sábado, 28 de junho de 2008

0430) Pirlimpsiquice (5.8.2004)




(ilustração de Luís Jardim para "Pirlimpsiquice")

Há pouco tempo, ao preparar uma palestra sobre teatro, lembrei-me de um conto de Guimarães Rosa que é um ótimo ponto de partida para discutir o improviso no teatro e nas artes cênicas em geral. 

O palco é o ambiente natural para a Arte do Improviso, seja durante uma cantoria de viola, um show de música ou uma peça de teatro. O Improviso é aquele momento mágico em que o já-ensaiado se abre para o surgimento do não-previsto. E é no palco que Tempo e Espaço convergem para um ponto único onde as presenças simultâneas dos espectadores e dos artistas cria a possibilidade rara de um obra de arte ser fruída por uns no instante exato em que é criada pelos outros.

O conto (“Pirlimpsiquice”, em Primeiras Estórias) é simples. Os alunos de um grupo escolar começam a ensaiar uma peça para apresentar num dia de festa. O narrador, um dos garotos, descreve os ensaios (que são secretos, para não estragar a surpresa), a dedicação de todos, e a inveja que o trabalho deles desperta no resto da turma. Todo mundo quer saber “qual a história da peça”. 

Para ajudar a manter o sigilo, os atores começam a inventar uma história inexistente, e a deixá-la vazar para os demais, esperando despistá-los. Ao mesmo tempo, um aluno excluído da peça, o Gamboa, revela que essa versão que circula é falsa: e começa a circular outra, inventada por ele próprio.

No dia, uma série de atropelos faz com que logo na primeira cena da peça dê um branco geral no elenco. Os contratempos imprevistos fazem com que o grupo de atores fique no palco sem saber o que dizer, debaixo de uma vaia ensurdecedora. 

Nesse instante um deles pula para a frente e dá início a uma cena que, naquele atordoamento, soa familiar a todos eles; e o elenco inteiro “emburaca” na cena. Somente alguns minutos depois o narrador percebe que, em vez de interpretarem o texto da peça, estão interpretando a história do Gamboa!

Vou parar por aqui, para despertar a curiosidade sem estragar o prazer da leitura. Basta constatar que no conto estão presentes alguns dos elementos mais importantes para a Arte do Improviso. 

Primeiro: ninguém improvisa a partir do zero. Os estudantes têm 3 textos-base na memória: a peça original, a falsa-peça criada por eles, e a falsa-peça do Gamboa. 

Segundo: o improviso coletivo depende desse conhecimento em comum. 

Terceiro: o maior incentivo ao improviso é aquela desesperadora condição de estar diante de uma platéia que espera, e mais que espera, exige que se diga alguma coisa. 

O resultado é uma vertigem, uma tontura criativa que posso denominar, pedindo emprestado um termo de Ariano Suassuna, a “oura da folia”, a epifania delirante em que a mente precisa dizer, precisa criar, precisa tapar com palavras, sejam quais fôrem, a “boca hiante do contempto”, aquela expectativa aterrorizante que vemos nos olhos da platéia. Nada estava pronto ou decorado. O jeito é improvisar. E o poeta improvisa.






0429) O barra-a-barra (4.8.2004)


(campo de pelada em Portugal)

O futebol de salão foi inventado no Brasil, mas ninguém ainda nos deu o crédito, ao que eu saiba, por uma das mais curiosas mutações do jogo de futebol. Refiro-me ao “barra-a-barra”, uma interessante variante popular do jogo oficial. Joguei barra-a-barra a vida inteira, e até os 18 anos ainda travava disputas ferozes com meu irmão Pedro, numa sucessão infindável de partidas que terminavam sempre com “a do banho”, a saideira cujo vencedor tinha o direito de tomar banho primeiro, enquanto o outro ficava, suado, esperando o chuveiro desocupar.

O barra-a-barra é uma demonstração de como funciona a cultura popular. O futebol é um jogo regulamentado, com regras especificando tamanho do campo, linhas demarcatórias de espaços, número de jogadores, etc. A essência do futebol, contudo, não são essas regras. A essência do futebol é: colocar uma bola, sem usar as mãos, num espaço defendido pelo adversário, e impedir que ele faça o mesmo conosco. Em cima desta premissa, constrói-se tanto o universo das regras quanto o universo das manobras físicas (chutes, cabeçadas, dribles e tudo o mais).

As regras do barra-a-barra são simples. Num espaço aberto, a barra pode ser marcada por duas pedras ou dois montes de roupas, como numa pelada qualquer. Num espaço fechado (um quarto, por exemplo), podem ser duas paredes opostas. Existe o barra-a-barra de pé, e o barra-a-barra de cabeça. No primeiro, é simples: cada um tem direito a um chute, como se fosse uma disputa de pênaltis recíprocos. O barra-a-barra de cabeça é mais interessante: joga-se a bola para o alto e desfere-se uma cabeçada na direção do gol adversário. As duas modalidades têm acréscimos interessantes: o mata e o queima. O mata significa que quando o adversário chuta ou cabeceia e a gente consegue matar a bola no peito, daí em diante vira um jogo de verdade, ambos disputando a bola como num jogo normal, e ambos com a possibilidade de fazer o gol na barra do oponente. O queima significa que quando a gente chuta ou cabeceia e o adversário não consegue segurar (ele “queima”, ou “arrota”, a bola), a gente pode fazer o gol, mas ele não – ele continua a ser apenas goleiro, tem que voltar a segurar a bola.

As sutilezas deste jogo encheriam livros. Quero apenas lembrar que a Cultura de Rua é mestra nesse tipo de coisa. Não é por falta de 22 jogadores que alguém deixa de jogar futebol; não é por falta de grama; não é por falta de linhas ou de traves. As pessoas encontram um jeito de “distorcer”, “deturpar” uma atividade em seu benefício. Pessoas de índole purista detestam essas “deformações”, mas elas são inevitáveis e são necessárias. Legisladores futebolísticos britânicos do século 19 talvez ficassem horrorizados diante de uma variante plebéia como o barra-a-barra. Talvez dessem um jeito de proibi-lo na Constituição, transformá-lo em crime ou contravenção. Não adianta. A Rua assimila, aprende, desconstrói, reformata, recompõe, ensina e bota pra rodar.

0428) Robôs que parecem gente (3.8.2004)




Tenho um carinho especial por imagens de robôs, que me acompanham desde a infância, e que representavam, para o menino de 10 anos que nunca deixei totalmente de ser, uma síntese entre o passado (gente de carne e osso) e o futuro (as máquinas). Sim, eu achava que o futuro estava nas máquinas, nas engrenagens de metal e vidro que aos meus olhos exprimiam o que havia de mais moderno e de mais futurista. 

Muita água passou por baixo da ponte desde então, e cheguei a passar por uma fase de imensa antipatia e preconceito contra qualquer tipo de máquina. Tudo bem. Acho que, se o mundo não está chegando a uma síntese entre o orgânico e o mecânico, meu gosto pessoal pode estar aprendendo a unir esses dois polos.

Vou dar um exemplo. Em 1991 traduzi para a Editora Record um livro de Isaac Asimov, Sonhos de Robô, cuja capa tinha uma magnífica ilustração de Ralph McQuarrie, desenho que o próprio Asimov admite ter sido a inspiração para o conto que dá nome à coletânea. 

A imagem mostra um sofá, num terraço que dá para uma praia em cujo céu se vê um sol nascendo, ou se pondo. E sobre o sofá está um robô adormecido. Ele tem um corpo esguio, bem proporcionado, mas indiscutivelmente metálico, feito de placas articuladas, dobradiças, etc.; mas a posição e a atitude são humanas, flexíveis. Sua cabeça repousa sobre o braço esquerdo, o pé esquerdo está enfiado sob a outra perna, na atitude relaxada de quem sentou por ali e acabou dando um cochilo.

Não há como não perceber a semelhança desse robô com o famoso robô de Metrópolis, o filme feito em 1926 por Fritz Lang, que revolucionou o cinema de ficção científica, e que vi pela primeira vez aos 19 anos. 

Uma mulher, Maria, é colocada numa máquina que a transforma em robô (a ciência de Metrópolis é o que eu chamo de “ciência gótica”: um delírio fantástico onde a ciência e a tecnologia são mera roupagem). Só que um robô-fêmeo: corpo alto e esguio, pernas longilíneas, andar insinuante... e um belo par de seios metálicos. “Que diabo!...” pensava eu, “Pra quê que um robô precisa de seios? É um robô mamífero? Um robô erótico?”




(o robô de Metropolis)

A mesma sensação me deu, num saite dedicado a trucagens fotográficas em Photoshop, a visão da imagem de um robô gordo. Robô gordo é, mais do que um robô erótico, um contra-senso magistral, uma ironia que tem algo de Zen, algo de infantil. É uma imagem que concretiza essa síntese entre o humano e a máquina, sínese que coube à literatura de ficção científica trazer para o interior de nossa cultura. 

