quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

3675) "Interestelar" - II (4.12.2014)



A produção visual e os roteiros de filmes de FC norte-americanos estão ficando tão parecidos que a gente começa a ver influência ou citação onde existe apenas a hegemonia de um estúdio ou o monopólio de um modo de fazer as coisas, atendendo a sucessivos clientes.  Em muitos momentos de Interestelar (2014) de Christopher Nolan, em cartaz por aí, eu achei que estava vendo uma sequela ou uma refilmagem de Prometeus de Ridley Scott.  Cascatas glaciais, aventura em planeta hostil que resulta em morte e fuga apressada para a nave-mãe, andróides ou computadores que imitam seres humanos, uma missão cuja verdadeira natureza só é sabida quando não tem mais volta, e por aí vai.  O que é uma injustiça, pois o filme vai bem além daquele.

Primeiro porque a Terra de Nolan é muito mais interessante. Uma Terra esfomeada, que parece viver exclusivamente de milho. Parece a Terra de Filhos da Esperança (Children of Man), de Alfonso Cuarón.  Nolan, com certo pudor, nem mostra o mundo terrível que deve ser aquele, mas nos dá um vislumbre assustador, numa diretora de escola, crente convicta de que a descida do homem na Lua foi forjada pela televisão.

O fantasma que assola no início a casa do piloto Cooper fornece um nó narrativo bem amarrado, que lembra o da “Continuidade dos Parques” de Julio Cortázar ou o de O Vagabundo das Estrelas (Sylbad) de Stefan Wul.  Imagino que alguns críticos irão torcer o nariz pelo fato de Nolan repetir seu efeito especial de A Origem, o dos quarteirões de Paris que se erguem e se dobram sobre si mesmos.  Ele o faz, mas com uma razão diegética bem humorada: o ambiente na face interior do cilindro da Estação, com gravidade induzida por rotação, é exatamente assim.  O labirinto pentadimensional onde Cooper se acha vagando, perto do final, é de uma realização visual fascinante.  Implausível?  Claro que é, não imagino nenhum ambiente pentadimensional que não o seja.

A Origem (Inception) era um filme de FC diferente porque pressupunha a possibilidade de invadir as mentes de outras pessoas e sonharem todos o mesmo sonho, admitindo distorções do espaçotempo a torto e a direito.  É um argumento mais original do que este aqui, embora Interestelar proponha um paradoxo temporal resolvido de uma maneira dramaturgicamente elegante, com um postulado gravitacional que, do ponto de vista científico, pode ser tão (in)questionável como qualquer outro.  O loop temporal que o argumento propõe fica ainda mais elegante quando superposto à gradual diferenciação de idade entre a filha, que envelhece na Terra, e o pai, numa missão em que uma hora de seu tempo físico correspondia a sete anos na Terra.





3674) Detetives do Sobrenatural (3.12.2014)



(ilustração: Romero Cavalcanti)

Corro o risco de estar cansando os leitores que me leem mais regularmente, mas vou comentar de novo minha antologia “Detetives do Sobrenatural”, que acabou de sair pela Casa da Palavra.  A melhor coisa de ser antologista é o dever moral de ler dezenas de volumes de contos alheios, e não tem coisa melhor do que isto, quando a gente tem plenos poderes para escolher o que publicar.  E em alguns casos nem precisa procurar muito, porque na primeira tomada de nota sobre o assunto já aparecem 15 ou 20 histórias já lidas, como opções mais imediatas.

Os Detetives do Oculto, como também são chamados, pisam um terreno minado, porque muitos deles não se limitam a fazer deducções numa poltrona: visitam ambientes “carregados”, encenam rituais, entram em combate direto com forças titânicas, ou satânicas, de ordem supra-material.  O gênero usa até com certa contenção o “mumbo-jumbo” teórico (com palavras tipo “plasma”, “etéreo”, etc.) além de conceitos bastante vitorianos como o duplo, o espelho, o simulacro, o mundo supramaterial... Eles examinam casas onde há fenômenos poltergeist, aparições de fantasmas, ataques de seres estranhos, eventos insólitos e inexplicáveis.

Têm um pouco de Sherlock Holmes, como é o caso (na minha antologia) de Bell (de Meade & Eustace), o Flaxman Low dos Heron, o Carnacki de Hodgson – o mais high-tech de todos, enfrentando horrores pré-lovecraftianos.  Eu chamaria a atenção para dois desses “sleuths”. Um deles é o Tio Abner, de Melville Davisson Post (autor de contos policiais de época, num meio rural austero e tenso).  No conto que escolhi, Abner enfrenta poderes do outro mundo, mas seu confronto é regido pela sua capacidade de ler pistas, de perceber intenções, de dar atenção a detalhezinhos que ninguém percebe.  Um varão tonitruante e contido do Velho Testamento, vestindo roupa de cowboy, com uma mão no revólver e a outra sobre a Bíblia.

O outro é o mais famoso detetive-do-oculto-cantador-de-viola que eu já vi: John the Balladeer, o violeiro errante de Manly Wade Wellman, informadíssimo e fluente em lendas e folclore e cultura de almanaques, sempre tirando da cartola de repentista (e da viola com cordas mágicas de prata) a canção certa para qualquer momento. Digo que ele é o mais famoso porque Wellmann tem também o John Thunstone, de perfil muito semelhante.  Mas os três livros que li com “Silver” John, the Balladeer, são uma espécie de romances regionalistas, com pequenos plots policiais ou de guerra entre poderes ocultos.  Na montanha, na floresta, no vale, no rio, nas estradas dos montes Apalaches, John vive esbarrando a toda hora em inimigos à sua altura.