quarta-feira, 30 de maio de 2018

4352) Traduzindo títulos (30.5.2018)





De vez em quando a gente acaba se pondo no lugar de um tradutor que recebe a tarefa de traduzir o título de um filme estrangeiro.

“Tradutor”, claro, no sentido mais amplo do termo. Imagino que quem toma essa decisão final é um funcionário graduado da distribuidora. Não é o mesmo pobre-diabo a quem cabe criar as legendas em português com os diálogos do filme. (Uma das tarefas mais ingratas e mal remuneradas do Museu de Horrores que é a indústria cultural.)

Penso, por exemplo, no cara que ia distribuir um filme intitulado Some Like it Hot. Ele não precisava de dicionário para entender. A frase é boa, mas servia para título? Não servia. Ele deve ter feito um esforço para imaginar (o filme é de 1959) a fachada iluminada de um cinema de rua brasileiro, e o título: “Alguns gostam disso quente”.

Ele pensou, remexeu a frase, trocou palavras, procurou manter-se próximo do sentido, e produziu: Quanto Mais Quente Melhor. Um nome com mais ritmo, terminando numa sílaba forte, contendo uma fórmula comparativa de fácil entendimento. Nota dez para ele.

Costumamos mangar dos títulos nada-a-ver, como traduzir Blow Up por Depois Daquele Beijo, ou traduzir Persona por Quando Duas Mulheres Pecam. Mas algumas mudanças são obrigatórias.

Vi uma vez um distribuidor comentando um filme de Sidney Pollack. É a história de um rapaz que trabalha como voluntário num centro de ajuda telefônica. Uma mulher liga dizendo que tomou pílulas para se matar. Ele fica conversando com ela, mantendo-a lúcida, enquanto a equipe rastreia a ligação e corre para salvar a vida dela.

O filme se chama The Slender Thread. “Quem vai sair de casa para ver um filme chamado A Linha Fina?”, dizia o distribuidor. A linha fina é o fio telefônico, claro. O filme se chamou no Brasil Uma Vida em Suspense. Nada original – mas muito mais sensato.

A maior parte dessas traduções tenta, visivelmente, se manter próxima da intenção do original, mas produzindo uma fórmula diferente, mais chamativa.

O filme de Jean-Luc Godard Pierrot Le Fou poderia ser traduzido aqui como Pierrot o Louco, ou Pedrinho o Louco como ficou em Portugal. Alguma alma caridosa resolveu chamá-lo, sei lá por quê, de O Demônio das Onze Horas, um desses casos de invenção nada-a-ver que acaba sendo bem-vinda.

O título tem que ter-a-ver com o filme, e tem que atrair o público, mesmo que seja apenas pelo inusitado de sua forma.

Nos anos 1960 apareceu uma moda efêmera de títulos longos, como o da comédia maluca de Ken Annakin, Esses Homens Maravilhosos e Suas Máquinas Voadoras, ou Como Voei de Londres a Paris em 25 Horas e 11 Minutos (“Those Magnificent Men in Their Flying Machines, or How I Flew from London to Paris in 25 Hours 11 Minutes”), a comédia de humor negro apocalíptico de Stanley Kubrick Dr. Fantástico, ou Como Aprendi a Não me Preocupar e a Amar a Bomba (“Dr. Strangelove, or How I Learned To Stop Worrying and Love the Bomb”), etc.

Foi  uma década engraçada essa, em termos de nomes compridos. Isso pipocou no cinema, na literatura, nos nomes de bandas de rock.

Digressão: o mesmo ocorreu na ficção científica. Isaac Asimov queixava-se, nos editoriais do seu Magazine, de que no tempo dele os contos de FC se intitulavam “Homecoming” ou “Nightfall” – e agora estavam aparecendo histórias com nomes tipo “The Doors of His Face, The Lamps of His Mouth” ou “Repent, Harlequin! Said the Ticktockman”.

No caso de um filme estrangeiro, é preciso manter em português algo do charme do título original, mas numa linguagem acessível ao público daqui, e de preferência sem apelar.

Um belo western de Anthony Mann, The Man From Laramie, tinha um título pouco chamativo (Laramie é uma cidade). Alguém resolveu chamá-lo de Um certo capitão Lockhart, o nome do personagem principal. Anos depois, uma adaptação de Érico Verissimo para o cinema acabou se chamando Um certo capitão Rodrigo, em função do personagem Rodrigo Cambará, e fiquei imaginando se este formato de título não teria sido extraído do livro de Érico, que até hoje imperdoavelmente não li.

Um filme de crime, por exemplo, precisa deixar claro esse apelo, o que não é o caso de um título como “Dupla Indenização”, Double Indemnity, o clássico escrito por Raymond Chandler e dirigido por Billy Wilder. No Brasil o filme se chamou “Pacto de Sangue”, que reproduz com fidelidade o elemento básico do enredo e tem o melodrama necessário ao gênero.

Em outros casos, isso se perde. Um grande filme-de-assalto é O Segredo das Jóias, dirigido por John Huston, mas eu preferiria muito mais que ele se chamasse A Selva do Asfalto, “The Asphalt Jungle” no original.

Filmes que no original trazem apenas um nome próprio pedem algo mais animado na tradução. Se você vê um cartaz de um ótimo thriller de Don Siegel, com Walter Matthau, sob o título de Charley Varrick talvez não fique muito entusiasmado, mas O Homem Que Burlou a Máfia certamente fez mais ingressos serem vendidos.

Deve ter sido esse raciocínio que inspirou uma famosa manobra de Expedito, o escolado distribuidor de filmes de Campina Grande, que funcionava ali perto da Feirinha de Frutas, na rua Peregrino de Carvalho. Ele levou Édipo Rei de Pasolini para exibir no sertão paraibano, e o filme naufragou na bilheteria. Expedito não contou conversa: refez os cartazes com o título Édipo, o Homem Que Matou o Rei, e o cinema num instante encheu.

Questionado, ele levava as mãos à cabeça:

– Mas eu estou mentindo, por acaso?! Ele matou o rei, minha gente, esse é o detalhe mais importante da história! 







domingo, 27 de maio de 2018

4351) Dez álbuns: 6 - "Violas de Ouro" (27.5.2018)




Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

Para ouvir o disco inteiro:

Este elepê não é apenas um dos discos que eu mais escutei: é o primeiro disco profissional em cuja criação e produção eu estive envolvido, com 26 anos de idade. Só não assisti à gravação, que foi feita no Recife. Mas trabalhei com Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio durante o período de criação das faixas de Violas de Ouro (1976), em Campina Grande, dando palpites no repertório, sugerindo rimas ou versos em duas ou três faixas escritas por último.