Quanto mais a ciência se pretende utilitária, funcional, mais a ficção científica se mostra contaminada de humanidade. Os robôs industriais das fábricas de automóveis, que parecem aranhas mecânicas, são a realidade; mas a poesia do nosso tempo está em nossa capacidade de imaginar robôs adormecidos, robôs sensuais, robôs gordos. Robôs que a outros robôs jamais ocorreria criar: somente a nós, simples humanos.





quinta-feira, 26 de junho de 2008

0427) Poesia e crise psíquica (1.8.2004)



(Fernando Pessoa fazendo um poema)


Comentei ontem nesta coluna episódios ocorridos com Augusto dos Anjos e Cole Porter, que em momentos de doença grave compuseram versos impecáveis. Uma espécie de crispação mental foi capaz de elevá-los a um estado alterado de consciência, a uma epifania criativa. Outro episódio curioso, e em alguns pontos semelhante, é narrado por Fernando Pessoa numa carta a Mário Beirão, em fevereiro de 1913 (“Crise psíquica”, em O Eu Profundo). Pessoa atravessava uma fase de atividade febril, escrevendo aos borbotões. Uma fase que ele denominava “crise de abundância”, em que a mão mal tinha tempo de registrar por escrito a cachoeira de versos que lhe brotava da mente. O poeta (que tinha fobia de trovoadas, desde a infância) voltava para casa certo dia, quando o céu carregou-se de nuvens escuras, e uma chuva pesada começou a cair. Tenso, angustiado com a possível proximidade de um ribombar de trovões, Pessoa apavorou-se e começou a correr para casa. Mas (como diria Veríssimo) deixemos que o próprio Fernando nos conte o que aconteceu.

“Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental que você calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto – acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de minha casa --, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenômeno curioso do desdobramento é coisa que habitualmente tenho, mas nunca tinha sentido neste grau de intensidade.”

Eis o tal soneto, que ele intitulou Abdicação: “Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços / e chama-me teu filho... Eu sou um Rei / que voluntariamente abandonei / o meu trono de sonhos e cansaços. // Minha espada, pesada a braços lassos, / em mãos viris e calmas entreguei, / e meu cetro e coroa – eu os deixei / na antecâmara, feitos em pedaços. // Minha cota de malha, tão inútil, / minhas esporas dum tinir tão fútil, / deixei-as pela fria escadaria. // Despi a Realeza, corpo e alma, / e regressei à noite antiga e calma / como a paisagem ao morrer do dia.”

A história torna-se plausível quando vemos que o soneto, apesar de bom, tem todas as imperfeições de um improviso: repetição de palavras que se enfraquecem mutuamente (“braços”, “calma”), um primeiro terceto bem fraquinho, rimas óbvias. Existe no entanto uma coerência estilística na descrição desse Rei que se despe de seus atributos de realeza; e existe verossimilhança psicológica nesse percurso mental de quem foge às angústias e às batalhas da vida real para regressar à paz dessa Noite simbólica. Que um indivíduo seja capaz de produzir um poema tão articulado enquanto corre na base do pernas-pra-que-vos-quero debaixo de um toró, é para mim uma prova definitiva de que todo momento poético é um momento de loucura sob controle.

0426) A epifania da criação (31.7.2004)

(Cole Porter)


Sempre acreditei que o momento da criação artística (tanto quanto o momento da criação científica, visto que os dois são essencialmente a mesma coisa) é um estado alterado de consciência, um momento de epifania em que todos os interesses de ordem prática recuam para segundo plano, e a mente focaliza-se com toda sua energia naquela idéia que está brotando e desenvolvendo-se. São momentos raros, decerto. A maior parte da criação artística é pedestre, sofrida, e não se compara ao vôo de uma águia, e sim a um hipopótamo escalando uma montanha. Mas sempre me impressionou o fato de Augusto dos Anjos ter composto em seus últimos dias, febril, delirante, invadido pela pneumonia, um dos seus sonetos mais belos, “O último número”: “Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado, a idéia estertorava-se...” Sim, mas mesmo estertorando-se compunha um poema de inquietante simbolismo filosófico – o conceito de Último Número é notável, ainda mais numa época em que poesia e matemática eram consideradas coisas incompatíveis.

Um artigo recente de John Lahr na revista The New Yorker comenta um episódio curioso na vida do compositor Cole Porter. Aos 46 anos Porter estava andando a cavalo num clube quando o cavalo tropeçou e caiu sobre ele, quebrando-lhe as pernas. Este acidente mudou a vida do compositor, que passou por numerosas cirurgias e nunca se recuperou totalmente, sendo forçado a usar muletas até sua morte, muitos anos depois. Sobre este episódio, Porter afirmava (e o seu biógrafo William McBrien achava difícil acreditar) que durante as seis horas em que ficou caído, esperando socorro, ficou trabalhando mentalmente numa das estrofes de uma canção que compunha na época, “At Long Last Love” (“O amor, até que enfim”). Os versos dizem: “Is it an earthquake or simply a shock? / Is it the good turtle soup or merely the mock? / Is it a cocktail, this feeling of joy? / Or is what I feel the real McCoy?” (“Será um terremoto, ou apenas um choque? É uma sopa-de-tartaruga legítima, ou uma falsa? Será que é só um coquetel, esta sensação de felicidade? Ou isto que eu estou sentindo é a-coisa-pra-valer?”).

Talvez num estado de tensão extrema a mente busque energias onde parecia não as ter; talvez o desespero, a dor física, desencadeiem no cérebro alguma compensação química que uma mente criativa seja capaz de utilizar como combustível para a criação. Em todo caso, o que é admirável é a decisão de criar, a decisão de, mesmo diante da morte certa (caso de Augusto) ou possível (caso de Cole Porter), concentrar o que resta de energia na composição de versos que, sem dúvida, já vinham sendo ruminados e planejados pelo poeta há algum tempo, como é habitual na criação literária. O momento de criar é uma epifania, um momento de iluminação íntima, um momento revelatório. O fato de versos serem produzidos em circunstâncias tão adversas não são um contra-senso: ele demonstra por A + B a excepcionalidade do momento da criação.

0425) Os “racconti” de Luis Fernando Borgerth (30.7.2004)

(Fernando Borgerth,
"Cinturão de Asteróides")


Alguns artistas plásticos se impõem à nossa imaginação pelo uso das formas, outros pela pesquisa de texturas, outros pela coerência cromática... Não prolongarei esta desnecessária enumeração. Prefiro dizer que tenho uma curiosidade especial pelos artistas cujas obras mostram uma dimensão que chamarei de “literária” à falta de um termo melhor. São “literárias” porque parecem contar uma história, parecem mostrar algo que aconteceu há poucos instantes ou que está a ponto de acontecer, parecem nos dar entrada num universo de lugares e criaturas muito distintos do nosso. Artistas cuja matéria prima são os seres e os eventos de um espaço-tempo vizinho ao nosso, mas puramente imaginário.

No carioca (radicado em Belo Horizonte) Luiz Fernando Borgerth existe esta coerência obsessiva, que se espalha por um espaço pictórico aparentemente inesgotável. A maioria dos seus quadros mostra cenas da vida cotidiana num mundo que, pela arquitetura, pelas roupas, lembra uma Europa medieval; parecem ilustrações de contos de Boccaccio, mas um Boccaccio dotado de um olho tão esperto e contemporâneo quanto um Ítalo Calvino. No catálogo da exposição individual que acontece em Belo Horizonte até 30 de julho, Eulalia Jorda-Poblet lembra os nomes de Bosch e Brueghel, e de fato o trabalho de Borgerth tem em comum com o destes o uso de um espaço amplo com dezenas de personagens que, em grupos de três ou quatro, dedicam-se a ações distintas, como que compondo mini-quadros dentro do quadro maior.

Só que Bosch e Brueghel, diz ela, são pintores invadidos por um senso de ameaça e de pecado ausente dos quadros de Borgerth. Obras como “Em Cinemascope” (2003), cheia de mulheres seminuas e de gente bebendo, ou “Folhagens” (2004), um matagal repleto de fadinhas igualmente nuas e álacres, podem evocar o “Jardim das Delícias” boschiano, mas o espírito que os governa parece mais próximo da inocência de certas visões de Chagall ou de Paul Klee, um olho meio infantil, ainda não corrompido pelo mundo, e que se dedica ao traço com a aplicação de um pré-adolescente.

