terça-feira, 13 de novembro de 2018

4404) A música e a reza (13.11.2018)



Vieram me perguntar por que eu passo tanto tempo ouvindo música. Não ouço muita música. Meus amigos ouvem mais do que eu. Muitos deles não pegam um metrô Carioca-Cinelândia sem plugar as oiças. Todo bar tem música, todo rádio e TV tem música. A próxima evolução será um chip estéreo incrustado juntos aos nossos martelos e labirintos, puxado a surdo de escola.

É porque eu ouço muitas vezes com uma certa concentração. Uma vez eu estava na sala de um casal de amigos e vieram me mostrar o disco novo não lembro de quem. Era no tempo do elepê, de modo que prestei atenção às três ou quatro músicas (era um disco instrumental) daquele lado. Aí quando foram mudar, minha amiga falou:

– Você ouve tão concentrado que parecia que tava rezando.

A maioria das pessoas não gosta de música, gosta de música-de-fundo, música que possa ficar em segundo plano. Elas acham que a vida vai bem, ou vai mal, mas em todo caso iria certamente melhor com uma trilha sonora ao fundo. Um mero acompanhamento.

A música é um refratador de emoções, pega aquele foco emocional da gente naquele instante e o dispersa com bons resultados, iluminando uma área mais ampla ao redor da memória.

Ouvir música é como ler poesia, ou rezar, ou estar pensando numa coisa decisiva que está para acontecer com dia e hora marcados. A pessoa se espalha pela própria vida afora, como tinta numa tela. Tudo que a gente já viveu (tudo não, claro) parece emergir, coisas sentidas, pensadas, visualizadas, coisas pedidas com fervor a um poço escuro e talvez vazio.

A música pode ser manipulativa. Basta ouvir um anúncio, ou ouvir a trilha de John Carpenter para seus thrillers de horror. Ela é um “indutor emocional”, conforme usada em muito cinema e muita TV por aí. Ela explica subliminarmente ao ouvinte como ele deve se sentir, como a dramaturgia precisa que ele se sinta. Na verdade, ordena que ele se sinta assim, e qualquer um acaba sentindo, até eu.

Esse doping musical é um pouco forçação de barra e um pouco consequência do vexame de quando a gente está finalizando uma cena e vê que ela está meio mequetrefe.  Não há suspense? Enfia um crescendo de orquestra de dentro do qual se eleva um rasgado dissonante, e basta um plano da porta para quem está no sofá presumir a vinda de Freddy Kruger.  É beijo? Violino.

Os violinos são como o molho vinagrete, sempre dão a impressão de estar melhorando aquilo que os recebe.  Não se pode negar a eficácia e a necessidade desses recursos, mas isso é apenas o lado adestrador da música, o seu lado pavloviano.

A música não é apenas para estender um tapete onde “outra coisa” vai desfilar. Lembro sempre a história do garotinho de cinco anos que viu o pai escutando a música na sala e perguntou “onde estava passando o filminho”. O guri achava que uma música sem imagem era algo amputado, faltando uma coisa.

Música é para ser ouvida a sós, à meia luz, com enorme silêncio, numa sala tranquila onde não vá entrar nenhum alarido de um momento para outro? Talvez, mas se só pudesse ser de mil outras formas também.

Vendo aqueles documentários sobre o jazz, aquelas décadas de quando ele brotou do dixieland e das orquestras de metais, a gente vê como era uma música dançante no começo. Foi se sofisticando ao longo do século e virando música mais para ouvir do que para dançar. Uma música que era para os negros dançarem virou música para os brancos escutarem. (Isso é o tipo da frase-de-efeito de cronista cuja simetria estrutural lhe dá mais credibilidade do que ela comporta.)

A música ideal talvez fosse aquela que pudesse (o mesmo som, o mesmo fonograma) botar para dançar num salão centenas de pessoas, e pudesse também ser fruída por uma só, a sós, à meia-luz, etc.