Aqui, cabe uma explicação. É um disco de repentistas. Mas os discos dos repentistas raramente são gravados com versos de improviso. Todo mundo prefere escrever antes e decorar, o que transforma o disco num álbum de canções comuns. O ambiente frio e isolado de um estúdio não é favorável ao improviso; por outro lado, gravar ao vivo num ambiente real faria cair a qualidade sonora da gravação, coisa que nenhum produtor fonográfico admite.

Em disco, é muito melhor um verso ruim “bem gravado” do que um verso bom “mal gravado”. Esta é a lógica do mercado fonográfico.

Os discos de cantadores acabam valendo como um testemunho do seu talento poético em geral, não do seu talento como improvisadores.

Eu morava num pequeno apartamento ao lado da Rodoviária Velha, e encontrava com Ivanildo quase todos os dias. Geraldo morava no Ceará. As faixas foram combinadas pelos dois poetas via carta e telefone. Eles me pediram para fazer uma assessoria e para escrever o texto da contracapa.

Em algum lugar das minhas pastas, devo ter ainda os manuscritos originais de faixas que até hoje sei de cor, como o martelo magnífico que abre o Lado 2, “O Sertão em Carne e Alma”:

Ivanildo:
Uma tarde de inverno no sertão
é um grande espetác’lo pra quem passa
serra envolta nos tufos de fumaça
água forte rolando pelo chão;
o estrondo da máq’na do trovão
entre as nuvens do céu arroxeado;
o raio caindo assombra o gado
atolado por entre as lamas pretas,
rosna o vento fazendo piruetas
nas espigas de milho do roçado.

Geraldo:
No sertão quando o chão está molhado
corre água nas veias de um regato
pula a onça da furna, corre o gato,
um cavalo galopa estropiado;
um garrote atravessa o rio a nado
uma cobra se acoa com cancão;
a cantiga saudosa do carão
faz lembrar o lugar que eu fui nascido,
entre as telas do filme colorido
que Deus fez pro cinema do sertão.

Geraldo Amâncio chegou a Campina poucos dias antes da gravação, e foi lá no meu apartamento que ele preparou seus versos para as últimas faixas a ficarem prontas. Como Ivanildo já tinha escrito as suas, ele teria que escrever seus próprios versos intercalados ao do parceiro, obrigatoriamente seguindo as rimas já existentes.

É uma coisa engraçada o repente. Você vê um sujeito que é capaz de cantar em vinte segundos uma estrofe formidável, que acabou de inventar. E sentado na mesa, de caneta Bic em punho, o mesmo poeta leva cinco ou dez minutos (o mesmo tempo que eu levo) para redigir uma estrofe do mesmo tamanho. Por que?

– Em grande parte é a viola, – comentava Geraldo rabiscando um pouco, tomando um gole de suco, rabiscando um pouco mais. – A vibração musical da viola, de encontro ao peito, nos deixa também vibrando, é uma coisa que se reflete no corpo e na alma. E a platéia, também. Cantar de viola numa sala vazia também não é a mesma coisa. Tem que ter o povo olhando, esperando.


Violas de Ouro se abre com uma bela faixa em sextilhas filosóficas, “Deus, o Homem e a Natureza”:

Geraldo:
Deus a ninguém deu a chave
desse edifício perfeito:
mar gigante, terra enorme,
céu infindo, bosque estreito,
fez tudo e não veio ainda
dizer por que tinha feito.

Ivanildo:
Do rio, estuário e leito
da fruta, o tempo e a vez;
ano longo, dia curto,
semana, estação e mês;
ele fez tudo, mas pode
desfazer tudo que fez.

Segue-se uma série de glosas homenageando “O mensageiro da fé / o nosso Frei Damião”, depois um galope beira-mar percorrendo os Estados brasileiros, e depois “A Vida de Cada Um”, um quadrão mineiro, cujo assunto eu havia sugerido: “Já que é obrigatório rimar em ...EIRO toda vez, por causa do refrão, vocês podiam fazer uns versos comparando as profissões que terminam assim: pedreiro, toureiro, engenheiro, carpinteiro...”.

Ivanildo escreveu primeiro sua parte, e depois Geraldo encaixou seus versos nos versos dele.

O Lado 2 tem o martelo agalopado que já citei, e em seguida vem “Deu Tudo Ao Contrário”, um Mourão Voltado cheio de episódios cômicos, com um personagem meio trapalhão. O Mourão Voltado, para quem não conhece, é um dos gêneros dialogados da cantoria, em que cada poeta diz uma linha, alternadamente, o que exige (quando é feito de improviso) rapidez e pontaria.

Vem em seguida uma faixa sobre história do Brasil, “Revoltas Brasileiras”. Era uma faixa meio destinada ao público estudantil. Em plena ditadura militar, sempre valia a pena lembrar episódios em que alguém se revoltava contra uma autoridade qualquer.

No texto da contracapa eu digo, erradamente, que o estilo usado, “Pai Tomás, Preto Velho e Pai Vicente”, foi criado pela dupla. Na verdade, me parece hoje que o criador desse gênero foi José Alves Sobrinho, e o que a dupla fez (se não me engano de novo) foi registrá-lo em disco pela primeira vez.

“Revoltas Brasileiras” foi uma das últimas faixas a ficarem prontas, na véspera da gravação, e me recordo de ter ajudado nas estrofes relativas à Revolta de Quebra-Quilos e à Revolução Praieira (eu tinha acabado de ver o filme O Casal, de Daniel Filho, onde o personagem de José Wilker é fã de Pedro Ivo.)

O disco se fecha com um “gabinete” com o tema “Giro Pelo Mundo” enumerando países e culturas, seguindo o modelo do galope beira-mar “Turismo Pelo Brasil”. Enumeração de nomes de lugares e de paisagens é uma tradição na poesia popular. Nas culturas orais, versos rimados e metrificados sempre serviram de truque mnemônico para decorar mapas inteiros, atlas inteiros, quando não se podia desenhar em papel.

Um livro brilhante sobre isto é O Rastro dos Cantos (“Songlines”) de Bruce Chatwin, onde o viajante inglês descobre os “mapas cantados” dos aborígenes australianos. Veja aqui:


O Gabinete é um dos muitos gêneros antigos da cantoria que na década de 1970 foram resgatados e revividos pela geração de Ivanildo Vila Nova e seus companheiros. Lembro de Ivanildo comentando, naquela época:

– Cantador tá ficando preguiçoso. Se deixar, eles passam a noite toda cantando sextilha, que dá menos trabalho. Só cantam outra coisa se o povo pedir, e o povo não pede porque não conhece. A gente tem quarenta, cinquenta gêneros maravilhosos que os cantadores usavam e faziam coisas impressionantes. Por que não trazer isso de volta?

