sábado, 6 de janeiro de 2024

5019) Algumas leituras de 2023 - 1 (6.1.2024)



(Algumas leituras do ano passado, alguns dos livros que achei marcantes por variados motivos; livros sem nenhuma ordem especial. Como sempre, incluo apenas livros que li do começo ao fim. )




 
The Hemingway Hoax (1990) – Joe Haldeman
É uma história de viagem no tempo, cujo “ponto de divergência” (fato isolado que, tendo outro desfecho, gera uma linha-do-tempo diferente da nossa) é o famoso episódio em que uma valise com manuscritos de Ernest Hemingway foi perdida num trem da França. Joe Haldeman, que demonstra grande conhecimento da vida e da obra do autor de O Velho e o Mar, imagina um grupo de pessoas decididas a forjar uma pseudo-descoberta de tais manuscritos, num golpe semelhante ao de Clifford Irving que durante algum tempo enganou muita gente com seu pseudo-autêntico Diário de Hitler.
 
O que o trio de espertalhões não sabe é que por razões cósmicas quaisquer, é preciso que os textos de Hemingway continuam perdidos, desconhecidos e inéditos. As idas-a-vindas temporais que a trama acarreta produzem um suspense razoável. Em cada “universo alternativo” onde o protagonista vai parar, tanto ele quanto as outras pessoas são outras mesmo, têm características físicas, psicológicas e biográficas diferentes. 
 
Há algumas discussões literárias interessantes, inclusive sobre fraudes, falsificação, máquinas de escrever antigas (os tipos são reproduzidos graficamente na página do livro); ao mesmo tempo, o próprio Haldeman reconheceu que é o seu livro com mais cenas de sexo e de violência. (A maioria destas cenas não estavam incluídas na versão mais curta da história, publicada por Gardner Dozois na Isaac Asimov SF Magazine, abril de 1990, versão que ganhou os prêmios Hugo e Nebula de 1991.)



 
“A Lua na Caixa Dágua” (2021) – Marcelo Moutinho
A crônica carioca talvez seja, depois da música popular, a melhor maneira de conhecer o Rio de Janeiro, no sentido de saber o que os cariocas pensam, sentem, imaginam. E também de conhecer a “pequena história” dos bairros, das praias, das turmas, das épocas. Marcelo Moutinho é um dos cronistas que costuram a “cidade partida”, num vai e vem incessante entre a Zona Sul (a ponta visível do iceberg carioca) e o resto da cidade. Aqui se misturam lembranças de infância, comentário social, a história do samba, registros de lugares e pessoas que sumiram do mundo material mas ainda são passados adiante de geração em geração, pois o tempo tanto destrói quanto conserva.   



Notes on the Making of Apocalypsis Now (1979?) – Eleanor Coppola
A esposa de Francis Ford Coppola acompanhou toda a via-crucis da realização deste filme, e deste processo resultaram um documentário, espécie de “making of” (Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse, 1991) e este livro, um diário que ela manteve durante a aventura. Francis Coppola é um cineasta ambicioso, daquele tipo cujos filmes são atrapalhados por um tufão ou por uma guerra civil, e não pelos quiproquós habituais. O interessante do relato de Eleanor Coppola é o acompanhamento das incertezas do dia a dia. Logo no começo do livro, ainda na pré-produção, ela diz que Coppola teve um acesso de raiva e jogou pela janela todos os seus Oscars; quatro deles se despedaçaram. Hoje sabemos que o filme é considerado um clássico, ganhou prêmios, e não levou ninguém à falência; mas durante o livro dela nada disto aparece como garantido, porque nada é contado em retrospecto e com a vantagem de já saber o fim. O que a gente tem é a incerteza absurda da vida real, as dúvidas, as catástrofes diárias (tempestades, acidentes, enfartes do elenco, etc.), e o permanente pânico do diretor reescrevendo tudo na véspera ou no instante da filmagem, sem saber ainda que história está contando. 




Corpos benzidos em metal pesado (2022), de Pedro Augusto Baía
Os nordestinos nos queixamos de pouca exposição, pouca divulgação para o Brasil todo, mas a verdade é que a literatura nordestina tem, quando se vê o conjunto de literatura brasileira, muito mais presença do que a literatura nortista. Nos últimos anos, aparecem cada vez mais livros da região Norte, como este de ótimos contos curtos. Corpos benzidos...  (ganhador do Prêmio SESC de literatura) mostra uma vivência que em alguns momentos chega a parecer irreal: de um lado, uma floresta e um rio que parecem um acesso de megalomania da Natureza, e do lado oposto forças econômicas igualmente gigantescas e impessoais, mas que passam-o-rodo em tudo usando fuzis, dinheiro, tratores. Entre estas duas forças estão pessoas simples, que leem romances, presenciam assassinatos, ouvem música, sofrem perseguições, encontram cadáveres, discutem assombrações, sentem o corpo saturado do metal invisível que boia nos rios. A epígrafe de um dos contos cita A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert: “Se os brancos de hoje conseguirem arrancá-lo [=ao metal] com suas bombas e grandes máquinas, do mesmo modo que abriram a estrada em nossa floresta, a terra se rasgará e todos os seus habitantes cairão no mundo de baixo”. 




