domingo, 3 de maio de 2020

4576) Modos de falar paraibanos (3.5.2020)




(grafite no Recife, Seth + Derlon)


Se for feita uma enquete entre pessoas sudestinas a respeito do modo de falar dos nordestinos, é quase certo que se concentraria no vocabulário “exótico”, o vocabulário com termos que “só no Nordeste se usa”, como oxente, arretado, gota serena, etc.

Para mim, como escritor, tão importante quanto isto, para caracterizar o Nordeste, são aquelas expressões comuns, com palavras comuns a todo o Brasil, usadas de maneira peculiar.

Já me ocorreu muitas vezes, ao revisar um livro meu para publicação, conversar com o(a) revisor(a) a respeito de certas frases; geralmente nos diálogos.

– Essa frase está esquisita, ninguém fala assim – diz o(a) revisor(a), que é carioca ou paulista.

– Lá em Campina Grande fala-se assim o tempo todo – digo eu. – Estou registrando para a posteridade do idioma.

– Sim, mas isso é lá em Campina Grande. O livro vai ser lido pelo leitor carioca (ou paulista).

– Ótimo. É uma boa chance para os leitores cariocas (paulistas) aprenderem uma coisa que não sabem.

Sei que não é uma conspiração deliberada, mas cariocas e paulistas fazem um esforço comovente no sentido de que se considere “universal” tudo que eles fazem, e o resto seja considerado meramente exótico. Por que? São conspiradores, são fumanchus, são ditadores orwellianos? Não, apenas isto: quem tem poder econômico impõe seu alfabeto, seu dicionário, sua moeda, suas leis, etc.  É assim que a banda toca.

Conheço nordestinos que se fossem chefes de Estado baixariam Medidas Provisórias obrigando todo mundo a usar o oxente, e considerando atentado à segurança nacional o emprego do chiado carioca e do érre paulista.

Mas, vamos lá.

Na desgraça
Em nordestinense, “na desgraça” não tem nada a ver com desgraças e catástrofes. Significa apenas: “na pior das hipíteses.” “Já que a gente não tem convite pra entrar na festa, vamos fazer o seguinte: a gente leva umas bebidas, e na desgraça a gente fica bebendo do lado de fora.”  “Se eu fosse o técnico, armava uma retranca bem grande; na desgraça a gente voltava de lá com um empate.”  A palavra desgraça entra aí como simples hipérbole melodramática.

Na doida
Às cegas, sem plano, sem saber direito o que está fazendo. De maneira atabalhoada, sem planejamento, sem intenção clara.  “Dei a maior sorte: respondi a prova inteirinha na doida, e ainda tirei um cinco.”  “Parece que o guarda atirou na doida, sem fazer pontaria, mas acabou acertando a perna dele.”  “Eu logo vi que esse projeto não ia ser aprovado, foi feito na doida, faltando uma semana pra fechar o prazo”.
Há uma brincadeira frequente: toda vez que alguém diz que fêz alguma coisa “na doida”, pergunta-se: “E o doido, deixou?”

Esquecido
Inválido; sem movimentos. “Essa mulher é uma que mora em frente à praça, ela é mãe de um menino que tem um braço esquecido”  “O ladrão entrou na casa na hora que a família foi pra missa, só tinha lá dentro o avô dela, que tem uma perna esquecida e não pôde fazer nada”. Acho um uso muito poético da palavra: “esquecido” no sentido de imóvel, sem ação, etc., como se a mente tivesse perdido o contato com aquela parte do corpo.

Antigo
Tem às vezes a conotação de experiente, vivido, esperto. “Ele veio com uma conversa de levar o menino pra dar um passeio, mas o menino é antigo, deu um grito e saiu correndo.”  “Não adianta inventar uma desculpa, mamãe é antiga, ela vai ver logo que tem coisa por trás.”

Pelas caridade
É meio que um equivalente a “Por caridade!” – um pedido de súplica, de alguém que implora. Só que, nessa grafia, e com uma pronúncia meio exagerada, é uma forma brincalhona de pedir algo encarecidamente, mas de maneira descontraída. “Fulano, me mande esse texto hoje de noite, pelas caridade, porque eu tenho ensaio às dez da manhã.”  Note-se que, como tantas vezes acontece na linguagem popular, o erro aparente é que dá o poder expressivo. Se disser “pelas caridades”, estraga tudo. (Atenção, revisão!)

Não tem xenhenhém nem meu-pé-tá-doendo
Isso se dizia tanto na minha casa que já não sei se pertence à linguagem de Campina Grande ou era o que a gente chama de dialeto intramuros, coisas que só naquela casa são ditas e entendidas. Tem o sentido aproximado de “não tem desculpa, não tem conversa, é isso e acabou-se”. “Você vai arrumar essa bagunça nesse quarto é hoje mesmo, não tem xenhenhém nem meu-pé-tá-doendo!...”

Chamando cachorro caixa
Todo mundo sabe que quando um indivíduo está muito bêbado a voz fica pastosa, engrolada, ele não consegue pronunciar as palavras por completo. Vem daí esta expressão para dizer que o cara estava muito bêbado, não era apenas “puxando fogo”. “Foi uma briga danada na volta, eu tive que tomar a chave do carro dele e eu mesmo trouxe, porque ele estava chamando cachorro caixa”.
Há alguns complementos também muito frequente: “Estava chamando cachorro caixa e Jesus Genésio”. “Ele ontem chegou em casa chamando urubu de meu-louro”.

Não tem nenhum que se diga:
Usa-se para reforçar uma qualidade qualquer de determinada coisa: "Eu vim aqui nesta loja procurar uma camisa, mas não tem nenhuma que se diga: 'Esta aqui serve'."  "Aquele homem tem seis filhos, mas não tem nenhum que se diga: 'Esse aí é honesto'."

Seguiu por um vasto campo
 era um deserto esquisito
 não havia um arvoredo
 que se dissesse: é bonito (...)

(Leandro Gomes de Barros, Estória do Reino da Pedra Fina, ou Moizaniel e Angeltrina)