Quando Ivanildo e Geraldo gravaram Violas de Ouro, estávamos em plena efervescência dos Congressos de Violeiros de Campina Grande, uma época que descrevi em meu romance Bandeira Sobrinho – Uma Vidas e Alguns Versos (Ed. Imeph, Fortaleza, 2017). 



Havia poucos LPs de cantadores: lembro de um de José Gonçalves (não lembro com quem), um de Moacir Laurentino e Sebastião da Silva. Se não me engano, um LP famoso de Otacílio Batista e Diniz Vitorino é contemporâneo de Violas de Ouro.

É o primeiro disco na carreira dos poetas, que depois disso lançaram uma grande quantidade de elepês, livros, folhetos, CDs. Para os admiradores da dupla, mostra ambos em plena decolagem para se tornarem dois dos maiores nomes da Cantoria em todos os tempos. Para mim, lembra uma época de muito verso e muita boemia, e lembra o carinho e a paciência de dois poetas de verdade com as perguntas constantes de um cabeludo que gostava de verso mais do que qualquer outra coisa.









sexta-feira, 25 de maio de 2018

4350) O cosmos absurdista de Robert Sheckley (25.5.2018)



Já escrevi neste blog (principalmente aqui) sobre os momentos philipkdickianos, aqueles quando a gente tem a impressão de que a película a que chamamos realidade se rompeu, e o Mundo Como Ele Verdadeiramente É revelou-se através da fenda, da luminosa rachadura.

Em Philip K. Dick, o sujeito vê uma barraca de refrigerantes sumir à sua frente e ser substituída por um papelzinho onde está registrado: barraca de refrigerantes. Ou então pega num objeto e o contato deste o transporta fugazmente para um universo paralelo onde quem ganhou a guerra foi outro país.

Falando no jargão atual: os momentos philipkdickianos são o que hoje chamamos de “erros da Matrix”, com sua imensa variedade.

Algumas décadas atrás eu ainda tinha lido pouca coisa de P. K. Dick, e a nossa turma chamava esses momentos de momentos sheckleyanos. O universo de Robert Sheckley (1928-2005) é assim, afeito a essas rupturas.

Dimension of Miracles, seu livro publicado em 1968, é um romance curto, episódico, que não lembra um romance denso de FC levada a sério, e sim aquelas novelas de peripécias sucessivas como as Viagens de Gulliver ou o Cândido de Voltaire ou o Asno de Ouro de Apuleio.

Um norte-americano médio chamado Carmody é abduzido por alienígenas de seu apartamento em Nova York e transportado para um ambiente futurista e megalomaníaco, repleto de estruturas vertiginosas. Carmody é uma espécie de James Stewart filosofante, um "Average Joe"qualquer, longe de ser um sujeito brilhante ou um erudito, mas com certa fluência conceitual. E esse sujeito de repente é jogado numa situação que exige o máximo de seu raio racionalizante.


O Mensageiro que o arrebatou pergunta-lhe, quando chegam o local de destino:

– Gostou do nosso Centro Galáctico?
– É bem impressionante – disse Carmody.
– Imagino que sim, – disse o Mensageiro, desdenhosamente. – Foi construído de propósito para ser impressionante. Pelo meu gosto pessoal, é parecido demais com qualquer outro centro galáctico. A arquitetura, observe bem, é exatamente o mais previsível: neo-ciclopeano, um estilo preferido por governos em geral, despido de imperativos estéticos, planejado unicamente para impressionar o contribuinte.

Carmody foi trazido ali para receber um prêmio. Uma espécie de Loteria Galáctica que ele (depois de muito debate filosófico consigo mesmo) resolve aceitar. Dão-lhe o prêmio, que resulta ser um objeto falante. Carmody pede para voltar para a Terra. Os funcionários da loteria galáctica começam um jogo de empurra meio teatro-do-absurdo húngaro, cada um dizendo que o traslado de retorno dos premiados não compete ao seu departamento.

Carmody percebe que ninguém vai levá-lo de volta para a Terra muito facilmente, e talvez pela primeira vez na vida ele crie coragem para tomar uma série de decisões.


(Sheckley)

Sheckley é um entre muitos autores que conseguem fazer um humor absurdista porque em tese não se sentem obrigados a obedecer a nenhuma regra da ficção tradicional. A diversão deles todos é usar o banco-de-dados da grande cultura com a mesma sem-cerimônia e intimidade afetiva com que a grande cultura usa as mitologias de outros povos, por exemplo.

Carmody, como qualquer personagem sheckleyano, é jogado nas situações mais absurdistas e de algum modo consegue convencer a si mesmo que não está doido, e de que aquilo que acabou de acontecer não é impossível.

Como em quadrinhos de ficção científica, Moebius, por exemplo, para a gente ver que aquilo passa longe de um romance que quer ser “levado a sério”. Seu rigor é o da fábula, não o dos enredos aristotélicos. Se o personagem está numa cidade estranha e sofre a perseguição de um inimigo implacável, que importa o formato do planeta, a língua que se fala?


Carmody sai de universo afora, recorrendo a “agenciadores” cósmicos que prometem-lhe um retorno seguro através de algum mecanismo claudicante. Carmody negocia, paga, perde, ganha, salta de universo em universo buscando sua Terra de origem. Tem algo de Métal Hurlant essa sucessão de aventuras, que nos induz a imaginar uma sucessão de ilustradores diferentes, a cada novo universo onde vai parar o instável herói.

Carmody é um herói sheckleyano típico, tanto quando são heróis dickianos típicos Joe Chip ou Ragle Gumm. Aquele sujeito rigorosamente mediano, mas com certa leitura, que de repente se flagra catapultado para o absurdo e o caos...

Carmody é um personagem dos anos 1960 no quanto que fala, questiona, propõe, desmente, conserta, confirma. É um bom argumentador quando está falando consigo mesmo e sopesando hipóteses, mas o Prêmio lhe responde à altura, e se revela uma criatura morfomutante, e de uma maneira bem quadrinhesca. Num capítulo é um guarda-chuva, em outro é uma cobra enroscada no pescoço de Carmody.

O Prêmio debate filosoficamente com Carmody, chamando-o de mon vieux. É um avatarzinho que mais adiante revela-se um pouco Google, um pouco Robô Simpático, um pouco avatar cibernético capaz de um bom nível de replicação verbal. (Poderiam ser chamados de Treplicantes, porque tudo com eles tem réplica e tréplica.)

