quarta-feira, 6 de junho de 2018

4354) Dez álbuns: 7 - Erik Satie (6.6.2018)




Há diferentes maneiras de ouvir discos. Pode ser numa sala cheia de amigos, todos conversando e bebendo, com o som em toda altura. Ou sozinho em casa, trancado no quarto de adolescente, com o som infelizmente baixo para não atrair a ira parental. Na casa dos amigos, em mudez reverente, absorvendo com avidez aquele vinil importado que talvez seja a única cópia existente no país. Na cama com a namorada, curtindo aquele som.

E outra: a música que a gente ouve enquanto escreve.

Romances contemporâneos trazem muitas vezes uma lista do tipo: “Este livro foi escrito ao som de New Order, Cocteau Twins, Electric Light Orchestra, Joe Zawinul e Nina Simone”. Tipo isso.

Escrever ao som de música é produzir artificialmente em si mesmo um estado de espírito previsível e controlável. Cada música injeta um sentimento diferente em nossa maneira de compor as frases, ajeitar as idéias, formular um ritmo. Ou então simplesmente fornece “um astral”, “um clima”, uma energia informe que ferve nos neurônios; é possível escutar Iron Maiden e usar essa energia para escrever haikais zen-budistas, desde que você tenha um transformador.

Uma coisa é escrever ouvindo Rolling Stones, outra coisa é ouvindo Tom Jobim.

E outra coisa é escutar Erik Satie, cujas peças curtas para piano estão entre as coisas mais “exquisitamente” agradáveis que conheço. Como essas peças têm centenas de interpretações pianísticas em centenas de coletâneas, fica difícil citar “um álbum” específico. Mas eu considero para o presente efeito qualquer álbum que contenha as Gymnopédies, as Gnossiennes, as Sarabandes, os Sports et Divertissements e por aí vai.

São a trilha sonora de muita coisa que escrevi de madrugada.

Gymnopédies:

Gnossiennes:



Meu primeiro contato com essa música foi através do “Blood, Sweat & Tears”, que no seu disco de 1968 gravou uma faixa das "Gymnopédies" de Satie. Depois, quando fui morar em Salvador, trabalhando no Clube de Cinema da Bahia, que funcionava nas instalações do ICBA, acompanhei a montagem de uma exposição de Bené Fonteles que tinha Satie na trilha sonora. Por força do expediente eu passava a tarde e a noite escutando aquilo, fragmentariamente, e pensando, armaria, que coisa linda.

Satie (1866-1925) é um miniaturista musical, criando pequenos bonsais de harmonia levemente dissonante que (dizem os estudiosos) influenciaram grandemente a geração de Debussy, com o qual ele teve uma amizade de idas e vindas. Satie era um excêntrico, um amalucado, um sujeito fora-de-esquadro cujas atitudes absurdistas e declarações inexplicáveis acabaram muitas vezes dificultando sua aceitação no pomposo e solene meio musical francês da virada do século.



Ele costumava acompanhar suas peças para piano com pequenos textos poéticos. No conjunto Sports et Divertissements (1914), cada faixa tem um poeminha:

O FOGO DE ARTIFÍCIO
Como está escuro!
Oh! Um rojão! Um rojão todo azul!
Todos se admiram.
Um velho enlouquece.
O buquê!

***

O POLVO
O polvo está dentro de sua toca.
Brinca com um caranguejo.
Engole-o e engasga.
Apavorado, pisoteia seus próprios pés.
Bebe um copo de água salgada.
Isso faz-lhe grande bem, e clareia suas idéias.

***

O BANHO DE MAR
O mar é imenso, senhora.
Em todo caso, é bem profundo.
Não sente no fundo. É muito úmido.
Eis que chegam minhas velhas amigas, as ondas. Estão cheia de água.
– A senhora está toda molhada!
Sim, senhor.

Há um vinil da pianista Cordélia Canabrava Arruda com estas peças (Fermata, 1981), além de La Piège de la Meduse (1913), Sonneries de la Rose+Croix (1892), com uma bela capa dupla trazendo todos estes poeminhas, ilustrados.



Não se pode compreender a obra musical de Satie sem pensar no contexto geral da Paris de sua época, onde a cada cinco anos uma revolução estética abalava o mundo: o impressionismo, o fauvismo, o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo... Satie (segundo a boa biografia de Rollo Myers) foi um precursor disso tudo. Suas inovações musicais foram retomadas depois por compositores mais populares ou mais respeitados do que ele.



O filme Entr’Acte (1924) de René Clair mostra Satie (com seu obrigatório terno, chapéu coco e guarda-chuva) e o pintor Francis Picabia, na abertura, dando enormes saltos em câmera lenta e preparando um canhão para disparar sobre Paris.

Entr’Acte, abertura:

O tom anarco-surrealista deste clássico do cinema mudo (depois sonorizado com a música dele) tem tudo a ver com os pequenos happenings que o compositor apreciava. A noite de estréia de seu balé Folga (“Rêlache”) fez o público dar de cara com o teatro fechado e uma placa indicando que o teatro estava mesmo de folga.

Tristan Tzara, Jean Cocteau, Man Ray, Picabia e outros faziam parte do seu círculo de amizades, e para eles deviam parecer muito naturais textos como as Memórias de Um Amnésico, fragmentos meio surrealistas e satíricos que ele publicava de vez em quando nas revistas literárias.

Satie era maluco, era um autista, era um desorientado? Há um caso famoso em que propuseram a Stravinsky um trabalho remunerado, mas o compositor cobrou um preço muito  alto. O produtor pensou então em Satie, e fez-lhe a proposta, só que num valor bem menor. Satie ficou ofendidíssimo por alguém lhe oferecer tanto dinheiro para compor uma peça, e só aceitou o trabalho quando o pagamento foi reduzido a uma soma insignificante.


(Satie, por Santiago Rossignol)

Quando Satie morreu, seu amigo Darius Milhaud foi uma das primeiras pessoas a entrar no quarto onde ele vivia, num subúrbio distante. Encontraram ali dois pianos (um em cima do outro), sem molas e sem cordas; oito ternos não-usados, intactos, ainda na caixa; duzentos guarda-chuvas; o chão coberto de camisas que ele usava uma vez e jogava fora. Não havia água corrente nem aquecimento. Os lençóis da cama estavam enegrecidos porque não haviam sido trocados em vinte anos. Estavam costurados às cobertas num complicado arranjo cheio de garrafas vazias, que ele enchia de água quente à noite.

Não sei analisar musicalmente a obra de Satie, mas as palavras que associo a ela são delicadeza, miniatura, perfeição, dissonância, imprevisibilidade, distanciamento. Já ouvi um maestro dizer que Chopin é o “Roberto Carlos” da música para piano. Se for assim, então Satie é o Tom Zé.

“Quando eu era jovem, me diziam: Você vai ver, quando tiver cinquenta anos. Pois bem: estou com cinquenta anos, e não vi nada ainda.” (Satie)