Cinema Palacio (2022), de Ivan Noé Espadas Sosa
Anos de cineclubismo me impuseram uma mania, a de ler (e achar bom) tudo quanto se refere à experiência do cinematógrafo: a atividade de fazer filmes, assistir filmes, projetar filmes, comentar filmes, inventar filmes que não existem. Ivan Noé Espadas Sosa é filho de dono de cinema, e mais uma dessas pessoas cuja infância foi contaminada desde cedo pelas idas diárias à sala de projeção. Neste livrinho (li em edição eletrônica), ele recompõe episódios que são memórias comuns a todo garoto de cidade pequena que vivia hipnotizado pela tela. São diferentes dos cineclubistas, que vão ao cinema para ver um Fellini, para ver um John Ford. Esses meninos e meninas são encarregados de pegar as latas de filme na estação do trem (como Ivan), ou são levados ao cinema enquanto a babá namora com o projecionista (como aconteceu com Rubem Fonseca), e a ida ao cinema não tem muito a ver com o filme, com o autor do filme ou o conteúdo do filme. É o cinema que constitui sua realidade emocional: a bilheteria, a sala, o vácuo morno, a escuridão, a cortina, as cadeiras barulhentas, o facho de luz... 



Leia esta canção: Beto Guedes (2023), org. Marina Ruivo
Sou meio suspeito para falar desta antologia, da qual participo com um conto. Foi uma idéia em homenagem ao histórico disco de Beto Guedes, A Página do Relâmpago Elétrico (1977), disco que marcou minha geração já marcada pela obra de Milton Nascimento e de seu Clube da Esquina. Participam da antologia alguns amigos “clubesquinófilos” como Luiz Roberto Guedes, Fábio Fernandes e Sérgio Fantini, além de textos-bônus contribuídos por Fernando Naporano, Murilo Antunes, Benedito Bergamo e Flávio Venturini. A música mineira já me encantava quando fui morar em Belo Horizonte em janeiro de 1970 (lá se vão 54 anos), via Milton, e tudo que veio depois dele foi só deslumbramento e descoberta. 



Engenheiro Fantasma (2023), de Fabricio Corsaletti
Felizmente li este livro antes que ele ganhasse o Prêmio Jabuti duas vezes (Melhor Livro de Poesia, e Livro do Ano), porque ler um livro que traz faixa-de-prêmio ao peito é sempre um peso, um ruído na comunicação. Ficamos com os impulsos contraditórios de reverenciar e de ironizar, e a leitura propriamente dita vem contaminada de impurezas mentais. Este livro pode ser visto como uma obra de ficção em forma de sonetos. Alguém objetará que isto já foi feito, mais famosamente no Eugene Onegin (1833) de Alexander Pushkin, mas há uma diferença essencial: os sonetos de Pushkin contam a vida do personagem, e no livro de Corsaletti a moldura ficcional é dada pelo prefácio, em que ele diz ter sonhado com um livro de sonetos escritos por Bob Dylan, e resolveu escrevê-lo. 
Mais detalhes aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/04/4811-ficcao-poetica-942022.html


 
Dream Country (1991), de Neil Gaiman
A série de TV “Sandman” me conduziu sutilmente à missão auto-imposta de ler/reler os volumes da novela gráfica, cuja amplitude e variedade sempre admirei. Neste terceiro volume da obra, Gaiman está acompanhado por artistas como Kelley Jones, Malcolm Jones III, Colleen Doran e Charles Vess – sem esquecer Dave MacKean, um dos grandes capistas deste universo. Dream Country tem quatro histórias magníficas: “Calíope”, o conto brutal de um homem que sequestra uma musa para que não lhe falte inspiração; “A Dream of a Thousand Cats”, uma história onírica somente com gatos como personagens; “A Midsummer Night’s Dream”, onde Gaiman reconstitui Shakespeare e sua trupe ambulante encenado uma peça fantástica com a ajuda de seres fantásticos; e “Façade”, em que uma super-heroína monstruosa está cansada de usar máscaras para esconder sua feiura, e recebe uma ajuda inesperada da Morte. Gaiman é um dos meus autores fantásticos preferidos, e minha intenção é ler a série completa do “Sandman” nos próximos anos. Como dizia José Saramago: “Vida havendo, e saúde não faltando...” 
 
 
(continua no próximo dia 9)