Se alguém está achando esse universo parecido não apenas com Philip K. Dick mas também com Douglas Adams, tem toda razão. Numa entrevista à revista Locus (setembro 2003) Sheckley disse que Douglas Adams (que veio bem depois) sempre citava a obra dele como uma referência. De fato, se Sheckley é primo de Dick, é uma espécie de tio de Adams, que tem seu humor próprio e soube dar sua versão britânica ao gênero Peripécias Rocambolescas Em Estranhos Habitats. (Com discussão filosófica, seja em que nível for.)

O livro de Sheckley pode ser comparado de modo interessante com The Star Kings (Guerra na Galáxia, em Portugal) de Edmond Hamilton. Em ambos um barnabé novaiorquino é arrebatado para viagens estonteantes e perigosas por outros planetas. No livro de Hamilton (também traduzido como O Rei das Estrelas, Ed. Sabiá) ele ganha a batalha contra um império galáctico e retorna para seu escritoriozinho onde aguarda ser promovido a chefe de seção.


The Star Kings, com seu protagonista sheckleyano John Gordon, é de 1949. Uma daquelas aventuras entusiasmantes de arregalar os olhos do leitor adolescente, com algum mumbo-jumbo para explicar como funciona a maquinaria extraterrestre, inclusive o Disruptor, a arma proibida, o Canhão do Fim do Mundo. É uma space-opera de vinte anos atrás contada com uma imaginação visual e uma segurança literária que os autores de 1929 estavam começando a desenvolver. O filme parece um sonho com final doce-amargo.

Dimension of Miracles (1968) não parece um sonho, e sim uma viagem de LSD onde no primeiro umbral transposto o Viajante percebe que o Mundo Real no qual acreditara até então era uma mera contrafação, um simulacro grotesco, apenas um entre milhões de mundos possíveis, e nem de longe o mais interessante.


Sheckley já teve algumas obras traduzidas no Brasil. A que li na época em que foi lançada é esta, Inalterado Por Mãos Humanas, da Brasiliense (1970). É seu livro de estréia, de 1954. Tem ótimas histórias, inclusive “Seventh Victim”, que foi filmada por Elio Petri como A Décima Vítima.


 






terça-feira, 22 de maio de 2018

4349) Dez álbuns: 5 - "Rain Dogs" (22.5.2018)






Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

Corria o ano de 1985, 86 e eu cheguei, certa noite, no quarto-e-sala de Lenine e Anna, lá no Jardim Botânico, onde estava uma turma sentada ouvindo um disco com a atenção de quem escuta um holograma de Hari Seldon.

Não era: era Rain Dogs, o disco de um desconhecido chamado Tom Waits, que Alex Madureira advertiu logo de cara: “É a sua cara, B. Tavares”. E era.

Link para o disco:

Eu tenho uma relação engraçada com o rock, porque para mim o rock seria uma espécie de síntese entre as festas de rua de New Orleans e a tecnologia da Nasa, ou seja, depois de uma fagulha como essa não há fogo que não pegue. Fausto Fawcett costuma dizer que por dentro de todo Jetson existe um Flintstone, e para mim o rock é isso, distorção elétrica e bombos tribais.

Tom Waits tinha uma dimensão a mais, um viés numa direção harmônica e cançonetista que sem deixar de ser tipicamente norte-americana me toca como uma coisa muito próxima de certa música brasileira. É rock, mas é um rock da Lapa, um rock Praça Tiradentes, um rock com perfume de lupanar, não para grandes multidões, mas para pequenos salões com pista de dança e palquinho mambembe.

Boa parte das canções de Rain Dogs são acompanhadas por uma espécie de bandinha roufenha, desafinada, com sopros, cordas e sanfonas, como se fosse aquilo uma meia-dúzia de músicos que tocam pela bebida e não por um cachê, e que depois de acabada a bebida naquele botequim eles descem do palco, enfileirados e cambaleantes, e saem à rua, às 3 da madrugada, sob neve e vento frio, com um Hermeto Paschoal meio catacego a guiá-los, e lá vão eles tocando, bradando impropérios, aos escorregões, dando a volta ao quarteirão e se encaminhando por sensibilidade telepática rumo ao penúltimo puteiro ainda aberto.

E a guitarra. A guitarra está para o rock assim como a espaçonave está para a ficção científica. É uma espécie de senha, de password, uma espécie de “pra entrar aqui tem que saber o que é isso”, mas muita gente confunde os sinais e pensa que vai abrir uma porta para um lugar onde só existem guitarras (ou um lugar onde só existem espaçonaves).

Isso é um erro. O rock não é uma instrumentação. O rock é um estado de espírito. (Não, por favor, não me deixem repetir essa platitude tão constrangedora. Esse clichê é a coisa menos rock do mundo. Quem “é um estado de espírito” é a canção romântico-agrícola do Brasil Central.)

O rock é um estado do corpo, uma espécie de corrente elétrica que se projeta pela medula espinhal e se ramifica por onde quer que haja neurônios e outras partículas equivalentes.

Daí que me parece um desperdício total não utilizar no rock instrumentos tão cheios de possibilidades quanto o bombardino, o xilofone, as maracas, o trombone de vara, o bandoneon, o clavicórdio, o berimbau-de-boca, o cajón, o clarinete, a tuba... E vou parar por aqui, vocês já captaram a idéia; senão este parágrafo vai ficar parecendo aqueles trechos do “Cara de Bronze” onde Guimarães Rosa despejou miliduzentos nomes de ervas e arbustos mineiros.

Daí que uma das minhas primeiras bandas de rock preferidas tenha sido The Band – em parte pelo fortíssimo trio guitarra-baixo-bateria formado por Robbie Robertson, Rick Danko e Levon Helm, mas em grande parte também pelas iluminuras sonoras proporcionadas pelos sopros e teclados de Garth Hudson e Richard Manuel.

Esse tempero timbrístico se enriqueceu com o rock jazzeado do Blood, Sweat & Tears, mas o crescimento da música soul nos anos 1970 foi puxando tudo cada vez mais para uma música eletrificada para grandes bailes. E não era isso. Eu queria ouvir uma coisa meio cabaré berlinense nos anos 1930, uma coisa com pegada roqueira mas com uma injeção poderosa de music-hall, de café concerto. E letras de expressionismo poético informado pelo Dadaísmo dos anos 1910 e pelo pop dos anos 1950. Um rock que tivesse sido alimentado com canções de Brecht & Kurt Weill.

Tom Waits, na primeira audição de Rain Dogs, me trouxe de volta essas sonoridades, e me agasalhou quentinho o coração com aquela surpreendente voz de um Louis Armstrong redneck.