Falei em conteúdo literário, e não sei por que me vêm à mente as “Fábulas Italianas” de Calvino, contos folclóricos recontados pelo escritor; ou os contos de Ray Bradbury sobre as cidadezinhas do interior onde basta chegar um circo ou um parque-de-diversões para que coisas extraordinárias comecem a acontecer. Há algo de histórias-em-quadrinhos nestes pequenos quadros (quase todos acrílico sobre tela, com cerca de 30x40cm), há algo dos anacronismos propositais de Moebius, algo das aparentes incongruências de Lewis Carroll... Imagens (infelizmente pequenas) dos trabalhos de Borgerth podem ser vistas em: http://www.murilocastro.com.br/expo/expo.php?expo=10. São pequenas polaróides de um mundo onde algo extraordinário está acontecendo, e se olharmos para elas por bastante tempo acabaremos nos transportando para lá e descobrindo o que é.

terça-feira, 24 de junho de 2008

424) Che Guevara e a arte de matar (29.7.2004)


(capa de Nadir, de Ricardo Soares)

Uma das maiores contradições de quem quer fazer o Bem é a aparente impossibilidade de fazer um Bem que seja puro, sem nenhuma dosezinha de Mal. Parece que não existe esta fórmula. Um ditado antigo diz: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra.” Um jagunço sertanejo costumava dizer: “Eu detesto brigar. Quando um cara me chama pra briga eu mato ele bem rapidinho, só pra não ter que brigar.” Tudo isto me vem à mente ao ver o Diário da Motocicleta de Walter Salles e pensar no que terá transformado aquele rapaz idealista do filme no Che Guevara que liderou guerras de guerrilhas em Cuba e outros países, e que certamente matou muita gente pelo meio o caminho.

Será que não tem outro jeito? Será que contra um inimigo armado é obrigatório usar armas, será que contra um inimigo desleal é preciso ser desleal, será que contra um inimigo que não recua diante de nenhuma sordidez é preciso não recuar também diante de nenhuma sordidez? Só assim, em igualdade de condições, teremos alguma chance de derrotá-lo? Lembro de uma frase de Sartre em algum do volumes de Situations (cito de memória): “Quando enfrentamos um inimigo numa luta de vida ou morte, quando uma barreira de fogo o separa de nós, é preciso considerá-lo como a própria encarnação do Mal, senão não teremos chance de derrotá-lo”. Essa retórica guerrilheira foi largamente capitalizada pela direita, principalmente nos EUA, onde ser marxista era sinônimo de ser comedor-de-criancinhas.

Esta ética cruel, no entanto, não tem nada a ver com esquerda ou direita, com capitalismo ou comunismo. A guerra tem uma ética (ou anti-ética) própria que prescinde de ideologias. Todo ato intencional de matar é um assassinato, não importa se se trata de legítima defesa, de um carrasco executando um condenado em nome do Estado, ou de um soldado matando um inimigo em nome da Liberdade e da Democracia. Quem vai à guerra é para matar. É a ética do crime, a ética da briga de rua. Recordo a descrição impecável de Ricardo Soares em seu romance Nadir (Campina Grande, 1975): “Pirajibe sempre imaginara que um dia haveria de enfrentar o João Cláudio. Seu último sucesso, numa briga, remontava aos quinze anos. Depois é que aprendeu, em teoria, que, ao enfrentar um homem, deveria colocar o medo de matar ou de ferir gravemente de lado. Brigar pra valer. Nada de avaliar conseqüências, pois isto, já sendo um medo, derrotá-lo-ia de saída. Foi o que procurou pensar quando enfrentou João Cláudio. Sabia que ele era ágil, feroz e criminoso. Fez-se criminoso, feroz e ágil.”

Será mesmo preciso igualar-se ao inimigo, para ter alguma chance de derrotá-lo? Será que só é possível chegar a Poder e manter o Poder fazendo o jogo sujo do Poder? Brecht dizia que para mudar o mundo a gente não devia recusar-se nem mesmo a se aliar ao carrasco. O problema é que tem cada vez mais gente se aliando aos carrascos, e o mundo não muda nem a pau.

0423) As mãos sujas de Che Guevara (28.7.2004)



O lançamento do bom filme Diário da Motocicleta de Walter Salles tem trazido a figura de Che Guevara de volta às páginas dos jornais. Um artigo recente de Sean O´Hagan no The Observer faz uma reavaliação do mito do Che, ressaltando a ironia de um revolucionário radical ter se transformado em ídolo romântico. No filme recente do “Casseta & Planeta”, um personagem confunde Guevara com Raul Seixas, uma piada que ressalta a semelhança de destinos de dois personagens tão diferentes. Diz O´Hagan que a figura de Che hoje em dia lembra mais a de um herói romântico como Byron do que a de um soldado que matava a sangue frio; o filme de Salles reforça este lado dourado da lenda.

Parte deste mito se deve à famosa foto que Alberto Korda fez de Che, com o cabelo ao vento e a estrela na boina, quando este estava numa sacada de Havana, ouvindo Fidel Castro discursar, em 5 de março de 1960. Existe naquela foto um pouco do olhar de bezerro desmamado de Gael Garcia Bernal no Diário da Motocicleta (não, não estou ironizando o ator, que é bom); mas existe também o que O´Hagan chama de “absoluta implacabilidade”. Àquela altura, Guevara não era mais o rapaz ingênuo que saiu de moto para conhecer o mundo e acabou conhecendo as injustiças sociais da América Latina. Era o revolucionário que tinha seguido o conselho de Bertolt Brecht: “Mergulhe na lama, abrace o carrasco, mas mude o mundo, porque ele precisa ser mudado.”

Guevara matou muita gente com as próprias mãos, antes que elas fossem cortadas pelos soldados bolivianos que o executaram. O´Hagan cita um trecho de um discurso seu onde ele diz: “O que nos impulsiona é um ódio incessante ao nosso inimigo, que nos transforma em máquinas de matar, eficientes, seletivas, frias, violentas.” Não é este o tipo de retórica apreciado pelos rapazes e moças que compram posters ou camisetas com a imagem do ídolo. A frase que eles preferem (ainda bem) é a famosa “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” Uma frase que tenta nos garantir que é possível ser revolucionário e continuar sendo poeta, ser soldado e continuar sendo um namorado carinhoso, ser um líder e continuar sendo um sujeito legal.

Há outra frase de Che, menos conhecida, mas que tem a ver com a parte final de Diário da Motocicleta, quando ele trabalha como médico num hospital de leprosos no meio da selva. Diz ele: “Um dia o mundo compreenderá por que deixei de curar homens doentes e fui matar homens sãos.” É esse salto qualitativo (para usar o velho jargão marxista) que transformou aquele rapaz tímido, asmático, e que não sabia dançar, no soldado que fuzilou sem pena muita gente em Sierra Maestra, e que, na crise dos mísseis de Cuba, sugeriu que os mísseis atômicos fossem disparados contra os EUA. Che tinha um lado cruel, um lado sombrio, mas, como na famosa foto, as sombras servem apenas para realçar o seu lado luminoso.

0422) Refilmagens (27.7.2004)



Em geral, por puro e simples preconceito, eu me recuso a ver as refilmagens que o cinema americano faz de filmes estrangeiros. Besteira minha. Não existe coisa melhor do que isto para nos mostrar o que é a indústria cultura norte-americana, mas mostrar mesmo, pra valer, com a riqueza de detalhes de um quadro de Renoir e a frieza clínica de uma tomografia computadorizada. A maioria dessas refilmagens se deve a um gesto mental típico do produtor e comerciante hábil: o sujeito vê um concorrente fazendo algo de uma maneira que ele considera meio desajeitada, meio amadorística, e pensa de imediato: “Mas que cara burro. Eu posso fazer isso muito melhor do que ele, e ganhar muito mais grana.” Surgem então as refilmagens que querem açambarcar a idéia básica do filme original, e dar-lhe um tratamento que (acham eles) vai ser mais adequado ao gosto do público americano.

Surgem assim refilmagens como Kiss me goodbye de Robert Mulligan, que reaproveita a idéia de Dona Flor e seus Dois Maridos, ou Três solteirões e um bebê, baseado no sucesso francês Trois hommes et un couffin. Um dos exemplos mais conhecidos é o thriller francês La femme Nikita de Luc Besson, rapidamente refeito nos EUA com Bridget Fonda, sob o título Point of no return. Quando essas coisas se dão no interior do cinemão comercial, tudo bem, porque na verdade eu até hoje não distingo um hamburger do Bob´s de um do MacDonald´s. O problema é quando pegam os clássicos do cinema. Até hoje recusei-me a ver Breathless, a refilmagem do Acossado de Godard, como também Willie & Phil de Paul Mazursky, que não é outra coisa senão um “remake” do clássico Jules et Jim de Truffaut.

Em princípio, nada contra. Quando não se conhece o filme original, aceita-se a refilmagem com o mesmo prazer com que aceitei Vanilla Sky de Cameron Crowe (aquele em que Tom Cruise fica desfigurado num acidente de carro e daí em diante nem ele nem nós sabemos mais se o mundo é real ou não), porque não cheguei a ver Abre los Ojos, o original espanhol. O problema é quando se pega um filme de verdade, arranca-se dele a carne, a alma, a substância, e enfia-se ali uma trinca de atores em evidência, e um fio de enredo que só se parece com o original quando é resumido em duas ou três linhas numa resenha. Parece aqueles CDs em que a banda Mastruz Com Leite regrava “os grandes sucessos de Elba Ramalho”, com uma cantora imitando a voz de Elba.

