sábado, 9 de abril de 2022

4811) A ficção poética (9.4.2022)



 
Um recente livro de poemas de Fabrício Corsaletti (Engenheiro Fantasma, Companhia das Letras, 2022) parte de uma curiosa premissa ficcional, que o afasta do simples território do “livro de poemas” para o território, não tão distante assim, da narrativa em versos.
 
Fabrício Corsaletti (que não se perca pelas iniciais) propõe uma hipótese, não de FC, mas de “História Alternativa”. No prefácio, ele relata um sonho em que conheceu, num hotel de Buenos Aires, um homem de seus 60 anos, e percebeu em seguida que se tratava de Bob Dylan. O verdadeiro. O “outro”, o que circula por aí, ganhando prêmios e fazendo shows, é um mero dublê, um sósia – de recursos vocais bastante limitados, aliás.
 
Dylan teria dado um pontapé no showbiz e fugido com a família para Buenos Aires, incógnito. Lá escreveu um livro intitulado 200 Sonetos, e no sonho Corsaletti chegou a ver o livro numa banca de revistas, mas quando estendeu a mão para tocá-lo... acordou.
 
Começou então a escrever por conta própria os sonetos desse Dylan portenho, que constituem o presente livro, Engenheiro Fantasma (título de um fragmento inédito, que Dylan acabou transformando em outra canção).
 
É portanto uma espécie de poesia épica, por assim dizer – onde o que conta não é a expressão de sentimentos íntimos de um indivíduo, mas a produção de uma narrativa. Em Engenheiro Fantasma, os poemas não contam uma história: fazem parte de uma história mais ampla. Seria uma espécie de poesia ficcional, como os Cânticos de Ossian de Mac Pherson ou o Livro das Horas de Sóror Dolorosa de Guilherme de Almeida. Poemas ficticiamente atribuídos pelo autor a outra pessoa. (O pulo-do-gato de Corsaletti é atribuir tudo a um sonho, o que deixa a hipótese toda num território crepuscular.)
 
Curiosamente, são poucas as referências diretas e inequívocas a Dylan no livro, sendo a principal delas o soneto 27, que é praticamente uma paráfrase/recriação de “All Along the Watchtower”:
 
27
“os mercadores bebem do meu vinho
e falam alto, dando gargalhadas
eles pensam que a vida é uma piada
quero sair desse redemoinho”
 
disse o coringa, “procuro um caminho”
o ladrão respondeu: “não faça nada
nem diga falsidades, camarada
a hora está chegando, eu adivinho”
 
os príncipes na torre sentinela
vigiavam o panorama inteiro
entre mulheres e servos descalços
 
ouviu-se um gato na noite amarela
logo avistaram-se dois cavaleiros
o vento assobiou no cadafalso
 
Acho que vejo outras canções citadas en passant (“Leopard-Skin Pillbox Hat”, “Crossing the Rubicon”, “Dark Eyes”, “When I Paint my Masterpiece” etc). Porém, o que há de interessante no livro, além da premissa, é o verso fluente e coloquial do autor, que escreve “ao correr da pena”, sem pretensões simbolistas ou parnasianas, e vai cravejando pequenas frases brilhantes ou divertidas na estrutura do soneto.
 
17
(...) eu deveria acender uma vela
queimar meu passaporte e minha mala
 
12
ontem eu vi o show de umas garotas
os clássicos do tango com guitarras
panteras metafísicas com garras
forçando o leme e alterando a rota //
das melodias, bebi gota a gota
do melaço vocal livre de amarras
tomei um porre de cerveja em jarra
notei que a baterista era canhota (...)
 
18
estou sempre diante do mistério
quando te encontro, Senhorita M
seus olhos rimam, sua boca treme
o nariz aldeia, o cabelo império (...)
 
16
(...) estamos dentro de um instante raro
num café que é agora e é já lembrança
 
 
Corsaletti escreve sonetos à maneira moderna, abrindo mão das maiúsculas no início de verso, usando com frequência as rimas toantes (embora prefira as rimas exatas do modelo tradicional). Usa de ponta a ponta o formato clássico italiano, mais familiar a um brasileiro do que a um norte-americano como Dylan: ABBA-ABBA-CDE-CDE.



