sábado, 15 de janeiro de 2011

2454) Escravos e robôs (15.1.2011)




(O Homem Bicentenário, filme de Chris Columbus)

Os robôs, nos livros e filmes de FC norte-americana, vieram substituir historicamente os escravos numa sociedade que (como a nossa, aliás) se criou em cima da escravidão, com tudo que ela acarreta. 

Nós brasileiros nunca poderemos esquecer (mesmo com Rui Barbosa queimando os arquivos do tráfico, pra fazer de conta que nada daquilo tinha acontecido) que o nosso país foi construído ao longo de séculos de exploração e massacre de negros africanos e de índios. 

Eu, pessoalmente, nunca escravizei ninguém, nunca bati nem mandei bater de chicote em ninguém, acho a escravidão uma calamidade. Mas sou beneficiário dela, porque toda minha infância foi paparicada por negras e mais negras que ajudavam minha mãe no serviço doméstico e me tratavam como se eu fosse filho delas mesmas. Eram assalariadas, e ao mesmo tempo eram, naquela promiscuidade sociológica que já conhecemos, tratadas em parte como pessoas da família, com autoridade para nos repreender e nos proibir, com acesso à casa inteira, tornando-se confidentes e conselheiras das patroas. 

 Não sei o que é ser dono de um escravo, mas sei o que é ter dentro de minha casa uma pessoa de condição social supostamente inferior que me deve trabalho, respeito e obediência. Dentro dos parâmetros, é claro.

Nos primeiros contos de Isaac Asimov muitos robôs tinham funções parecidas às das escravas caseiras: exercer tarefas domésticas e cuidar das crianças. 

 Não é difícil, durante a leitura daqueles contos, abstrair o desajeitado corpanzil metálico do autômato, com seu cérebro positrônico, e ver no lugar dele uma crioula rotunda e bonachona, com paciência infinita para as infinitas perguntas dos sinhôzinhos, e sempre cumprindo ao pé da letra, com exatidão quase maníaca, as ordens que recebeu dos patrões. 

José dos Santos Fernandes, meu colega do Clube de Leitores de Ficção Científica, tem um conto intitulado “As Crianças Não Devem Chorar”, em que um criado-robô acaba adotando uma medida radical para evitar que as crianças chorem durante uma ausência dos pais.

Um robô é um escravo, seja ele a empregada doméstica Rose de The Jetsons, seja o Andrew de “O Homem Bicentenário” de Asimov (que evolui lentamente até se tornar um homem livre). De preferência é alguém que não tem iniciativa alguma, que obedece ordens sem discutir, que tem inteligência bastante para responder perguntas mas não para formulá-las, que é possuidor de reservas aparentemente inesgotáveis de força física e de concentração mental, alguém capaz de dar a vida pelos seus patrões, alguém que nunca irá questionar, divergir, discordar, desobedecer.

A literatura que fala de robôs se relaciona com a enorme necessidade de que exista uma classe servil para obedecer aos sinhôzinhos que foram, de maneira brusca, privados daqueles seres tão submissos e esforçados. Era como se os brancos de classe média pensassem: “Já que não posso mais comprar um escravo, vou tentar fabricar um”.