Dias atrás, conversando com amigos, ficamos conjeturando como Hollywood adaptaria alguns clássicos do cinema. Alguém perguntou como seria La Strada de Fellini. Eu sugeri que o papel do brutamontes Zampanò, que fora de Anthony Quinn, seria entregue a Arnold Schwarzenegger; o da ingênua Gelsomina, que fora de Giulietta Masina, seria entregue a Julia Roberts; e o “Louco”, antes interpretado por Richard Basehart, seria agora Jim Carey. Vocês acham engraçado? Pois todo ano acontece algo assim.

0421) Navegar é preciso (25.7.2004)




É um texto famoso de Fernando Pessoa, desses que se incorporam à memória cultural de um povo. Cito de memória: “Navegadores antigos tinham um lema: navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim este lema, adaptando-o à minha vida e à minha missão no mundo: viver não é necessário, o que é necessário é criar.” 

Para a minha geração, a frase lembrada por Pessoa foi popularizada por Caetano Veloso em sua canção “Os argonautas”, no seu “disco branco” saído em 1969, logo após sua prisão pelo regime militar. 

Nenhum de nós tinha a menor idéia de quem fosse Fernando Pessoa. Era apenas um nome que Caetano tinha bradado, enfurecido, para a platéia que o vaiava durante sua interpretação de “É proibido proibir”, num daqueles festivais. Com a vaia, o cantor interrompeu o canto e disparou na direção da platéia um monólogo a plenos pulmões com uns dez minutos de duração, no qual, a certa altura, gritava: “Hoje não tem Fernando Pessoa!”

Fernando Pessoa? Quem diabo é esse cara? Corremos todos para as enciclopédias e descobrimos que era um “poeta modernista português, falecido em 1935”. Ficamos mais perplexos ainda. Oi... quer dizer que o Modernismo tinha chegado em Portugal?! Pensávamos que Portugal tinha estacionado em Camões e Gil Vicente. 

Aí saiu um compacto simples, tendo no lado B a faixa “Ambiente de festival”, com a vaia do teatro e a diatribe de Caetano, e no lado A a canção “É proibido proibir” (“A mãe da virgem diz que não... e o anúncio da televisão... e estava escrito no portão...”), na qual, a certa altura, brotava a voz surda e angustiada de Caetano recitando: “Esperai! Cai no areal e na hora adversa que Deus concede aos seus...” Eram os versos do poema “D. Sebastião”, na parte III de Mensagem, único livro publicado em vida por Fernando Pessoa.

Até hoje não sei o que diabo têm a ver Dom Sebastião e o slogan “É proibido proibir”; mas foi este talvez o primeiro link “pessoano” na obra de Caetano, retomado depois com “Os argonautas”: “O barco... meu coração não agüenta tanta tormenta, alegria, meu coração não contenta...” 

"Os Argonautas":
https://www.youtube.com/watch?v=Pi34gRiCt_Y 

Era um fado nostálgico em tom menor, ao som de bandolins, onde se misturavam temas como a navegação sem rumo e o vampirismo (“O barulho do meu dente em tua veia... o sangue, o charco...”). E o refrão, em tom maior ascendente, triunfante: “Navegar é preciso... Viver não é preciso!”

Só muitos anos depois é que vi comentários sobre a ambigüidade da frase. “Precisão” pode significar necessidade: navegar é necessário, viver não é necessário. Mas pode significar também exatidão, e aí teríamos: navegar é uma ciência exata, viver não o é. O que está muito mais de acordo com os argonautas da Escola de Sagres, com suas bússolas, astrolábios e portulanos. 

Naufrágios, calmarias e tempestades, no entanto, nos mostram a ingenuidade dessa distinção. Viver e navegar estão submetidos ao mesmo princípio de incerteza. Não nos esqueçamos de que para navegar é preciso viver, não é preciso?






0420) Muito livro, pouco leitor (24.7.2004)

(Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra)

Quando entro numa livraria, chega sinto um aperto no coração diante de tanta coisa boa que tem. Nunca os livros brasileiros foram tão bons, tão bem apresentados, tão bonitos e agradáveis de manusear (a Companhia das Letras foi uma editora que ajudou muito a subir este nível). Por outro lado... o livro anda muito caro. Nas livrarias do Rio, o que tem de livro por 35 ou 40 reais não é brincadeira, e não me refiro a livros em papel cuchê com ilustrações coloridas, é o livro comum mesmo, com 200 ou 300 páginas.

No Brasil, aumenta sem parar o número de editoras e o número de títulos lançados. Mas não aumenta o número de leitores, nem o de livrarias, nem o de bibliotecas. O que temos é livros cada vez melhores e mais caros, destinados a um público consumidor que é sempre o mesmo: uma elite minoritária, esclarecida, gente que tem dinheiro no bolso, que ama os livros, e que não faz questão de pagar mais caro por um livro cuja importância é capaz de reconhecer. Há dez anos, uma pessoa nessa faixa de consumo podia escolher todo mês (suponhamos) entre 10 e 20 novos títulos para decidir o que comprar. Hoje, essa mesma pessoa tem 30 ou 40 títulos para escolher.

O problema é que tantos novos livros e tantas novas editoras brigam ferozmente pelo mesmo público, um público que não cresce. Não é nem uma questão de preço, porque álbuns de luxo são um produto com vendagem garantida no Brasil. (É um pouco como no mercado imobiliário, onde os corretores dizem: “A coisa mais difícil hoje em dia é vender um quarto-e-sala, porque a população do quarto-e-sala não tem dinheiro. Mas apartamento com 4 suítes, quantos a gente oferecer a gente vende – tem gente comprando um pro filho, um pra nora, um pro neto, um pra alugar...” Isto é Brasil.) O problema é que mesmo quem pode comprar livros sem perguntar o preço só compra uma quantidade limitada, ou porque não tem tempo de ler, ou porque não quer abarrotar a casa. Não adianta aumentar a oferta: há um limite para a possibilidade de compra.

A solução é expandir o mercado – vender livros a outras pessoas, fora dessa elite. Mas como, se está todo mundo liso? Desde que me entendo de gente há tentativas de fazer livros populares. Os livros de bolso das Edições de Ouro estão aí até hoje, mas no meio do caminho tombaram coleções importantes como a “Catavento” da antiga Editora Globo (Porto Alegre), a BUP (Biblioteca Universal Popular) da Civilização Brasileira, o “Jornalivro” que nos anos 1970 era vendido em bancas, as numerosas coleções mirins com que a Brasiliense sacudiu o mercado nos anos 1980. Hoje temos coleções de livros de bolso voltadas principalmente para os clássicos da literatura (livros que são de domínio público) como a da Martin Claret, ou de clássicos contemporâneos que já foram tão reeditados que podem negociar direitos mais baratos, como nos livrinhos da L&PM vendidos nos aeroportos. Mas tudo ainda muito longe do poder aquisitivo do grosso da classe média.

0419) Privacidade zero (23.7.2004)



(capa do exemplar do Secretário de Justiça)

Os assinantes da revista Reason tiveram um susto no mês de junho ao receber seu exemplar pelo Correio. Ao pegar a revista, William Thompson, morador de Nova York, não acreditou. A chamada de capa, em grandes letras, dizia: “William Thompson, eles sabem onde você está!” E um subtítulo, em letras menores: “Os benefícios não-celebrados de uma nação transformada em banco de dados”. A ilustração mostrava uma foto aérea do quarteirão onde ele morava, com um círculo vermelho assinalando o seu prédio. “Fiquei famoso!” pensou William, e ligou para seu pai, Bob Thompson, que mora em Miami. O pai atendeu e foi logo dizendo: “Você não vai acreditar... Meu nome e a foto daqui de casa saíram na capa da Reason!”

“Reason” é uma dessas revistas liberais tipicamente norte-americanas, defensoras “da liberdade e das escolhas individuais em todas as área da atividade humana.” A revista se propôs a enviar, para cada um dos seus 40 mil assinantes, um exemplar com capa personalizada, contendo seu nome, a foto do lugar onde ele morava, e (na matéria interna) dados sobre sua vizinhança. (Os exemplares vendidos nas bancas saíram com uma capa padrão, não personalizada) Assim, cada assinante recebeu a “sua” revista, inclusive o todo-poderoso John Ashcroft, Secretário de Justiça dos EUA.

A façanha técnica foi resultado de uma aliança da revista com vários parceiros. O banco de dados foi fornecido pela Entremedia, uma empresa de marketing direto de San Bernardino (Califórnia), que baixou da Internet todas as fotos aéreas e os mapas, além dos dados sobre os assinantes e suas ruas, recolhidos do saite do Escritório de Recenseamento dos EUA. A empresa levou uma semana criando um arquivo individual para cada um dos assinantes. Armazenados em dois discos rígidos, os arquivos foram transferidos para o Laboratório de Comunicação da Cal Poly (California Polytechnic State University, em San Luis Obispo), onde os dados foram organizados, diagramados, e alimentados numa máquina Xeikon DCP 50D, fornecida pela Xeikon America. Cada capa foi impressa individualmente e depois reunida ao corpo da revista.