Outra experiência nessa mesma linha é um livro recente de Carlos Newton Júnior, Memento Mori - Os Sonetos da Morte (Nova Fronteira, 2020), em que ele reúne 100 sonetos atribuídos à Morte. (Quase todos em formato italiano, com um ou outro no formato inglês.) 
 
É ela quem se dirige na primeira pessoa a todos os humanos, ou ao leitor, ou a um grupo em especial... É a Morte quem fala o tempo inteiro, uma Morte irônica, coloquial, irreverente, às vezes cruel quando sugere os sofrimentos por que o leitor há de passar, às vezes desdenhosa quando comenta as tentativas fúteis de quem tenta escapar-lhe. Ora distante, ora cúmplice, ora solene, ora sarcástica, é ela quem dá as cartas:
 
31
Não há no meu palácio uma outra porta
que não seja a de entrada. Desde antanho
jamais eu solto o pássaro que apanho,
e o elo com o vivido aqui se corta.
 
Não há festa ao entrar. E o que me importa?
A tristeza profunda – eis o meu ganho.
A todos, amparando, eu acompanho,
quem me conhece logo se comporta.
 
O passado se foi: a fama, o nome,
agora nada conta ou interessa.
A luz, entrando aqui, em treva some.
 
A minha marca em todos tenho impressa.
Ninguém jamais se cansa, dorme ou come,
o tempo aqui não passa – e não há pressa.
 
A Morte não faz segredos daqueles que compõem, segundo ela, “minha milícia”: “Um qualquer assassino, um pistoleiro, / um chefão, um maluco, um genocida, / um cruel psicopata, um homicida, / desses que escondem corpos num bueiro”. Não faz segredos da sua indiferença pelas convenções humanas: “Às vezes colho a flor antes do fruto / e levo o filho sem levar o pai.”
 
Tem aqui e ali a lembrança de episódios clássicos de sua história:
 
Um dia, já faz tempo, um cavaleiro
ousou desafiar-me no xadrez. (...)
Achou que com seu jogo salvaria
algum jovem casal de saltimbancos;
percebi como agia pelos flancos
e ataquei com maior selvageria...
Ah, tão honrado e digno cavaleiro!
Pra contentá-lo eu o levei primeiro...
 
A Morte que escreve todos esses sonetos é portanto uma criação ficcional.  Assim como o livro de Corsaletti é atribuído a um “Dylan” que não passa de pretexto fabulatório do autor, a “Morte” de Carlos Newton faz o mesmo papel. Os dois livros não “contam uma história”: são conjuntos homogêneos e épicos de poemas que cumprem uma função narrativa, fabulatória, de ilustração a uma história subentendida.
 
E por que o soneto?
 
O soneto já foi a mais nobre e a mais popularizada das formas poéticas brasileiras. Imperou na segunda metade do século 19, mas não é exagero afirmar que grande parte dos sonetos mais impactantes de nossa poesia se deve a autores do século 20: Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Mario Quintana, Carlos Drummond, Ariano Suassuna, Manuel Bandeira, Glauco Mattoso...
 
Harry Mathews, numa conversa com John Ashbery, dizia que o soneto já foi difícil numa certa época, mas não é mais. É uma forma já familiar a todo mundo, e de certo modo já “domesticada”, já incorporada ao ouvido melódico do poeta e também do leitor. O soneto italiano é hoje, para um poeta brasileiro com domínio das formas fixas, quase tão simples de escrever como a sextilha do cordel. A forma em si deixa de ser um desafio a ser enfrentado; é um instrumento. Ou melhor, é um recipiente já pronto onde as “coisas a dizer” são derramadas.
 
Nasce daí uma crítica frequente à poesia em formas fixas – a de que, se métrica e rima são obrigatórias e estão sendo obedecidas, o autor se dispensa de usar linguagem “poética” e produz apenas uma espécie de prosa. Banal, opaca, diluída, sem graça – mas impecavelmente rimada e metrificada.
 
Não é o caso destes dois livros: neles, a forma “soneto” é adotada quase como um instrumento musical (poderia ser outro) para e execução daquela peça narrativa. O soneto isolado não é um fim em si, é um meio usado para compor um mosaico amplo de situações e idéias.