Tinha guitarra? Tinha sim senhor. Um tal de Marc Ribot que, sabiamente, em vez de tentar emular a ululação lancinante de um Clapton ou um Jimmy Page, ficava pontilhando umas notinhas dissonantes, secas, cristalinas. Uns solos-de-acompanhamento iguaizinhos um bordado feito no camarim por uma cantora meio doidona cujos pontos acompanham a linha riscada sem nunca se cravar em cima dela mas sem perder-lhe o rumo.

Rain Dogs tem uma porção de ritmos que eu mal e mal reconheço – diria até que tem polca, tem mazurca, tem valsa? Tem rock?

Algumas canções são desabafos truculentos, canção de marinheiro esbravejante, como “Cemetery Polka”, “Singapore”, “Rain Dogs”. Outras são semiboleros à luz-negra no Recife Velho, como “Jockey Full of Bourbon”, pra balançar os quadris, ou “Hang Down Your Head”, pra fungar agarradinho. Ou então uma marcha fúnebre em dia de chuva para um garimpeiro de Serra Pelada, como “Diamonds & Gold”.

Sim, tem uma seresta feita por um violonista e um sanfoneiro ao pé de uma escada-de-incêndio numa madrugada num beco onde ninguém escuta, como “Time”. Tem um monólogo noturno de Philip Marlowe, fumando à janela do escritório enquanto espera o telefone tocar (“9th & Hennepin”).

É uma poética suja de sarjeta, com olho para tipos sociais captados com um nome-de-guerra e dois traços meio caricaturais, como nos versos de Aldir Blanc ou Itamar Assumpção. Imagens que seriam surrealismo puro se não evocassem de cara os quadrinhos urbanos-FC de Alan Moore ou Warren Ellis. Waits é um poeta que bebeu tanto quanto Dylan nas fontes brechtianas da decadência metropolitana, não a decadência dândi dos granfinos que cruzam a madrugada em busca de sensações novas, mas a dos boêmios de bolso furado para quem a madrugada é um globo-da-morte onde basta estar ligado e seguir o fluxo, e tudo vai dar certo.

E voltando àquele capítulo inicial: na época acabamos formando (Lenine, Lula Queiroga, Ivan Santos e eu) uma banda conceitual intitulada “Wolf Gang” – pouco tempo antes, Amadeus de Milos Forman tinha sido o grande sucesso no cinema, e todo mundo danou-se a escutar Mozart.

Passamos meses ensaiando, nunca subimos num palco (falei que era uma banda conceitual), mas meia dúzia de músicas foram compostas, entre elas “Mais Além” (gravada depois por Lenine, além de Ney Matogrosso e Rhana). Que de início pretendia ser um plágio de “Clap Hands” de Waits, mas depois, como todo rock, acabou encontrando um caminho próprio. Pra vocês verem as coisas como são.











sexta-feira, 18 de maio de 2018

4348) Como foi feito "2001" (18.5.2018)



A Editora Todavia acaba de lançar o livro de Michael Benson 2001, Uma Odisséia no Espaço – Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a Criação de Uma Obra-Prima, um calhamaço de quase 500 páginas contando como foi a concepção, preparação, filmagem e lançamento do filme, que está completando 50 anos. (O lançamento oficial foi em abril de 1968.)

Sem ter lido os muitos outros livros que há sobre o tema, posso dizer que o de Benson tira inúmeras dúvidas que eu ainda tinha sobre aspectos técnicos ou narrativos do filme. 2001 é cercado de lendas, boatos, especulações. Benson se baseia largamente em depoimentos das pessoas que trabalharam no filme e que eram próximas de Kubrick e Clarke.

2001 é um desses filmes-problema para sempre. Rejeitadíssimo pelos executivos da MGM (como Benson narra nos capítulos finais), acabou se tornando um sucesso e se firmando aos poucos em nossa memória cultural.

O problema é que quem o detestou de início não foram só os “executivos do estúdio”, os quais, por tradição, só conseguem entender uma coisa depois de ouvi-la um milhão de vezes ou depois que ela lhes rende um milhão de dólares – o que acontecer primeiro.

Muita gente do mundo da FC (escritores, críticos) detestou o filme, por motivos óbvios. Era longo, era lento, era sem interação humana, era sem aventura, era sem diálogos, era sem pessoas. (Algumas centenas de resenhas coincidiram no clichê de que “o personagem mais humano do filme é o computador”, o que é plausível.)

Sim, é o filme mais gélido de Kubrick, um dos mais frios diretores da História; ganha de todos. Dr. Fantástico foi considerado um “filme sem sentimentos” porque mangava do holocausto nuclear. Mas era um filme picaresco, movimentado, escrachado, biruta, cheio de humor negro e de sarcasmo. Era um filme vibrante de calor humano, comparado com a glacialidade impassível de 2001.

Laranja Mecânica é um filme corroído pelo sadismo (há um viés sádico na pessoa de Kubrick, seu autoritarismo em voz baixa, sua implacabilidade, seu não-aceitar-um-não-como-resposta). Mas a gente se comove com o destino das vítimas espancadas, e em grande medida também com o destino do espancador, quando cai nas mãos dos Cidadãos de Bem.

E assim por diante. 2001 nos promete uma aventura, e em vez disso nos entrega uma visita guiada a uma instalação industrial. Kubrick parece nos provar que quanto mais queremos abarcar com a mente a perspectiva do Universo, mais insignificantes são as formigas humanas que o habitam.

Nos seus cenários gigantescos caminham personagens tão gelados e vazios como icebergs sem a parte submersa. Heywood Floyd, Bowman, Poole, todos parecem consistir apenas na sua parte visível. Não têm subtexto, não têm história prévia. São personagens de papelão, iguais às suas próprias imagens reproduzidas nos displays do saguão do cinema.

Para recriar aquele mundo, dezenas de jovens técnicos consumiram três ou quatro anos de sua mocidades trabalhando em turnos de até dezesseis horas por dia, para satisfazer o perfeccionismo do diretor, para acompanhar suas hesitações e mudanças de rota. E lhe são eternamente gratos por isso; o livro mostra;). 2001 é provavelmente o filme mais nerd de todos os tempos, feito por nerds e para nerds.

Ele parece sugerir que uma pessoa vista através da lente de uma câmera torna-se tão pouco humana quanto uma que é vista através da mira telescópica de um sniper.

Kubrick é um diretor fascinante porque tinha o misterioso carisma dos insensíveis, capaz de exigir dos outros sacrifícios espantosos para resolver um problema e no fim dizer apenas: “Obrigado, valeu.” Não era o carisma caloroso e exuberante de um Fellini ou de um Spielberg. Ele parecia mais com Jean-Luc Godard, uma silhueta imóvel no set, óculos escuros, braços cruzados, tirando o cigarro da boca e dizendo apenas: “Não ficou bom. Vamos fazer outro take.”