Segundo o editor-chefe da “Reason”, Nick Gillespie, a equipe levou seis meses reunindo dados e imprimindo cópias-teste antes de se lançar à empreitada. “Nenhuma das principais pessoas envolvidas trabalhava no mesmo escritório, nem sequer no mesmo fuso horário,” disse ele. E qual o objetivo disto tudo? A revista pretende mostrar ao cidadão comum que, em certa medida, já vivemos na civilização do “Big Brother” – o de George Orwell, por favor, não aquela bobagem da Rede Globo. No momento em que o Governo (norte-americano, no caso) quiser reunir uma quantidade massacrante de dados sobre qualquer cidadão, isto pode ser feito em questão de horas. “Isto levanta questões sobre privacidade,” admite Gillespie, “mas também torna nossa vida mais fácil e mais próspera. Talvez estejamos dando adeus ao conceito de privacidade, mas já era tempo.”


quinta-feira, 19 de junho de 2008

0418) As palavras andantes (22.7.2004)



Saiu pela editora gaúcha L&PM uma bela reedição do livro As palavras andantes, do uruguaio Eduardo Galeano. É um livro que tenho há anos e nunca tive a intenção de devorar do começo ao fim: é livro para abrir e ler ao acaso. É uma espécie de almanaque, composto de pequenos textos, às vezes com quatro ou cinco linhas apenas, historietas, anedotas poéticas, contos recolhidos ou inventados por Galeano em suas andanças pela América Latina. Contos com títulos que lembram os nossos folhetos de cordel: “História do Lagarto que Devorava suas Esposas”, “História do Homem que queria Engravidar”, “História do Povo da Lua”, “História do Vaqueiro que era uma Onça”...

A comparação com o cordel não é gratuita. Para tornar o livro parecido com um almanaque de cordelista, Galeano encomendou as ilustrações a J. Borges, o grande xilógrafo pernambucano, um dos maiores cordelistas e xilogravadores vivos e em atividade. As ilustrações de Borges, com sua enganadora simplicidade, parecem agarrar os textos de Galeano e elevá-los a um plano mítico, para além do meramente literário. Textos que poderiam ser apenas jocosos, ou românticos, ou sentenciosos, ficam contaminados de magia pela presença dessas xilogravuras de pássaros coroados, esqueletos cercados de morcegos, animais que se entredevoram, serpentes com asas ou com cabeça humana, diabos lutando de peixeira, fotógrafos lambe-lambe, pastores, marceneiros, mosquitos tocando tambor, esferas superpostas de céus cravejados de estrelas.

Galeano é o autor de um dos livros que mais abalaram minha fé na humanidade. As veias abertas da América Latina, que li em 1978 em edição da Paz & Terra, botou abaixo todas as minhas ilusões de que bastaria derrubar a ditadura militar brasileira e todos os nossos problemas estariam resolvidos. OK, OK – nunca acreditei que isso resolveria “todos” os nossos problemas, mas juro que pensei que resolveria os mais graves deles. Ledo engano. Não mudou nada. Como não sou muito dado à aridez das leituras econômicas e geopolíticas, foi preciso a prosa incendiária, visionária e transfiguradora de Galeano para me levar nessa viagem pela exploração dos países latino-americanos. Entendi tudo. A América Latina é um Prometeu atado à rocha, condenado pelos deuses da História a ser devorado vivo pelo abutre da exploração econômica.

Esta minha teoria atual pode ser tão despropositada quanto a anterior; mas onde quero chegar é que se As veias abertas... me dão motivos para achar que o mundo não tem jeito, As palavras andantes me fazem recuperar a fé na América Latina (este “nordeste” do nosso continente) como um organismo mais resistente do que as pulgas que dele se alimentam. Nosso continente é uma pirâmide soterrada, da qual só emerge do chão, como numa história do Barão de Münchausen, uma laje de pedra com uma porta em forma de livro. Basta abri-la... e deuses xilografados voltarão a habitar entre nós.

0417) O Relógio Humano (21.7.2004)



Dando continuidade à série “As Besteiras Mais Originais da Internet”, apresento aos caros leitores o saite “O Relógio Humano”, uma divertida falta-de-ocupação criada por um americano chamado Daniel Craig Giffen, de Portland (Oregon). Craig, como ele gosta de ser chamado, teve a idéia de criar um relógio visual que mostrasse a hora atual, de minuto a minuto. Sua primeira providência foi calcular de quantas imagens iria precisar para mostrar todos os minutos de um dia: o resultado obtido foi 1.440. A tarefa, portanto, era criar imagens que mostrassem a hora em formato digital, em minutos sucessivos: 12:00, 12:01, 12:02, 12:03 e assim por diante.

As primeiras imagens do Relógio Humano foram feitas com o próprio Craig, seus amigos e parentes (além de alguns transeuntes pegados na rua) segurando uma folha de papelão com uns algarismos desenhados a mão e colados com fita adesiva. Mais mambembe, impossível. Essas fotos digitais ficaram arquivadas no saite e foram sendo colocadas no ar de 60 em 60 segundos. Com o passar do tempo, o próprio Craig começou a fazer fotos mais caprichadas para mostrar as horas, e começou a receber colaborações do mundo inteiro.

O requisito para enviar uma colaboração para o Relógio Humano é, basicamente, enviar uma foto digital onde apareça o número com a hora que se quer mostrar, de forma clara. Não adianta seguir a lei do menor esforço: o saite rejeita fotos onde o sujeito se limita a aparecer ao lado do monitor onde aparecem os algarismos em corpo 72. Fotos tiradas ao ar livre, fotos mostrando paisagens típicas (há várias do Brasil), fotos onde os números sejam mostrados de maneira original... estas têm a preferência.

Para que serve isso? Bem, eu pelo menos uso como o meu relógio pessoal enquanto trabalho. Abro uma janela do Internet Explorer com a imagem do Relógio Humano (cujo endereço, a propósito, é: http://www.humanclock.com/ ) e deixo ali. Toda vez que quero saber as horas, dou um Alt+Tab, e olho na janela. Tem as coisas mais inesperadas. Agora mesmo, por exemplo, é 1:35 da manhã, e a foto que aparece na tela é de um casal de Derbyshire (Inglaterra), deitado na cama (de pijama e camisola, ao que tudo indica) segurando folhas de papel com os números rabiscados à mão. Agora é 1:36: aparecem uns caras meio dark, de camisa preta e cabelo pintado, segurando algarismos em estilo gótico e bebendo cerveja; a foto é de Pittsburgh (Pensilvânia). Algumas horas têm até 10 fotos diferentes. Algumas são bem criativas: as horas são criadas com os dedos, ou com biscoitos sobre uma mesa, ou com o número de uma casa, ou com objetos que parecem algarismos... Há fotos de inúmeros países, fotos com crianças, com animais, grupos de amigos dançando... O Relógio Humano de Craig Giffen acabou se transformando num mostruário informal de gente distante dando um alô para pessoas que não conhece. Agora, uma moça mostra os pulsos atados com uma fita adesiva onde se lê: “I love you – 1:42”.

0416) Marlon Brando (20.7.2004)



A morte recente de Marlon Brando tem motivado um dilúvio de textos sobre sua influência sobre os atores, seu egocentrismo, seus grandes momentos. A imagem que guardarei dele é a primeira que me marcou, quando vi, com menos de dez anos, seu rosto ensanguentado atravessando um cais repleto de grevistas carrancudos, na sequência final de Sindicato de Ladrões. Anos depois, reencontrei-o levando uma surra pior ainda em Caçada Humana. Guardei dele a impressão de ser um cara capaz de levar uma surra de dez minutos às mãos de dez sujeitos, e depois voltar ao trabalho como se nada tivesse acontecido.

Brando não deve ter sido flor que se cheire. Ninguém chega a um sucesso como aquele sem iniqüidades, sem pisar pescoços, sem atropelar boas intenções alheias. Um sujeito pode tornar-se rico e famoso sem deixar como efeito colateral um rastro de ressentimentos, ainda que minoritários? Duvido. A “persona” muscular, dominadora, invasiva que Brando projetou nas telas não deixava dúvidas sobre o ser real que havia ali por trás. Sua mente tinha a complexidade de um computador, mas seu movimento ao longo da vida era o de um tanque de guerra.

