quarta-feira, 9 de outubro de 2024

5110) João do Rio versus Arsène Lupin (9.10.2024)




A FLIP, de Paraty, homenageia este ano o carioquíssimo João do Rio, um dos grandes talentos da nossa literatura de 100 anos atrás. A chamada “literatura Belle Époque”. 

A Editora Bandeirola (SP) lançou há pouco o volume Pavor Dentro da Noite (Ed. Bandeirola, 2024), que reúne contos do autor que se alinham com a linha de "mistério" na coleção "Vintage" da Editora. 
 
Curiosamente, “Aventura de hotel”, um dos contos de João do Rio em Pavor Dentro da Noite, me lembrou insistentemente um conto que não seria impossível João do Rio ter lido nessa época. Não me refiro a plágio, e sim ao caso do autor que pega de outro uma situação básica, cotidiana, e tenta desenvolvê-la em linhas diferentes. 
 
“Aventura de hotel” mostra uma situação clássica de “círculo fechado”: um hotel carioca –  com hóspedes meio ricos, meio remediados, mas cosmopolitas e metidos a chique – onde começam a acontecer roubos inexplicáveis. 
 
Os sustos, as desconfianças, as ironias do narrador, tudo lembra bem de perto “A prisão de Arsène Lupin” (1905), o primeiro conto de Maurice Leblanc onde aparece o famoso ladrão de casaca, praticando furtos de jóias durante uma viagem transatlântica, onde convivem socialites, militares, comerciantes ricos, diplomatas, etc.  Já o conto de João do Rio saiu em 1910.


 
Repito, não se trata de plágio nem de imitação barata. Trata-se de um recurso que todo escritor emprega: “Mas que idéia interessante... Um ambiente fechado, gente cheia da grana... um ladrão invisível... Posso fazer algo diferente com isto”. E muitas vezes a variante é melhor que a original. 
 
Vou comparar alguns detalhes, que não são exatamente iguais, claro, mas contribuem do mesmo modo para a criação de uma atmosfera, a evolução de um enredo. 
 
Maurice Leblanc:
 
O “Provence” é um transatlântico rápido, confortável, comandado pelo mais afável dos homens. A sociedade mais seleta achava-se aí reunida. Travavam-se relações, organizavam-se divertimentos. 
(Arsène Lupin, Ladrão de Casaca, Ed. Vecchi, 1951, trad. (João Távora)
 
João do Rio:
 
Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade eclética, mas toda bem colocada. (...) Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês. 
 
No conto francês, o comandante é alertado de que o famoso ladrão Arsène Lupin está a bordo, disfarçado. Jóias e outros objetos de valor começam a desaparecer, tanto do narrador quanto de outros hóspedes.
 
Maurice Leblanc:
 
Lady Jerland, amiga de Miss Nelly, entrou correndo. Estava fora de si. Cercamo-la, e só depois de muito esforço ela conseguiu balbuciar: 
– Minhas jóias, minhas pérolas!... Roubaram tudo!...
Não, não haviam roubado tudo, como verificamos logo em seguida. Coisa muito curiosa: tinham escolhido! 
 
João do Rio:
 
(E)u que nessa noite não saí de casa, ao subir antes do chá, encontrei no corredor apenas o velho Melchior muito abatido, fechei a porta por dentro, dormi e no dia seguinte dei por falta do meu porte-monnaie de prata. Coisa estúpida, afinal! O gatuno – porque era o gatuno, não havia dúvida – o gatuno ou farsista sem graça deixara a minha carteira e deixara até os níqueis, certo para mostrar que aquilo era seu, que aquilo estava ali porque ele voltaria. 
 
Os pequenos furtos se sucedem.
 
Maurice Leblanc:
 
O “Provence” foi esquadrinhado minuciosamente. Examinaram-se todos os camarotes, sem exceção, sob o pretexto, muito justo, de que os objetos deviam estar escondidos em algum lugar, salvo no camarote do culpado. 
 
João do Rio:
 
O medo prendia as senhoras no quarto. Ninguém saía sem necessidade urgente, com receio de ser apontado pelo menos um segundo, como o fora o Antônio. Éramos os forçados daqueles crimes, tínhamos que chegar à tragédia. O gerente, lívido, armava uma polícia interna ferocíssima, os criados serviam – coitados! – com uma humildade dolorosa, temendo a suspeita, o ex-vice presidente da ex-missão do México teimava em escrever ao chefe de polícia, em revistar os quartos. 
 
Como é inevitável em situações assim, alguém é escolhido como suspeito preferencial ou bode expiatório. No navio francês, o Sr. Rozaine; no hotel carioca, o criado Antônio. 
 
