domingo, 2 de outubro de 2011

2677) Espaçonave assombrada (2.10.2011)



No fim da Torre de Comando ficava a Sala de Reuniões, com a mesa octogonal ao centro, coberta de monitores embutidos e touch-pads. O Capitão Barbosa me fez sentar e iluminou uma tela. “Esta é a primeira imagem que preservamos”, disse ele. “Depois que entendemos o que era, ativamos todas as câmaras da nave para que registrassem tudo nessa frequência de onda”. Surgiu a imagem do corredor dos alojamentos, oito portas de cada lado. “Foi por acaso,” prosseguiu ele. “Anteontem, alguém aplicou à câmara do corredor o Modo Multi-D, que só aplicamos às câmaras voltadas para o espaço exterior à nave. Eis o resultado”.

Um tripulante cainhava para o elevador. À medida que andava, o corredor retilíneo pareceu se desdobrar de dentro de si como um leque, multiplicando-se ortogonalmente em corredores parecidos, em ângulos retos uns aos outros, em diferentes eixos. O efeito era o de imagens repetidas num calidoscópio, só que cada uma delas povoada por pessoas diferentes. Três tripulantes caminhavam juntos por um deles; noutro, um homem entrava na primeira porta; noutro, um homem e uma mulher conversavam, parecendo de cabeça para baixo em relação aos outros corredores. O Capitão congelou e inverteu a imagem. “Theo Accioly e Délia Bertol”, disse ele. “Você os conheceu, não?”. Respondi: “Estudei com ambos na Academia do Espaço. Morreram há dois anos, num vazamento do reator”. O Capitão ampliou a imagem na parede ao fundo, em tamanho natural. Délia apoiava a cabeça na porta, sorrindo para Theo, que acariciava o rosto dela com os dedos. “Esta imagem foi captada uma hora atrás. Tudo indica que isto se deve aos saltos no Hiperespaço”, comentou. “É como se a cada mergulho a nave salvasse, por segurança, todas as versões anteriores de si mesma, comprimidas neste mesmo espaço”.

Olhamos os dois, em silêncio, as cadeiras aparentemente vazias em volta da mesa, e aqueles dois fantasmas imobilizados e faiscantes na parede de cristal líquido. “Se esta sala aos nossos olhos é um cubo”, prosseguiu ele, “na verdade é um tesserato que contém os momentos de todas as pessoas que por aqui passaram. Um cubo contendo em si infinitos cubos do seu próprio tamanho”. Revendo o rosto de Délia não senti saudade, nem de novo o desespero, nem incredulidade. Pensava na aparente incongruência geométrica entre o Espaço, que imaginamos ser esférico, e esse Tempo composto de infinitos cubos; essa idéia de um Tempo eriçado de eixos em dimensões paralelas, perpendiculares, ortogonais. Ramificações rumo ao passado e ao futuro, como cristais de uma neve imortal, que nunca se derrete, porque não pode ser tocada por dedos humanos.