Um tema muito fecundo para um ensaio seria comparar os dois filmes mais gélidos da história da FC: 2001 de Kubrick e Alphaville de Godard. Diferentíssimos e parecidíssimos.

A obsessão monolítica do diretor em busca da qualidade o fez recriar a indústria cinematográfica dentro de sua filmografia. Cada filme dele se encerrava com uma meia dúzia de invenções técnicas notáveis, feitas no calor da produção para resolver os problemas que ele se propunha. (Vamos relevar o fato de que às vezes um técnico inventava uma coisa e ele registrava a invenção para si, com a proteção da lei.)

Michael Benson entrevistou (ou teve acesso a entrevistas prévias de) praticamente todo mundo que trabalhou no filme. Alguns traços da personalidade de Kubrick emergem reiteradamente. Sua capacidade de apostar em assistentes jovens e entusiasmados, dando-lhes missões de responsabilidade enorme. Sua curiosidade infinita, insaciável, que fazia dele o ouvinte ideal para quem tivesse uma idéia mirabolante para um gadget. Seu ciúme profissional (“você está trabalhando só para mim, não pode trabalhar com ninguém mais”).

E também sua capacidade de aceitar idéias. Como quando o ator Gary Lockwood lhe sugere (num impasse de roteiro) a cena em que os dois astronautas se trancam numa cápsula e tramam o desligamento do computador, mas mesmo assim este fica sabendo de tudo. (O detalhe da leitura labial foi sugerido depois por Victor Lyndon, produtor associado, ao entrar por acaso numa reunião onde todos tentavam resolver esse detalhe.)

Arthur C. Clarke teve a relação mais profunda, constante e tumultuosa de todas. Vendo o relato de tudo que Kubrick aprontou com ele (inclusive negando-lhe qualquer percentagem na bilheteria do filme), a gente fica pensando que Sir Arthur deveria ser canonizado pelo Vaticano. Ele passou anos trabalhando numa narração em off, e Kubrick o iludiu até a noite da estréia, quando ele viu o filme pela primeira vez e constatou que dois anos de trabalho insano tinham ido para a cesta de papéis.

E aqui pra nós – Kubrick estava certo. O filme ficou muito melhor assim, sem explicações tipo (texto de Clarke, pág. 407):

Eles eram filhos da floresta – coletores de sementes, frutos e bagas. Mas a floresta estava morrendo, derrotada por século de seca, e eles estavam morrendo com ela. Nesse novo mundo de planícies abertas e arbustos atrofiados, a busca por alimento era uma batalha infinita, sem possibilidades de vitória.

Ou seja, Clarke estava fazendo o que eu mesmo talvez fizesse: tentando explicar o filme de dentro do próprio filme, como se fosse um documentário da BBC.

Kubrick, na primeira cena do filme, levou o público para a planície dos homens-macacos e o largou ali, durante 25 minutos que parecem séculos, sem dizer uma palavra.

Do ponto de vista da literatura de FC, 2001 não inventou nada, não avançou nada. O livro é ótimo, mas explora territórios já conquistados antes, inclusive pelo próprio Clarke. A linha evolutiva macaco-homem-superhomem, espinha dorsal do enredo, foi vista com nariz torcido pelos escritores da New Wave norte-americana e britânica, que já estava plantando em 1968 as raízes do movimento cyberpunk.

Clarke é um apolíneo, um crente devoto nas vantagens intrínsecas da ciência, no potencial criativo do ser humano, na grandiosidade metafísica do Universo. Beleza. Mas 2001 surgiu numa época em que o sexo-drogas-rock-and-roll estava tomando conta da FC. Era um pouco como trazer um afresco de Michelangelo para uma exposição de pintores dadaístas e cubistas.

O filme se impôs pela esmagadora perfeição técnica, ainda não superada. Pela audácia metafísica num gênero de cinema que era (e hoje ainda é, mais do que nunca) um território de fantasias adolescentes.

O livro se impôs por ser capaz de preencher com significado uma estrutura audiovisual tão impactante. E porque Clarke sempre foi um dos personagens mais queridos pela comunidade da FC literária.

Eu diria que 2001 tem uma importância muito maior na história do cinema (como indústria, mercado, linguagem, cultura) do que na história da ficção científica.









terça-feira, 15 de maio de 2018

4347) Literatura e perversão (15.5.2018)



Vou logo avisando que no presente artigo as expressões “pornografia” e “perversão sexual” estarão sendo empregadas sem a menor intenção pejorativa.  Considero a literatura pornográfica um gênero literário tão válido quanto qualquer outro, e as perversões fazem parte, em graus variados, da vida sexual tanto da maioria quanto da maioria das minorias.

O que é pornografia?  Os críticos tentam distinguir entre uma pornografia “propriamente dita” e a pornografia com ambições literárias, como certas obras de Georges Bataille, Pierre Louys, Henry Miller, etc.  A única distinção que acho é que na pornografia-propriamente-dita o único objetivo é excitar.  Na pornografia literária, as cenas de excitação são entremeadas com narrativas, dramatizações, enredo, desenvolvimento de personagens, discussão de idéias, etc., por mais “gráficas”, “explícitas” que sejam as cenas de sexo.

Ou seja, a pornografia literária é um romance como qualquer outro onde acontecem cenas de sexo “tórridas”, descritas graficamente. Como as coisas são na vida real. Na maior parte dos outros livros, usam-se subterfúgios: “Foram para a alcova e apagaram as luzes. Na manhã seguinte...”.

O critério para distinguir os dois é o fato de que as obras ditas “literárias” contêm algo que os aficionados da pornografia propriamente dita consideravam encheção de lingüiça.  Contém literatura. Em salas de exibição de filme pornô, já vi a reação das platéias diante de filmes pornô-chique tipo Emmanuelle, impacientes diante das longas cenas de conversa, de viagens, de jantares elegantes: “Vamo lá, porra!  Vim aqui pra ver foda!” 

A pornografia é uma literatura pervertida, não porque mostre cenas explícitas de sexo, mas porque é uma literatura obcecada, com idéia fixa, uma literatura que mostra somente isso.  O leitor quer ver somente isso, e recusa com veemência qualquer outra coisa, não importa o quê. 

Ele veio ao filme (ou comprou o livro, a revista) apenas para ver isso, para ver cenas que o excitem, e qualquer cena realizada com outro objetivo lhe parece uma enganação, uma venda de gato por lebre, uma perda de tempo e de dinheiro.