Lembro um episódio narrado por Stewart Stern, o roteirista de Juventude Transviada, O Americano Feio, etc. Por volta de 1955, Stern envolveu-se num projeto do produtor George Englund para fazer um filme em cooperação com a ONU, mostrando as condições de vida de populações pobres no mundo inteiro. Um projeto megalomaníaco e improvável (“a ONU, colaborando com a Paramount Pictures?”). Brando aderiu ao projeto, e os três embarcaram para Manila. Na véspera da viagem, estavam hospedados no Hotel Plaza, em Nova York, e Stern conta que durante a noite debruçou-se na janela, olhou a neve caindo sobre a cidade, e sentiu o sangue gelar nas veias. Ali estava ele, um roteirista principiante e desconhecido, prestes a assumir a maior responsabilidade de sua vida. “Era um daqueles momentos místicos,” diz ele, “em que as pessoas de 33 anos percebem que têm apenas 14.”

Nesse instante, alguém passou o braço sobre seus ombros: era Brando, que, como se estivesse lendo seus pensamentos, disse: “Você não estaria aqui se não fosse pela nossa vontade. Não estaria aqui, se a gente não precisasse de você. Não estaria aqui, se a gente não acreditasse que você tem valor.” E em seguida sentou no sofá, e passou o resto da noite contando para Stern episódios de sua infância, de sua relação com o pai, com a mãe... Tinha 31 anos, e já era Marlon Brando. Em Manila, havia uma multidão paralisando o aeroporto para vê-lo, e foram precisos seis carros da polícia para tirá-los dali. Stern diz que Brando era capaz de cóleras terríveis: “Na hora de disparar raios e trovões, ele era jupiteriano.” Por outro lado, “é um dos amigos mais leais que se pode ter. Quando você for ao seu aniversário de 60 anos, vai encontrar lá as mesmas pessoas que estavam no de 20 anos, e mais algumas que ele conheceu no percurso.”

0415) O inimigo oculto (18.7.2004)


(Nosferatu, de F. W. Murnau)

A Arte da Narrativa é a arte da elipse, da omissão, da alusão indireta. Não se pode contar tudo, mostrar tudo: é preciso saber escolher o que mostrar. Artistas mais hábeis se dão o luxo de deixar de mostrar justamente o mais importante. No filme O bandido Giuliano, de Francesco Rosi, uma reconstituição da vida do famoso bandoleiro da Sicília, o personagem principal quase não aparece. Tudo é contado de maneira indireta.

Chico Buarque tem uma canção clássica dirigida a um inimigo que não é jamais nomeado: “Apesar de você” (1970). Era a época da ditadura militar, e ninguém tinha dúvida sobre a quem ele se referia: “Hoje você é quem manda, falou-tá-falado, não tem discussão... Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.” O recado político, a ameaça pré-datada tipo “seu sal tá se pisando” era mais do que clara. Com a imprensa, no entanto, o compositor desconversava: “Olha, o ´você´ aí pode ser qualquer pessoa que está nos enchendo o saco: um síndico antipático, um patrão injusto, um pai autoritário...”

Em outra canção de Chico, “Ano Novo” (1967), o poder autoritário era personificado num vago “rei”, que entra na cidade, manda tocar sinos, hastear bandeiras, e quer ver todo mundo contente, “porque é Ano Novo”. Ao não se referir com precisão a um momento político em particular, o poeta transforma sua letra num recado atemporal, sem prazo de validade nem de vencimento. Em vez de dizer quem é o “rei”, o poeta prefere descrever sua gente, que está “vivendo a muque”, e ironiza: “E quem já viu de pé o mesmo velho ovo hoje rica contente, porque é Ano Novo.” Os versos de 1967 poderiam ter sido escritos hoje: “E ao meu amigo que não vê mais graça, todo ano que passa só lhe faz chorar, eu disse: Homem, tenha seu orgulho, não faça barulho, o rei não vai gostar...”

Oculto, o inimigo é mais ameaçador. Uma velha máxima do filme de terror diz que não se deve mostrar o monstro, e sim o medo que ele produz. Outra canção de Chico, “Maninha”, de 1977, diz: “Se lembra da fogueira? Se lembra dos balões? Se lembra dos luares dos sertões?” O poeta dirige-se a uma irmãzinha, e recorda um tempo feliz da infância dos dois: “Se lembra quando toda modinha falava de amor? Pois nunca mais cantei, ó maninha, depois que ele chegou.” A letra é nostálgica, intimista, e tem como uma delicadeza a mais o fato de ter sido gravada por Miúcha, irmã de Chico. Ele insiste na comparação entre passado e presente: “Se lembra do jardim, ó maninha, coberto de flor? Pois hoje só dá erva daninha, no chão que ele pisou.” Quem é “ele”? Provavelmente é o mesmo “você” da outra música. Nunca nomeado, nunca descrito, este inimigo oculto continua poeticamente vivo, rondando o poema por todos os lados, mesmo que pareça ter sumido do mapa político, como o poeta prometia: “Mas não me deixe assim, tão sozinho, a me torturar... Que um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar.”

0414) Dez anos do Tetra (17.7.2004)


(Baggio e Taffarel -- foto de Cláudio Versiani)

A imprensa comemora os dez anos do tetracampeonato que a Seleção conquistou nos EUA em 1994. Em algum lugar daqui de casa tenho guardadas 7 fitas VHS com as 7 partidas com que o Brasil ganhou aquele título. Vi o primeiro jogo (Brasil 2x0 Rússia) na casa de meu irmão Pedro, que o gravou e me deu a fita de presente. Considerei isto um bom augúrio, e passei a gravar todos os jogos seguintes. Deu no que deu – mas a CBF até hoje não reconheceu minha decisiva contribuição àquela conquista.

Torcedor é capaz de qualquer macumba-mental para fazer um time ganhar um jogo, ainda mais com um jejum de 24 anos em Copas do Mundo. Ainda hoje uma parte da crítica torce o nariz para aquele título. A Seleção era defensiva, jogou mal, empatou de 0x0 na final, foi pros pênaltes, e ganhou com um erro do adversário! Uma vitória de Pirro, que a gente só comemorou porque, se não comemorasse, quem iria fazê-lo? Os italianos?

E a Seleção não goleou ninguém, o que é um pecado terrível para a nossa arrogância imperialista. Brasileiro adora humilhar as seleções alheias; faz bem ao nosso complexo de colonizado. Ganhar de 1x0 dos EUA (num jogo mais tenso e mais disputado do que a batalha de Verdun) foi considerado uma afronta ao nosso currículo. A imprensa exige o tempo todo que Brasil ganhe “dando espetáculo”. Eu gosto de espetáculo. Gosto do nosso jeito de jogar, que os ingleses batizaram de “The Beautiful Game”, e minhas Seleções preferidas são as de 1970 e 1982. Mas sempre acho que esse pessoal trocaria todo o “jogo bonito” do mundo por uma boa e velha pelada, desde que a gente no final enfiasse 4 ou 5 na Argentina ou na Alemanha.

Amigos meus que estiveram nessa Copa disseram que não houve um jogo sequer que prestasse, devido ao calor. A diferença de fuso horário e a necessidade de ter platéias acordadas na Europa fêz com que a maior parte das seleções tivesse que jogar no-pingo-do-meio-dia, sob o sol da Califórnia e do Texas. Uma testemunha ocular comentou: “O calor não era só insuportável, era indescritível.” Ninguém jogou bem ali. Nem mesmo nós. Nosso único jogo mais-ou-menos foi o 3x2 na Holanda; e o resto da Copa foi uma sucessão de confrontos entre Criciúmas x Figueirenses (com todo respeito).

Momentos que justificaram a Copa: o segundo tempo de Brasil x Holanda; o passeio que a Bulgária deu na Argentina (2x0); os 5 gols do russo Salenko em Camarões; os gols e a autoconfiança de Romário; o gol que o romeno Hagi fêz na Argentina lá da linha lateral; o gol de Bebeto nos EUA; o gol de Branco; a Bulgária despachando a Alemanha de virada (2x1); a defesa crucial de Taffarel no pênalti de Massaro; as participações da Nigéria, Bulgária e Romênia; as atuações individuais de Taffarel, Márcio Santos, Aldair, Dunga, Mauro Silva, Bebeto e Romário. Não foi uma grande Copa, mas a essas coisas se aplica o que dizia Blake Edwards sobre o sexo: “Quando é bom, é a melhor coisa do mundo, e mesmo quando é ruim ainda é bom pra c***”.

sábado, 14 de junho de 2008

0413) O zen, a foto, a poesia (16.7.2004)





(Blow-Up, de Michelangelo Antonioni)



Existe na cultura oriental uma valorização do Acaso, do Momento, que parece estar ausente não apenas da mentalidade racionalista do Ocidente, mas até mesmo do misticismo ocidental. 

Há dois exemplos que me parecem bem típicos. 

O primeiro é o I-Ching, o oráculo chinês onde moedas são jogadas ao acaso um certo número de vezes; pela combinação de caras e coroas forma-se um desenho de linhas inteiras ou partidas, que expressa o sentido mais profundo daquele momento. 

