quarta-feira, 18 de maio de 2022

4824) Movimento Armorial 50 anos (18.5.2022)



(ilustração: Eduardo Azevedo)


O Movimento Armorial, criado por Ariano Suassuna, está completando 50 anos de existência, e em sua homenagem o Centro Cultural Banco do Brasil produziu uma exposição que foi inaugurada em Belo Horizonte, está atualmente no Rio de Janeiro, e no segundo semestre deverá seguir para São Paulo e Brasília.
 
A exposição é vasta e cobre as áreas em que o Movimento Armorial atuou: teatro, música, literatura, artes plásticas, cinema, televisão... Falta alguma coisa? Talvez, porque foi uma estética que se espalhou por todos esses lados, a partir da visão que o próprio Ariano tinha da arte e especialmente da chamada arte popular.
 
Ariano Suassuna via no folheto de cordel a síntese dessa estética. O folheto é visto tradicionalmente como uma espécie de “besouro que não podia voar, mas voa”, um livrinho que não parece livro, não parece nada, mas acaba cumprindo sua função. Começou a ser produzido em massa no Nordeste a partir da década de 1890, e vendeu muitos milhões de poemas impressos nas décadas seguintes.
 
Vendeu (isto é o mais importante) para milhões de pessoas que não tinham acesso a livrarias nem dinheiro para comprar livros, mas que gostavam de histórias, gostavam de versos, gostavam de cantigas, de piadas, de comédias e tragédias.
 
Criou-se assim a Literatura de Cordel nordestina, que Ariano preferia chamar Romanceiro Popular Nordestino, destacando o fato de que o mais importante ali eram os poemas, e não os livrinhos onde eles vinham impressos.
 
Sem que isto, é claro, desmerecesse os livrinhos, uma tradição que já era européia e portuguesa, mas que aqui no Brasil ganhou fisionomia própria.



Ariano via nesses folhetos a convergência de várias artes. A poesia, porque o folheto de cordel é sempre em verso, composto em estrofes de forma fixa, geralmente a sextilha, a septilha e a décima (com 6, 7, ou 10 linhas).
 
Além da poesia havia a música, porque o folheto é cantado na feira para chamar a atenção dos compradores. Existem centenas de toadas melódicas que coincidem exatamente com o formato das estrofes dos folhetos, de modo que cada folheteiro é capaz de pegar um folheto que nunca viu e encaixar nele uma melodia perfeita e pre-existente.
 
E havia também a literatura, no sentido da arte milenar de contar histórias. Grande parte do cordel consiste em narrativas, historinhas, aventuras, tragédias, comédias... Isto se soma aos folhetos descritivos, retóricos, propagandísticos; soma-se às reconstituições das “pelejas” dos cantadores ou das “discussões” de personagens do povo. Mas o cordel é maciçamente um universo onde se contam histórias de entretenimento.
 
Sem esquecer as artes plásticas, porque a partir de certa altura o folheto nordestino começou a ser ilustrado com xilogravuras na capa. Gravuras toscas, mas que com o passar do tempo foram se aprimorando e revelando grandes artistas da goiva e da madeira: J. Borges, Marcelo Soares, Stênio Diniz, Abraão Batista, Dila e tantos outros.
 
E a arte do folheto incorpora também o teatro, porque o folheteiro, no ato de cantar o folheto na calçada da feira, vira um teatro de um homem só, enunciando a narração distanciada, depois assumindo o papel e a voz do dragão ameaçador, da mocinha ameaçada, do cavaleiro valente, do rei magnânimo, do vizir astucioso... Cada personagem é cantado ou recitado com voz diferente, dando aos espectadores, em cada dez ou quinze minutos em que o folheteiro faz amostra de um livrinho, um pequeno esquete teatral onde o ator único se torna quase brechtiano em seu controle narrativo e percepção atenta do que ocorre ao redor.


A Exposição “Movimento Armorial 50 Anos” tem curadoria de Denise Mattar, produção de Regina Godoy, expografia e arquitetura de Guilherme Isnard, identidade visual de Ricardo Gouveia de Melo.
 
A consultoria geral da exposição é de dois amigos meus que são além de tudo as minhas fontes para quando eu preciso saber de alguma coisa relacionada à obra de Ariano Suassuna e dos artistas armoriais. Manuel Dantas Suassuna é filho de Ariano e depois da morte do pai passou a gerir as atividades relativas à sua obra. Carlos Newton Júnior trabalhou durante muitos anos com Ariano, tem o que é certamente o maior arquivo de documentos, manuscritos e referências da obra do dramaturgo, e (esperançosamente) encontrará tempo para escrever a primeira grande biografia do autor da Compadecida.
 
Há algumas coisas que eu gostaria de destacar na exposição.
 
Uma delas é a presença do Ariano pintor, o Ariano desenhista, ou artista plástico, tema que Carlos Newton já destacou numerosas vezes em artigos e palestras. Ariano não apenas escrevia, como inventou de sua cabeça uma nova forma de arte que ele denominou de “iluminogravura”, uma mistura das “iluminuras” dos manuscritos medievais com as “gravuras” em geral, principalmente as xilogravuras nordestinas.


Ele produziu então essa série de trabalhos, aqui expostos, em que ele copiava um soneto seu com caligrafia cursiva (a letra de Ariano é inconfundível), e criava em torno dele uma floresta de símbolos, desenhados e pintados: monstros, estrelas, formas extraídas da “Pedra do Ingá” e outros sítios de inscrições rupestres, símbolos alquímicos (penso eu), astrológicos...
 
São trabalhos realizados principalmente (se não me engano) na década de 1980, e é possível, ao acompanhar uma parede cheia desses quadros, perceber o começo tateante e depois a firmeza gradual que o artista foi adquirindo na composição e execução de sua figuras hieráticas, emblemas estáticos que aos nossos olhos podem lembrar as figuras de um mural egípcio. Ou os elementos heráldicos de um brasão. Ou o arranjo descontínuo e meio enigmático das imagens de um “rébus” charadístico...
 
Também é importante ressaltar as presenças dos artistas mais variados que produziram obras dentro da estética armorial: Gilvan Samico, Zélia Suassuna, Romero de Andrade Lima, Aluísio Braga, Francisco Brennand... Cada um deles com uma história pessoal e uma estética bem sua, mas incorporando-se mesmo que brevemente ao movimento, como é o caso de Brennand, grande amigo de Ariano, e autor dos figurinos da primeira versão cinematográfica do Auto da Compadecida (1970).
 
A exposição não esgota o movimento armorial, nem poderia, por tantas ramificações e influências que ele produziu. Embora centrada na obra do criador do movimento, tem espaço suficiente para ilustrar, principalmente para os que não conhecem bem o ambiente cultural da Paraíba e Pernambuco, fontes primárias da inspiração de Ariano Suassuna, um pequeno repertório das influências que moldaram a sua arte. Assim é que temos salas dedicadas aos folhetos de cordel, ao maracatu urbano e rural, ao cavalo marinho...

Num texto em que explicava as origens e as características do Movimento Armorial, Ariano Suassuna fez a seguinte comparação:

 ...(a)os esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. (...)  (Armorial era aquilo que) brilhava em esmaltes puros, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim. (...) Descobri que o nome “armorial” servia, ainda, para qualificar os “cantares” do Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados, como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa música barroca do século XVIII.

(Ariano Suassuna, O movimento armorial