Curiosamente, não é apenas a literatura pornográfica que cultiva esta atitude.  A maioria das literaturas de gênero também o faz.  A literatura de gênero se caracteriza por um conjunto de convenções onde determinados elementos são obrigatórios. No caso do western, aventuras numa ambientação histórico-geográfica. No romance policial clássico, um crime que precisa ser resolvido (e o autor não deve perder tempo com “historinha de amor”, discussão de problemas sociais, etc). E assim por diante.

Podemos também ver nos gêneros as convenções de origem, que deram origem à criação do gênero, e as convenções secundárias, que resultaram da evolução histórica do próprio gênero. 

No caso do western, a convenção de origem é a ambientação histórico-geográfica numa época e numa região específicas dos EUA.  As convenções secundárias são os temas, situações e personagens que foram se cristalizando ao longo de décadas: o xerife que enfrenta bandidos mais numerosos; o pistoleiro solitário; o cerco dos índios aos carroções; o duelo frente a frente para ver quem é mais rápido no gatilho... São uma espécie de figuras de linguagem que crescem no interior do gênero, e que começam a ser aceitas tacitamente pelo público, e mesmo aguardadas com expectativa.

Existem leitores inveterados de westerns que querem apenas acompanhar a trama, e se aborrecem se as digressões históricas e o aprofundamento de personagens se tornar muito forte dentro do livro. 

O mesmo ocorre com leitores de romances detetivescos: muitos autores da Era Clássica do Romance Policial desaconselhavam o aprofundamento psicológico dos personagens ou as preocupações estilísticas, porque afastam o autor da função principal, que é o puzzle criminoso. 

O mesmo se dá com a ficção científica, onde muitos autores e críticos também desaconselham as extrapolações “literárias”, devendo a narrativa se concentrar nos aspectos ciencificcionais da história.

Sempre que se publicam “decálogo das regras do gênero X”, esse aspecto infalivelmente aparece. As famosas “guidelines” das revistas profissionais norte-americanas e inglesas sempre voltam a esse ponto, aconselhando o escritor novato: não perca seu tempo contando coisas que não sejam caracteristicamente do gênero. Vá direto ao ponto. O leitor não quer perder tempo, quer ver o que já espera que vai ver.

Estas atitudes reproduzem de modo muito semelhante a atitude do leitor de pornografia, que quer ver apenas a descrição gráfica de atos sexuais e se impacienta com qualquer coisa que se afaste disso.

É uma concentração obsessiva num único aspecto da história, e isso tem a ver com as perversões sexuais, que são (de modo genérico) uma concentração obsessiva num único aspecto do sexo.  O fetichismo dos pés, o BDSM (bondage-domination-sado-masoquista), o voyeurismo, tudo isto são facetas da sexualidade que a maioria das pessoas ditas normais cultiva em certa medida. Em alguns casos, no entanto, se tornam perversões exclusivas.  A única maneira de conseguir excitação e prazer.

Quando o voyeur só consegue sentir prazer através do voyeurismo, ele nega toda a variedade possível do ato erótico para se concentrar num único aspecto.  Qualquer outra coisa é insuficiente para dar-lhe prazer, para despertar seu interesse.  Tem-se a impressão de que diante de tudo o mais ele dirá: “Chega, não me interessa, nada disso me interessa – vamos à única coisa que realmente importa.”

É uma atitude muito parecida com a do aficionado pela literatura de gênero, ou mesmo pela literatura mainstream, que recusa-se a absorver qualquer mistura de experiências, e exige que a literatura se concentre numa área muito limitada de convenções específicas.  As que ele aprendeu como sendo “a maneira certa de fazer literatura”. Ou a maneira certa de fazer “a literatura que eu gosto”.

Assim como o consumidor de pornografia, ele é um leitor pervertido. Quer ver apenas uma coisa, e recusa com veemência o que considera “conversa jogada fora”.












sábado, 12 de maio de 2018

4346) O mundo dos clones (12.5.2018)



Evoluir é deixar de ser. Numa transformação ganhamos algumas coisas, que naquele momento nos parecem o grande salto transcendental, e vamos perdendo outras cuja ausência a princípio não faz falta, mas que aos poucos vão mostrando o quanto eram silenciosamente importantes.

H. G. Wells tem uma explicação bastante pragmática para isto no capítulo 4 de A Máquina do Tempo (1895), quando o Viajante do Tempo contempla do alto as verdes colinas do futuro. Ele foi parar num mundo que parece a imagem de desktop do Windows XP, habitado por uma espécie de hippies louros, infantis e puros, os Elois.

O Viajante raciocina que grande parte do esforço científico humano é para diminuir as asperezas e os riscos da vida, torná-la segura, tranquila, agradável. Ao fim dos confrontos com as dificuldades do mundo, cada geração que surge está menos equipada para enfrentar problemas. Porque foi para poupá-los de enfrentar dificuldades que os pais aceitaram enfrentar tantas. Não teria sido preciso.

Os Elois do livro acabam se revelando ainda mais ingênuos do que ele imaginava então, mas o Viajante tem um bom argumento histórico nesse exemplo. É uma linha entrópica que lembra uma pouco aquela frase tradicional sobre tantas famílias ilustres: “Pai rico, filho nobre, neto pobre”.

A primeira geração é a dos que saem da favela e constroem um império do nada. A segunda, filha destes, é a que terá o projeto e o desafio de manter o império.  Quando isso não é muito a sua praia, é possível que a terceira geração não cresça no interior de um império, mas de uma derrocada.

Nem precisamos chegar ao ano 802.701 para  ver eses sintomas (e Wellls decerto teria exemplos ou paralelos londrinos na ponta da língua, se a gente lhe perguntasse). Os psicólogos recentes têm usado a expressão Geração Floco de Neve para designar um conjunto de jovens atuais excessivamente sensíveis, meticulosos, capazes de se magoar ou se revoltar por muito pouco.

Dizem eles que há três variantes dessa fragilidade: 1) Superproteção; crianças que foram excessivamente cuidadas e não puderam desenvolver algumas qualidades de autonomia. 2) O senso do Eu: um individualismo muito grande, dificuldade em entender o ponto de vista de outras pessoas. 3) Impressão de catástrofe: pessoas que acham o tempo inteiro que algo terrível vai acontecer e destruir seu mundo.

São jovens de hoje, criados em suas bolhas sociais e cibernéticas. Os games são um sucedâneo importante para essa escassez de oferta de aventuras em carne e osso. Os games, contudo, só levam até um certo ponto, e dali não passam. São iguais aos livros, que também só nos levam até um certo ponto, e dali não passam.

