quarta-feira, 21 de julho de 2021

4726) Poesia e sonoridade (21.7.2021)



(by Quino)

Nos primeiros anos da vida, aprendemos a ouvir e a falar.  Somente depois disso aprendemos a ler e a escrever.  Primeiro conhecemos as palavras como um conjunto de sons, e só depois as vemos como um conjunto de sinais gráficos. 
 
Mesmo que não se perceba, existe em nossa mente uma voz que pronuncia em voz baixa cada palavra que lemos, fazendo a conexão entre a linguagem escrita e a falada.
 
O som das palavras está para a poesia assim como a cor está para as artes plásticas. Existe. É um recurso que pode ser útil para nossa expressão. Não temos que pensar nele o tempo todo, mas sua existência precisa ser percebida. Quando usamos um recurso sem atentar para ele, estamos sujeitos a cometer erros, a produzir efeitos que não desejamos.  
 
Fazer poesia é, entre outras coisas, fazer combinações de sons, parecidos ou diferentes.  A rima é o exemplo mais conhecido.  Quando terminamos os versos repetindo os mesmos sons, isto cria no leitor uma expectativa.  Ao escutar um som novo no fim de um verso ele deduz que esse som deverá se repetir logo em seguida, mas não sabe ainda qual a palavra que será usada para repeti-lo.  Cabe ao poeta satisfazer essa expectativa através de uma palavra que repita o som e traga uma informação nova.  
 
Poetas pouco habilidosos usam rimas forçadas. Enfiam no poema uma palavra que não tinha nada a ver com nada, apenas para obedecer à obrigatoriedade da rima.  O ideal é cumprir a regra dando uma impressão de que ela não acarreta dificuldade, como se a rima fosse algo feito quase involuntariamente pelo poeta. A aparente facilidade surge porque o artista disfarça efeitos que na verdade deram-lhe um enorme trabalho para obter.
 
Tratar da sonoridade das palavras não é só assunto da poesia, mas da prosa de ficção, da não-ficção, do jornalismo...  
 
Digamos que estou descrevendo numa reportagem uma cena em que alguém pegou um documento e viu algo rabiscado sobre ele.  Digo: “As palavras estavam bem claras, ao lado da marca-dágua da página.” 
 
Há uma repetição involuntária de sons.  Posso dizer, muito melhor: “O texto estava bem visível no alto da folha, junto à marca-dágua”.   Mantenho o termo “marca-dágua”, que tem significado muito específico. O resto pode ser trocado por sinônimos, fazendo a frase soar melhor, e dando até uma idéia mais clara do que pretendo dizer. 


(Ascenso Ferreira, recitando)

A repetição de sons dá uma idéia de simetria, como a repetição de formas.  Como no poema “Os engenhos de minha terra” de Ascenso Ferreira:
 
Um trino... um trinado... um tropel de trovoada...
e a tropa e os tropeiros trotando na estrada.  (...)
 
O som de “tr”, assim repetido, nos faz ouvir, misturado ao conteúdo descritivo das palavras, a batida rítmica dos cascos dos cavalos dos tropeiros.
 
Em outro poema, “Vou danado pra Catende”, ele diz:
 
Mangabas maduras
mamões amarelos
mamões amarelos
que amostram, molengos
as mamas macias
pra a gente mamar... (...)
 
A descrição das frutas, insistindo na letra “m”, evoca a sensualidade do prazer oral, como se ele fizesse o leitor experimentar as frutas com os próprios lábios.


(Olavo Bilac)

Olavo Bilac (“Crepúsculo na Mata”) reproduz a riqueza das vozes dos animais da floresta:
 
O amor apresta o gozo e o sacrifício na ara:
guinchos, berros, zenir, silvar, ululos de ira,
ruflos, chilros, frufrus, balidos de ternura...  (...)
 
Não apenas o significado, mas os próprios sons das palavras escolhidas nos dão a idéia da variedade e da estranheza desses sons.

Há um divertido poema de Pablo Neruda, “Orégano”, em que ele descobre essa palavra e se deixa fascinar por ela. Sai pelas ruas bradando: “Orégano! Orégano!”. À sua passagem as pessoas se espantam, e os leões se ajoelham aos seus pés. Toda palavra nova que descobrimos é uma palavra mágica, capaz de gerar prodígios.
 
Guimarães Rosa, no conto “São Marcos” (em Sagarana, 1946), tem um longo trecho sobre a magia sonora das palavras, que segundo ele, numa expressão que se tornou famosa, “têm canto e plumagem”, ou seja, se impõem pela sua força melódica e pela vividez de sua sugestão visual. 
 
As palavras não se associam apenas pelo seu significado, mas também pelo som.  Muitas vezes o poeta escreve intuitivamente, usando a técnica de “palavra puxa palavra”, em que prevalece a melodia que elas criam entre si, mais do que o seu possível sentido lógico.  Nesses momentos a poesia afasta-se da prosa banal, afasta-se da linguagem cotidiana, passa a se organizar em termos que lembram os da música: sonoridade, ritmo, melodia, harmonização de sons.  Ganha uma dimensão que a linguagem comum não tem. 

Será isso um mero jogo de formas, de enfeites vazios?  Depende do poeta.  Ele pode inclusive usar esses sons para produzir no leitor, com mais intensidade, a sensação de reconhecimento de um contexto social. 


(estátua de Carlos Drummond, no Rio de Janeiro)

Em “Os materiais da vida”, Carlos Drummond diz:
 
Drls? Faço meu amor em vidrotil
nossos coitos serão de modernfold
até que a lança de interflex
vipax nos separe
em clavilux. (...) 
 
Que palavras são estas? Pouco importa.  O som delas nos traz imediatamente à memória os nomes de centenas de marcas de produtos, de materiais plásticos ou metálicos, de invólucros, de texturas. 
 
Ironizando o amor em tempos de tecnologia e comércio, o poeta multiplica as sílabas que são a cara da indústria, da publicidade, dos comerciais da TV.  Pode-se dizer que essas palavras têm seu significado determinado, antes de tudo, pelo seu próprio som.
Qualquer frase poética, qualquer verso que consideramos belo poderia ter sido escrito de muitas outras maneiras.  É bem possível que o poeta tenha escolhido aquelas palavras não apenas pelo sentido – inúmeras outras poderiam ter dito a mesma coisa – mas pelo seu som.
 
Fazer poesia é tentar o tempo inteiro escolher a palavra mais adequada entre todas as palavras possíveis.
 
 
 
(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, Ed. Segmento, São Paulo, julho 2008.)