João do Rio:
 
Horas depois rebentava o escândalo. Pela manhã, madame de Santarém dera queixa por lhe terem roubado um face à main de madrepérola com incrustações de ouro sob desenhos, dizia ela, de um pintor húngaro. E o gerente pôs fora o criado Antônio, porque a ele faltavam também passadores de guardanapo – dois, três por dia. Antônio saiu protestando, furioso. 
 
Maurice Leblanc:
 
E, de fato, as investigações não deram resultado algum, ou, pelo menos, os que deram não corresponderam ao esforço geral. O relógio do comandante desapareceu.
Furioso, o comandante redobrou seus esforços e começou a vigiar Rozaine ainda mais de perto, interrompendo-o diversas vezes. No dia seguinte, ironia encantadora, encontraram o relógio entre os colarinhos postiços do imediato. 
 
João do Rio:
 
Passamos assim uma semana e, com grande pasmo nosso, madame de Santarém e a atriz Zulmira Simões, no mesmo dia, à mesma hora, encontraram em cima do lavatório, uma o seu face à main, outra o seu berloque.
– É uma aventura! É um caso de diabolismo! – sentenciava o negociante tuberculoso. O hotel convulsionava-se. 
 
Pouparei o leitor de mais exemplos, até porque o que interessa aqui, do ponto de vista da criação literária, não é a correspondência ponto-a-ponto entre dois textos, e sim o modo como um escritor capta a essência de uma situação inventada por outro, e percebe uma maneira de reproduzi-la, dando-lhe outro contexto social (e explorando este novo contexto de um modo que o autor original não teria como), inventando novas peripécias (não simplesmente para estabelecer diferenças, mas pelo prazer de inventar, prazer só entendido por quem inventa) , e dando àquela situação um tipo diferente de desfecho. 
 
É no desfecho que os dois contos divergem radicalmente. Do ponto de vista da originalidade narrativa, o conto de Maurice Leblanc é muito superior, inclusive prefigurando o que eu chamo de “Gambito Ackroyd” que Agatha Christie só botaria oficialmente em circulação anos depois, em 1926. 
 
Para maiores esclarecimentos quanto aos “gambitos” da narrativa detetivesca, um bom começo é este aqui (embora cheio de spoilers):
https://hypnoticmysteries.wordpress.com/2018/08/29/the-birlstone-and-other-gambits/




O conto de Leblanc teve uma ótima repercussão junto aos leitores, ao ser publicado na revista parisiense Je Sais Tout, em 15 de julho de 1905. 
 
É um conto policial (há um crime inexplicável – um roubo – cujo autor é revelado no final) em que surge praticamente pronto um dos personagens mais famosos da literatura. O biógrafo de Maurice Leblanc, Jacques Derouard, observa que este conto despretensioso, que Leblanc possivelmente nem pensava em usar como modelo, já apresenta acima de tudo o tom das aventuras de Lupin; e o personagem, com todo seu charme e seu humor cheio de surpresas. 
 
Arsène Lupin entre nós! O inalcançável ladrão cujas proezas enchiam as páginas dos jornais havia meses! A enigmática personagem com quem o velho Ganimard, nosso melhor policial, se tinha empenhado naquele duelo de morte, cujas peripécias se desenrolavam de maneira tão pitoresca! Arsène Lupin, o caprichoso gentil-homem que só operava nos castelos e nos salões e que numa noite, tendo penetrado em casa do barão Schormann, partira de mãos vazias, deixando o seu cartão com estas palavras: “Arsène Lupin, ladrão de casaca, voltará quando os móveis forem autênticos”. Arsène Lupin, o homem dos mil disfarces: chofer, tenor, “bookmaker”, filho de família, adolescente, velho, caixeiro-viajante marselhês, médico russo, toureiro espanhol! 
(“A prisão de Arsène Lupin”)
 
É Lupin inteiro, com suas circunstâncias e seu espírito, que é concebido neste parágrafo. O conto marcou o início de uma série que se prolongaria de 1905 até 1939, com seu último folhetim, Les Milliards d’Arsène Lupin. Em todo caso... nada vem do nada. Algum impulso para a criação de Arsène Lupin vinha de seus predecessores mais ilustres: o implacável e mercurial “Rocambole”, de Ponson du Terrail; e o arqui-vilão de mil faces, “Fantômas”, de Marcel Allain e Pierre Souvestre. 




E João do Rio?
 