Esse “ponto” que se deve ultrapassar é o ponto da vida, de um conjunto de situações que (ao contrário do game ou do livro) não está sob nosso controle e pode nos afetar de forma grave.

Os Eloi de 2018 são chamados “Flocos de Neve” pela sua fragilidade, por serem algo que está a um risco de desfazer-se. E isso me trouxe à lembrança um livro que eu tinha interrompido há anos e agora li até o fim: Where Late the Sweet Birds Sang (1976), da recentemente falecida Kate Wilhelm.


Esse livro ganhou prêmios importantes como o Hugo e o Locus. É a história pós-apocalíptica sobre uma família rica no vale de Shenandoah, na Virginia, que consegue sobreviver a um conflito nuclear isolando-se nas montanhas onde tem suas terras e reproduzindo-se por clonagem.

O livro tem vários enredos sucessivos, mas na parte 3, “At the Still Point”, brota uma crise entre os clones. Os clones de Kate Wilhelm são meio que ligados numa corrente telepática, são uma psi-colmeia (uma hive-mind). Clonados de um “Harry” ou de uma “Susan” original, p.ex., são chamados “os harrys” e “as susans”: uma meia dúzia de rapazes idênticos ou de moças iguaizinhas que só andam juntos, que falam entre si o tempo inteiro, que não têm segredos, que não podem ser separados desse grupo sem passar por uma crise psíquica que pode ser fatal.

A primeira expedição que deixa a fazenda após o Armageddon (é a Parte 2 do livro, “Shenandoah”) começa a ter problemas mentais à medida que os membros se afastam de seu grupo de origem. Alguns, no retorno, ficaram insanos. Outros, como Molly, adquirem uma personalidade própria; aos vinte anos de idade surge nela uma personalidade que é só dela, não é compartilhada com suas gêmeas telepatas. Ela se torna uma outsider.

Molly vem a ter às escondidas um filho, Mark (numa época de esterilidade galopante, daí os clones) que ao crescer se torna, na Parte 3, o condutor da ação. Mark cresce como um marginal, uma espécie de Mogli ou Tarzan, esperto, safo, capaz de sobreviver sozinho no mato fechado ou num pântano radioativo. Os clones da sua idade são incapazes de penetrar cem metros no mato sem perder a direção.

Sua ascendência sobre os clones em geral é porque ele é capaz de ser original, diferente, imprevisível. Os clones, porém, executam com primor o que aprendem a fazer, mas são incapazes de ter uma iniciativa. Num momento de emergência, não sabem inventar uma solução, não entendem uma instrução que nunca receberam.

E são todos iguaizinhos. E não conseguem pensar por si. Mark garoto constrói um boneco de neve e alguns dos meninos não conseguem, nem a pau, enxergar ali um boneco antropomorfo. Veem apenas um monte de neve com alguns objetos cravados.


E Barry, um dos cientistas responáveis pelo processo da clonagem, reflete:

A neve foi soprada para longe, e ele ficou matutando na individualidade de cada floco de neve. Como milhões de outros antes dele, pensou, boquiabertos ante a complexidade da natureza. Pensou de repente se Andrew, a pessoa que ele tinha sido aos trinta anos, já teria se sentido de boca aberta diante das complexidades da natureza.  Pensou se cada uma daquelas tantas crianças que tinham ali sabia que cada floco de neve era diferente de todos os outros. Se alguém dissesse a eles que era assim, e recebessem a ordem de examinar flocos de neve como parte do projeto, eles chegariam a perceber a diferença? Achariam aquilo a coisa mais maravilhosa do mundo? Ou o aceitariam como se fosse um lição a mais das muitas que eles tinham de aprender, e nesse caso eles a estudariam conscienciosamente, mas sem extrair daquilo nenhum tipo de prazer ou satisfação na aquisição de um conhecimento novo?

Esses clones futuristas do vale de Shenandoah me lembraram um conto de Greg Egan em que uma nave tripulada tenta sair do Sistema Solar mas a certa altura seus tripulantes começam a cair em coma súbito, um depois do outro. No final, descobrem que uma mente humana qualquer é apenas uma gota de um oceano mental, e que da órbita de Júpiter (por exemplo) em diante essa ligação se rompe... e a pessoa cai, como se alguém tivesse puxado uma tomada.

Greg Egan projeta para a humanidade inteira essa consciência telepática do seu conto; Kate Wilhelm a projeta de forma concentrada em suas gêmeas-clones, que compartilham quase uma “phone-call telepathy”.

Mark leva os amigos (sob supervisão) para a floresta na montanha, e larga-os ali. Indefesos, porque vivem mais absorvidos na bandalarga telepática de que desfrutam 24 horas por dia do que em registrar marcas em troncos de árvores ou pedras deslocadas para indicar por onde o grupo passou. Os clones correm para a zona de conforto que são seus gêmeos, suas gêmeas.

Quando Mark os deixa por si sós, todos endoidecem, não conseguem achar o caminho de volta nem as árvores que vieram obedientemente marcando durante a subida. Os clones de Kate Wilhelm acabam lembrando menos os telepatas malignos de A Aldeia dos Amaldiçoados (“The Midwich Cuckoos”, 1957), o livro de John Wyndham que já rendeu pelo menos dois filmes, do que os Elois árcades e ripongos do filme de George Pal, The Time Machine (1960).

O livro de Wilhelm mostra a relativa frieza dos clones ao tomar decisões de vida ou morte, e ao mesmo tempo a dependência quase insetóide que eles têm de um grupo. Como um graveto, que cai pra longe da fogueira e se apaga porque ficou sozinho. O livro mostra a contraposição entre o modo de pensar e de agir dos clones e o das pessoas “assimétricas”, por assim dizer, as de comportamento menos previsível.

É uma boa discussão sobre as camadas mentais superpostas que mantêm uma pessoa funcionando. Em certos momentos da Parte 2 do livro, “Shenandoah”, é possível perceber a noção de um Eu, de uma personalidade única, surgindo em Molly, a jovem desenhista da expedição.

Como se um “Eu” fosse uma excrescência, algo em princípio desnecessário à vida, e que só é preciso desenvolver dentro de nós mesmos quando estamos jogados no tropel do mundo, sem wifi para nossa telepatia genética, e alguma coisa precisa ser feita.

Os flocos de neve são tão únicos quanto uma mandala de Maldelbrot, mas se derretem com facilidade. Há uma boa expressão em inglês para dizer que o cara está mal: é dizer que ele tem as mesmas chances de sobrevivência de uma bola de neve no inferno. Que são as mesmas chances de uma obra de arte ou um simples boneco de neve não serem enxergados, mesmo sendo vistos – porque aquelas pessoas não foram formalmente ensinadas a enxergar assim.