O segundo exemplo é o do jogo africano dos búzios, e para efeito da presente idéia peço que aceitem a cultura africana como cultura “oriental”, no sentido metafórico de “não-ocidental”, voltada mais para o pensamento mágico do que para o pensamento racionalista. 

A posição em que os búzios caem, quando jogados ao acaso, revela algo sobre a pessoa que faz a consulta. Parece que, em geral, são precisos vários arremessos sucessivos dos búzios para que o “desenho” vá se formando.

A arte da fotografia tem um pouco a ver com isto, porque envolve também a captação de um momento privilegiado. 

Folheando um álbum ou vendo uma exposição de fotos, vemos todo o tempo flagrantes que registram um instante único do tempo. Não me refiro aos flagrantes jornalísticos onde alguém consegue fotografar o choque de dois carros, o tiro disparado contra um presidente. Isto tem o seu valor, mas mais fascinante é o minúsculo evento, de importância apenas cotidiana, flagrado por uma câmara que coincidiu de estar justamente ali naquele lugar e naquele instante.

O reflexo de um out-door no vidro de um carro parado no sinal. Duas nuvens idênticas pousadas sobre duas montanhas contíguas. Pessoas que se cruzam numa rua movimentada formando, sem o saber, um padrão geométrico. Tudo isto são exemplos de fotos que não poderiam ter sido feitas minutos antes ou minutos depois (às vezes, alguns segundos apenas). 

Daí, talvez, o clique-clique incessante dos fotógrafos profissionais quando andam pelo mundo afora. Os instantes mágicos existem. Mas ninguém os veria se não fosse aquela câmara que conseguiu surpreendê-los no único momento possível. 

O próprio fotógrafo, muitas vezes, não tem plena consciência do que registra, e só depois, a ver a foto (como no filme Blow-up) percebe o que seus olhos não haviam percebido.

Mal comparando, é o que acontece com quem escreve poesia. É um ato tão intencional quanto o de fotografar, e é igualmente sujeito ao Acaso. 

Escrever poemas é em grande medida um jogo-de-búzios verbal, onde jogamos palavras ou idéias no papel, e passamos 2 ou 3 minutos a riscar, emendar, substituir, permutar, inverter... 

Cada tentativa nos aproxima de algo que não sabemos o que é, até que, por um desses milhões de milagres de que é feita a criação artística, tudo se encaixa, tudo se engata, e erguemos o olhar da página sabemos que fotografamos naquele momento uma frase que jamais nos ocorreria na véspera ou no dia seguinte.






0412) Parece que é rock (15.7.2004)


A televisão está a anunciar, todos os dias, programas especiais em comemoração aos 50 anos do rock. A data escolhida como nascimento é a da gravação de “That´s all right, Mama” por Elvis Presley, em 1954. Fico pensando se aqui no Brasil terá ocorrido uma comemoração semelhante em 1967 nos 50 anos do samba (“Pelo Telefone” é de 1917) ou em 1996 nos 50 anos do baião (a gravação de “Baião” pelos Quatro Ases e Um Coringa é de 1946, embora o “nascimento” possa ser transferido para 1947, com Luiz Gonzaga gravando “Asa Branca”).

Não pensem que vou discutir aqui se o rock é ou não é um canal para a invasão do imperialismo norte-americano. Se vocês acreditam nisso, ensopem este jornal com gasolina e toquem fogo, porque eu sou um dos contaminados. O rock já me conquistou. Sou portador do vírus roqueiro, e pior ainda, sou portador sintomático, porque já toquei em banda de rock (só que naquele tempo se chamava “conjunto de iê-iê-iê”), já compus uma porção de rocks, e uma guitarra bem tocada me produz o mesmo arrepio de prazer físico e de excitação mental que me vêm de um ponteado de viola nordestina ou da cadência suingada de uma boa roda-de-samba carioca. O rock me serve de inspiração, me serve como um poderoso catalisador de adrenalina. No momento em que escrevo estas linhas, por exemplo, estou ouvindo Madness of the West, um CD dos Allman Brothers que só parece com... com... o Santos de Pelé jogando. Não me ocorre outra comparação.

O jazz é a sutileza e a complexidade da música erudita brotando das mãos de músicos negros, que fizeram a síntese entre o piano europeu, a síncope rítmica e a aventura do improviso. O pop é o prolongamento norte-americano da canção popular européia, desde a opereta até a cançoneta de music-hall. O rock é a eletrificação das formas de música rural brotadas nos próprios EUA: primeiro, o blues dos negros do Mississipi; depois, as canções “country” dos vaqueiros do Oeste, a música “bluegrass” de raiz (com seus vertiginosos solos de banjo e de rabeca), a tradição de música “gospel” das igrejas batistas da população negra urbana.

O imperialismo econômico e cultural existe, sim. São as gravadoras, a imprensa especializada, as rádios e as televisões, que desembarcam em nossa escancarada América Latina para vender seus produtos. O imperialismo vende tudo, transforma tudo em produto. Vocês viram a parafernália de souvenirs que cercou o filme de Mel Gibson sobre a paixão de Cristo? Era pedaço de cruz, prego da cruz... Não, amigos, não condenem uma coisa só porque os vendilhões do Templo estão faturando. Olhem em torno: eles devem estar faturando com vocês também. O rock é o yin-yang da civilização americana, que, boa ou má, é a mais poderosa do nosso tempo, a nossa Roma Imperial. O rock é a pororoca do rural com o urbano, do negro com o branco, do primitivo com o tecnológico. Talvez não seja a melhor música que se faz em nosso século; mas é a mais parecida com ele.


0411) Uma idéia por dia (14.7.2004)




Algumas pessoas me perguntam se dá muito trabalho escrever uma coluna como esta todos os dias; perguntam se não falta assunto. Bem, comparado ao que eu já fiz no Diário da Borborema, esta coluna aqui é moleza. No “DB”, entre 1973 e 77, eu tinha que preencher uma coluna diária (e uma página inteira no domingo) falando somente de Cinema. Agora, eu falo do que bem entendo, e até de muitas coisas que não entendo muito bem.

Em todo caso, ajuda não falta. Uma ajuda prática, ou pelo menos um modelo inspiracional, me vem de um interessante saite: Uma Idéia por Dia – Onde as Idéias são Livres (http://www.idea-a-day.com/). O saite me parece britânico (é um dos problemas na Internet – você percorre um saite de cima a baixo, e ninguém informa em que país ele está situado), criado em agosto de 2000 por David Owen, e tem um conceito muito simples. Todos os dias, o saite propõe uma idéia de ordem prática, sugerida por um leitor. Os assinantes recebem esta idéia num email diário, e podem fazer com ela o que quiserem. As idéias não são registradas. O saite nos dá a possibilidade de receber uma idéia por dia, de sugerir nossas próprias idéias, de contactar o autor de uma determinada idéia, de consultar o arquivo de todas as idéias anteriores.

Hoje, por exemplo, é o Dia 1416, e a idéia proposta (por um leitor chamado “Hugh”) é: “Colocar caixinhas de esmolas junto aos aparelhos de raios-X dos aeroporto. Os passageiros poderão preferir deixar as moedas em seu próprio país do que levá-las consigo”. Eu já perdi exasperantes minutos diante do raio-X, procurando moedas em todos os bolsos da minha roupa, e de bom grado as deixaria para financiar uma causa nobre. Existe algum leitor, aí, que possa botar essa idéia em funcionamento?

O Dia 225 sugere que a polícia das cidades receba poderes para cercar, com cordões de isolamento, áreas de beleza natural (como um arbusto florido num parque) ou de interesse cultural (como um lenço deixado cair pela Rainha da Inglaterra). O Dia 386 sugere a criação de um rádio-despertador conectado às estações meteorológicas, e que possa tocar mais cedo ou mais tarde, de acordo com o tempo que estiver fazendo. O Dia 57 sugere a criação de uma mistura entre agência de namoros e escola de línguas, para marcar encontros entre pessoas de nacionalidades diferentes que tenham atração mútua e queiram aprender outra língua. O Dia 1403 sugere que as óticas façam fotos digitais dos clientes, que avaliarão o visual da nova armação com o auxílio das novas lentes.

Muitas idéias são despropositadas, outras são ingênuas, outras são tão úteis e tão óbvias que a gente se espanta de não ter pensado naquilo antes. Alguém, mais cedo ou mais tarde, vai fazer fortuna com uma idéia que um sujeito teve num momento de inspiração e jogou na Net, sem outro propósito senão o de servir à humanidade (e parecer mais esperto do que todo mundo).

0410) As mil mortes do “Pasquim” (13.7.2004)




Notícias na imprensa informam que “O Pasquim” acaba de morrer de novo. Fiquei um pouco triste, mas deixei passar. O “Pasquim” já acabou tantas vezes que acabei me convencendo de sua imortalidade. Cedo ou tarde ele brota de novo, no lugar onde menos se espera. A cada reencarnação o velho tablóide parece surgir mais diluído, mas não importa. O “Pasquim” é como aquele velho cinema de bairro que na adolescência nos exibiu desde os clássicos europeus até os nossos primeiros filmes pornô. Deixamos de frequentá-lo, mas se for preciso lutaremos até a morte para que ele continue funcionando.