João do Rio não trabalhava num contexto literário de “narrativas policiais”. Sim, há várias tentativas brasileiras de criar histórias criminais e/ou detetivescas, naquela época: os habituais suspeitos são O Mistério (narrativa round-robin de Afrânio Peixoto, Coelho Neto, Viriato Corrêa e Medeiros e Albuquerque, 1920), O Assassinato do General (1926) e Se Eu Fosse Sherlock Holmes (1932), ambos também de Medeiros e Albuquerque. 
 
Ou seja, João do Rio pode até ter sido um aficionado do conto policial estrangeiro (não tenho informações sobre isto), mas certamente não tinha em 1910 exemplos nacionais em que se espelhar, ou concorrentes nacionais a quem lançar um desafio. 
 
Por outro lado, ele decerto lia francês. Todo brasileiro com fumaças literárias lia francês, naquela época, tal como leem inglês os de hoje. Uma revista da moda como Je Sais Tout era conhecida aqui, tanto que sua possível contrapartida Eu Sei Tudo começou a ser publicada em 1917.
 
E não podemos deixar de perceber que um dos contos de Pavor Dentro da Noite tem o título de “O fim de Arsênio Godard”, o que pode servir como um argumento a mais a quem procura ecos da obra de Maurice Leblanc na obra de João do Rio.
 
“Uma Aventura de Hotel” é um conto policial? Sim, mas apenas no sentido de que é uma história centrada na prática de um crime (o furto de objetos valiosos), crime cuja razão de ser é explicada nos parágrafos finais. Nenhuma reviravolta estonteante como em “A Prisão de Arsène Lupin”. Nenhuma interferência da polícia, enquanto que, no conto francês, o inspetor Ganimard, com sua imagem resignada de Jean Gabin, já está presente no conto inaugural da série.
 
No conto de João do Rio, a autoria dos furtos é de uma das damas, que se revela uma cleptomaníaca, sofrida e desorientada, e ao mesmo tempo descoberta e protegida por um dos seus admiradores no hotel em que vivem. Os mistérios de João do Rio são mistérios psicológicos, não policiais. São focados no que a literatura de seu tempo chamava de “nevroses”. É uma mulher viciada no furto de objetos alheios, assim como em “Dentro da Noite” há um rapaz viciado em enterrar alfinetes nos braços da noiva e em “A Mais Estranha Moléstia” outro homem é viciado em sair à rua para sentir os cheiros das pessoas que passam, e dos ambientes onde penetra.
 
Do ponto de vista da literatura de gênero, do conto policial, “A Prisão de Arsène Lupin” de Maurice Leblanc é o que se chama de um “texto fundador”, uma obra que serve de celeiro de idéias para toda uma obra que virá depois.



Do ponto de vista da literatura brasileira, “Aventura de hotel” de João do Rio é um conto pequeno, compacto, sem grandes ousadias de enredo, mas que se encaixa com perfeição no tipo de literatura que o autor produzia então. O retrato de um Rio de Janeiro já republicano mas ainda aristocrático, cheio de nobres endinheirados e ociosos – note-se em alguns contos do livro a figura do Barão de Belfort, que o prof. Julio França, em seu posfácio à edição da Bandeirola, interpreta como “a personificação da potência corruptora da cidade”. 
 
É apenas um hotel nas vizinhanças do Palácio do Catete, e João do Rio resume no primeiro parágrafo, com olho de jornalista e pena de escritor, o seu microcosmo: 
 
Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade eclética, mas toda bem colocada. O proprietário orgulhava-se de ter o senador Gomes com as suas sobrecasacas imundas, o ex-vice-presidente da ex-missão do México, a primeira ex-grande atriz de revista, com o seu cachorro, Mme de Santarém, divorciada pela quarta vez em diversas religiões, o barão de Somerino do Instituto Histórico, um negociante tuberculoso chegado das altitudes suíças com o fardo enorme da esposa, o engenheiro Pereira mais a mulher, mais sete filhos, mais a criada, a notável trágica Zulmira Simões concluindo sua última peregrinação provincial em companhia do elegante Raimundo de Souza, duas senhoras entre viúvas, solteiras ou estritamente casadas, enfim, todo um mundo variado, mas que pagava bem. De resto, o proprietário, como assegurava a ex-estrela de revista, correspondia, isto é, servia com cuidado. Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês. 

 

Ao almoço era curioso ver toda aquela gente na sala de baixo, ornada de palmeiras e de flores comuns, entre os metais polidos das guarnições das mesas. A sala era baixa, com uma luz baça de recanto submarino.  Parecia um aquário. 

São duas faces igualmente legítimas da literatura da Belle Époque, e a literatura brasileira já olhava mais na direção de Paris do que na de Lisboa.




 (Maurice Leblanc e João do Rio)