demais para poder ser captado pelo negativo pouco sensível. Apenas aquele transeunte desapercebido foi registrado; ninguém soube seu nome, e ele próprio, perdido naqueles minutos tão banais, nunca soube que sua silhueta tinha entrado para a História da Imagem.

A fotografia só para aquilo que de certa forma já está parado. Os automóveis passaram incólumes por aquela primeira foto, assim como hoje somente as asas dos beija-flores passam incólumes pelas nossas câmeras digitais. Os uzbeques de Antonioni provavelmente se sentiram aprisionados naquela polaróide; como se vissem três sósias seus transformados em estátuas, doidos para sair caminhando e sem poder. A foto não para o tempo, nós é que paramos para ela. É apenas uma armadilha para que um dia possamos rever aquela imagem e puxar de dentro dela todo um movimento do corpo e da alma que deixou de existir, mas que pela porta da fotografia pode ser acessado novamente.