Fica difícil explicar aos mais jovens a importância que teve o “Pasquim” na época em que apareceu, em 1969. Falta o mais importante: fazer entender o contexto histórico. O jornal surgiu na pior fase da censura do governo militar, uma situação difícil de descrever para quem tem menos de 30 anos. Como era em princípio um jornal dedicado a matérias “leves”, sobre cultura, e a textos de humor, surgiu e foi passando. Para quem, como eu, tinha 19 anos, era uma revelação. Foi lá que vi pela primeira vez quadrinhos de Don Martin, cartuns de Saul Steinberg, contos absurdistas do português Santos Fernando. Era possível ver, lado a lado, artigos de Sérgio Augusto sobre jazz e de Sérgio Cabral sobre samba. Líamos a página de Paulo Francis com análises políticas e logo em seguida a página dupla “Underground” onde Luiz Carlos Maciel falava de drogas alucinógenas, comunidades hippies, contracultura e Jimi Hendrix. Reinaldo Jardim escrevia ferozes versos satíricos em redondilha sob o pseudônimo de “Barrabás”, e Millor Fernandes contava suas “Fopos de Esábula” (“O Macorvo e o Caco”, etc.).

O pessoal se queixa às vezes de que eu sou (ou sôo) meio saudosista, de modo que vou pular de vez para o momento presente. O “Pasquim 21”, este que encerra agora sua trajetória, é um vestígio daquela época. Ele cumpriu a função de manter viva uma marca, e de agrupar essas figuras que minha geração aprendeu a admirar. O que precisamos, hoje, é de publicações alternativas que se oponham ao comercialismo e à futilidade com a mesma sem-cerimônia com que o “Pasquim” se opunha à censura e ao autoritarismo.

Os assuntos propostos pelo “Pasquim” de 1969 eram desconhecidos dos jovens daquele tempo, ou porque fossem proibidos pela ditadura militar, ou porque fossem algo que estava começando a surgir no mundo, ou porque eram assuntos (como a filosofia oriental) a que ninguém nunca tinha dado muita importância. Hoje, tudo isso foi absorvido pela indústria cultural. Rock, drogas, radicalismo político, misticismo, permissividade sexual... isso é o que sustenta, hoje, não a imprensa alternativa, mas as redes de TV e as agências de publicidade. Em algum lugar, contudo, um novo pasquim deve estar se preparando pra trazer à luz os assuntos proibidos de nossa época, para nos dar as informações que nem sabemos ainda estarem faltando em nossas vidas.

0409) Os filhos alheios (11.7.2004)



(Eddie Carmel com seus pais - foto de Diane Arbus)

Ver crescer um filho alheio é uma importante lição de vida; às vezes mais educativa do que ver crescerem os nossos. Porque a verdade é que a gente não vê os nossos filhos crescerem. Nossos filhos crescem como as plantas do nosso jardim ou da nossa varanda: ao ritmo de um micromilímetro por dia. Crescem furtivamente como a nossa barba, as nossas unhas, ou a nossa cintura. Estão sempre ali, fazendo barulho, sempre idênticos, e tão imprevisíveis que mesmo as mudanças mais radicais passam despercebidas, porque pensamos que é apenas uma veneta nova que está demorando a passar.

Já os filhos dos outros crescem como os espigões da construção civil. A gente passa um dia numa esquina e lá estão os operários de capacete cor-de-laranja, pipocando suas britadeiras de encontro ao solo, fincando fundações, carregando cimento. Passam-se alguns dias, ou pelo menos é esta a nossa sensação, e quando passamos de novo já tem gente dando polimento nas vidraças da cobertura. Mal nos recuperamos da surpresa e, na vez seguinte, estamos tocando na campainha para visitar um amigo nosso que está morando no vigésimo andar.

Nossos filhos crescem pelo lento processo de aposição de novas e imperceptíveis camadas de vida sobre as camadas anteriores. Só temos noção de que o tempo passou por dentro deles quando ocorre um desses saltos qualitativos que não têm retorno: o primeiro passo, a primeira palavra escrita, a primeira menstruação, a primeira saída-de-casa-a-sós. (Guardo para mim, que sou “gourmet” de detalhes, prazeres mais refinados, como a lembrança do primeiro uso do futuro do subjuntivo, o primeiro livro de Sherlock Holmes, etc.)

O filho alheio, pelo contrário, parece só crescer aos saltos. Num dia, é um bebê que a gente segura no braço para uma foto, na festinha de aniversário. No outro, já é um adolescente magricela, cheio de espinhas. Na vez seguinte é um grandalhão com cavanhaque hip-hop e uma namoradinha que não é de se jogar fora. Sempre que visito amigos meus depois de algum tempo tenho que refrear o irritante clichê de “Fulano cresceu, hem?...” Crianças não sentem prazer em ouvir isto; adolescentes odeiam.. E não quero fazer como uma tia minha, que sempre que me reencontrava (eu já com 40, 45 anos) dizia, assombrada: “Menino, como Braulio tá grande!”.

Filhos alheios crescem aos saltos, como os bairros onde só vamos de vez em quando, ou uma telenovela à qual retornamos depois de alguns meses. Garotos a quem ensinei acordes no violão vêm hoje me presentear seu primeiro CD, fazendo com que eu me sinta vagamente cúmplice (e com um tremendo complexo de inferioridade). Mas o mais danado é você voltar a uma cidade onde já morou, ir a uma festa num bar, ser apresentado a uma moça simpática, dançar com ela, ficar todo animado, e ao encostar no balcão para tomar uma cerveja ouvi-la dizer: “Que legal a gente estar aqui... Mamãe fala tão bem de você!” É, amigos, o tempo não para.

0408) A guerra sem bandeiras (10.7.2004)

(Chuck Norris)

Daqui a cem anos, esse negócio de “o país tal”, “a presidência da república”, as “fronteiras nacionais”, etc. terá terminado de escorrer pelo ralo. O capitalismo não tem nação, não reconhece nenhuma Constituição, ignora fronteiras, e envia seus exércitos para onde quer que exista o oxigênio que o mantém vivo: o Lucro. Está reservada a todos os governantes do mundo (sejam eles presidentes, reis, primeiros-ministros ou aiatolás) a dúbia função exercida pela Rainha da Inglaterra: a de reinar sem governar. O poder político vai se transformando, cada vez mais, numa espécie de encenação teatral destinada a distrair e agitar a população (“Quem será que vai ganhar? Lula ou Zé Serra? Bush ou Kerry?”) enquanto o verdadeiro poder circula de terno e pastinha pelos aeroportos, bancos e ministérios do mundo.

Um artigo recente de Bruce Sterling na revista Wired (julho) adverte: “Fomos obrigados a sofrer sob o terror sem pátria; pois agora se preparem para a guerra sem bandeiras.” Sterling está se referindo às numerosas (e cada vez maiores, e cada vez mais poderosas) empresas que fornecem segurança às companhias e aos grupos políticos que agem, por exemplo, no Iraque pós-Saddam. Aqueles quatro americanos que foram queimados, mutilados e pendurados numa ponte em Falujah trabalhavam para empresas de segurança; a imprensa informou que são profissionais ganhando entre 2 e 4 mil dólares por semana. Nada mau, mesmo correndo o risco de ser tratado como um judas-de-sábado-de-aleluia. Mas esses caras são todos metidos a Chuck Norris. Gostam de correr riscos.

As empresas de segurança não estão no Iraque para “assegurar uma transição pacífica do poder” ou para procurar Osama bin Laden: estão para garantir que o petróleo continue circulando nos numerosos dutos que o conduzem aos mercados mundiais. Sterling lembra o que ocorreu na década de 1990 em Serra Leoa, quando o governo recorreu a uma companhia de segurança (eufemismo para “exército de mercenários”) para livrar-se do rebeldes que ocupavam as minas de diamante, em troca de 40% dos lucros de exploração. Em pouco tempo a companhia, chamada Executive Outcomes, tinha se expandido para países como Angola, Quênia, Malawi, Moçambique, Sudão e Uganda. Tais companhias seguem uma ética de jagunços: proteger o patrão, passar por cima de quem se atravessar na frente, afugentar os indecisos e eliminar os descontentes.

O patrão, é claro, são as grandes companhias que foram com muita sede ao pote petrolífero de Saddam Hussein: a BDM International, a Blackwater, a Halliburton (ligada ao vice Dick Cheney), a Kellogg Brown and Root, a MPRI, a Vinelli e outras. Enquanto xiitas e sunitas se matam uns aos outros pelo simbolismo do poder político (ou por mera vingança entre clãs), e as TVs se preparam para o circo do julgamento de Saddam, os exércitos sem bandeira travam sua guerra pessoal em busca do que realmente interessa: o ouro negro.