sábado, 7 de junho de 2014

3519) Dicionário Shakespeare (7.6.2014)



O mundo da literatura está cheio de proezas ociosas, como calcular a percentagem de trissílabos na prosa de Graciliano. Uma dessas empreitadas quiméricas está sendo levada a efeito pelos caras que encontraram um dicionário inglês cheio de anotações manuscritas, e cismaram que era o dicionário que William Shakespeare usava como  referência ao escrever suas peças.

Fui lá no saite (http://tinyurl.com/oreosrz) dar uma olhada. Existe todo esse friquitício (lamento, leitores não nordestinos – explico depois) a respeito das palavras que o dono do dicionário sublinhou e que aparecem em peças do dramaturgo. Há uma visível mão-grande na direção de tentar comprovar a hipótese, mas é isso mesmo, afinal hipóteses são para isso, para a gente sugerir, propor e vê até onde consegue fazer as pessoas apostarem nela.  Existe uma dramaturgia da História, um gênero que consiste em relatar que “as coisas aconteceram assim”.

Vejam esta matéria: http://tinyurl.com/lzjme9r. Não sou um grande leitor de Shakespeare, na verdade só conheço bem duas peças dele (“Hamlet”, “Macbeth”), não li as exegeses de Harold Bloom, seu laudador maior, mas falando de poeta para poeta o interessante de Shakespeare é a aparente facilidade de suas imagens. Ele faz um símile ou uma alegoria qualquer e você pensa: “É exatamente isso”. Talvez pareçam óbvias a leitores do século 21, mas pode ser que leitores do século 17 pensassem: “Meu Deus, nunca me ocorreria dizer isso assim”. Para mim, o Poeta diz as coisas de uma maneira que parece a única possível para descrever aquilo.

O dicionário de Shakespeare não difere muito da camisola de Marilyn Monroe ou do biquíni de Brigitte Bardot, que colecionadores arrematam. Este objeto é precioso, porque esteve em contato com alguém precioso, predestinado, extraordinário. A criação cultural envolve leilões de opiniões, de teses, de explicações do mundo. “Minha tese é de que Fulano foi o dono deste livro, baseado em tais e tais indícios. Se discordar, beleza, apresente suas informações que conflitam com as minhas.”  Um dia a ciência vai estar tão avançada que a gente vai mostrar um manuscrito do século um e provar que foi escrito por alguém do século dez.

Achar o dicionário de Shakespeare seria tão útil (ou tão inútil) quanto achar a bússola quebrada que foi usada por Américo Vespúcio, ou a Bíblia que Lutero violentou com tinta negra e letra gótica.  Achar o mapa da ilha do tesouro.  Achar o resíduo sagrado de um personagem sagrado.  Cada novo farrapo de texto que se descobre de um autor parece estar disfarçadamente zombando de tudo que o precedeu, parece saber que seria lido por último.