quinta-feira, 20 de agosto de 2020

4612) O enigma de Kaspar Hauser (20.8.2020)



No filme O enigma de Kaspar Hauser (1974) de Werner Herzog, há uma cena em que um professor de filosofia vai testar a inteligência de Kaspar, o rapaz que passou a infância inteira trancado num porão, ficou meio retardado, mas de vez em quando tem uns lampejos de sagacidade que desconcertam as pessoas.
 
O professor propõe a Kaspar um problema tradicional da Lógica. Existem dois vilarejos próximos um dos outro. Os habitantes de “A” sempre falam a verdade, e os habitantes de “B” sempre mentem. Você encontra na estrada que conduz a ambos os vilarejos um homem. Tem direito a fazer uma pergunta, para saber a qual dos dois ele pertence. Qual é a pergunta?
 
O professor se dá o trabalho de exemplificar o problema a Kaspar. Se você perguntar se ele é do vilarejo “verdadista” e ele for, ele dirá “sim”; mas se for do vilarejo mentiroso, também dirá “sim”.
 
Se você perguntar se ele é do vilarejo “mentiroso” e ele for, dirá que não; e se ele for do vilarejo “verdadista”, também dirá que não.
 
Qual a pergunta, para você ter certeza se o cara está mentindo ou falando a verdade?
 
Kaspar diz: “Eu pergunto se ele é uma rã – sim ou não?”.


A cena está aqui (com legendas):
https://tinyurl.com/y66679kq
 
Essa cena geralmente é comentada pelas pessoas como uma “surra de sabedoria” de Kaspar em cima do professor. Claro. Todo mundo torce por Kaspar. Ele é o “idiot savant”, o cara cheio de deficiências mas que tem uma habilidade fenomenal, capaz de pegar desprevenido um adversário. É o time pequeno enfrentando o time rico e poderoso. Todo mundo torce por ele.
 
Eu não vejo assim. Para mim a cena mostra a incompatibilidade entre duas linguagens, dois sistemas de pensamento, nenhum dos quais necessariamente superior ao outro.
 
A linguagem da Lógica, proposta pelo professor, é uma linguagem altamente artificial, altamente formalizada, cheia de riquetriques e de não-podes, que busca uma exatidão 100% nas perguntas e nas respostas. Tem muito pouco a ver com a linguagem frouxa, maleável, imprecisa, contraditória, reversível, fractal e subjetiva que usamos no dia-a-dia, aqui neste texto, por exemplo.
 
A Civilização-como-a-conhecemos precisa das duas linguagens, porque sabe que cobrem áreas diferentes do conhecimento.
 
A linguagem do professor depende, para funcionar, de uma série de premissas. Que de um lado todo mundo minta. Que do outro lado todo mundo só fale a verdade. Que a pessoa seja encontrada no meio do caminho, e não na entrada do vilarejo (o que talvez indicasse a qual dos dois ela pertencia). Que você (o aluno) só tem direito a uma pergunta. (Por que só uma? Quem determinou?) Que seja uma pergunta (isso não tem no filme) que devia ser respondida com “sim” ou “não”.
 
O problema de Lógica é um problema que sempre vai se fechado numa escolha binária. A Lógica funciona em forma de fluxograma, uma coisa ensinada em nossos cursos de Administração, com aqueles balõezinhos: “Você sabe falar? SIM – NÃO”.



A Lógica procura estabelecer com certeza absoluta a direção de um raciocínio consecutivo (onde cada afirmação é consequência de uma que veio antes e causa de outra que deverá vir depois). E o raciocínio binário (sim ou não, certo ou errado, verdadeiro ou falso) é essencial para isso.
 
O problema é que tudo isso vale para a Lógica, mas a Lógica é um mero instrumento para nos ajudar quando nos deparamos com um problema verbal intransponível. Na vida real, basta perguntar se o cara é uma rã. A linguagem comum tem milhões de atalhos não-Lógicos mas tão eficientes quanto, porque é um saber conectado a outros repertórios de idéias (p. ex., a percepção visual, que distingue entre um ser humano e uma rã).
 
A cena torna-se cômica porque os professores de Lógica, querendo reduzir a aridez e a abstração das fórmulas, tentam “humanizar” os problemas. Fazemos isso na Matemática no 1º. Grau. Em vez de perguntar “15-8=?”, dizemos: “Joãozinho tinha 15 chocolates; ele deu 8 chocolates para Maria; com quantos chocolates ficou Joãozinho?...”
 
Humanizar problemas abstratos ajuda a trazê-los para a zona-de-conforto de nossa experiência humana. Ajuda a raciocinar em termos que já raciocinamos antes, com coisas que são importantes para nós, como a quantidade de chocolates que temos no bolso.
 
No entanto, trazer para essa região mental implica em contaminar um problema puramente aritmético com emoções psicológicas. O aluno levanta o braço e diz: “Mas por que motivo Joãozinho é obrigado a dar tantos chocolates para Maria? O que foi que Maria fez para ficar com quase a metade dos chocolates dele?...” 
 
É bobagem? Não, não é. O problema, que era apenas aritmético, foi contaminado por fatores humanos e ficou de porta aberta para esse tipo de questionamento.
 
Há um outro episódio que já vi algumas vezes nas redes sociais, vou citar de memória. Num instituto tecnológico de Israel, o professor coloca para seus alunos de Engenharia o seguinte prolema: “É preciso transportar 50 mil litros de sangue, ou de plasma sangíneo, para uma cidade a 100 km de distância. Qual o meio mais rápido, mais barato e mais seguro de fazer isso?”.
 
No outro dia, os alunos trazem soluções variadas: caminhões frigoríficos, tubulações pressurizadas e refrigeradas, frota de helicópteros, etc.
 
O professor diz: “Beleza. Mas não ocorreu a nenhum de vocês querer saber para que vão servir esse 50 mil litros de sangue?” Todo problema de engenharia, etc., costuma ter um lado humano e social que, aos olhos dos engenheiros, preocupados apenas com exatidão, precisão, economia e eficácia, passa completamente despercebido.
 
Esta é uma questão que diz respeito também à ficção científica.
 
Muitos romances de ficção científica surgem de um problema de Engenharia, Cosmologia, Astronáutica, Física, Química, etc., que ocorre ao escritor. Ele tenta equacionar e resolver esse problema sob a forma de uma história de ficção envolvendo Joãozinhos e Marias, para deixar o problema mais palatável e mais divertido para os leitores.
 
Ocorre que, acontecendo assim, o problema começa a se contaminar de elementos humanos, de reações humanas diante de tudo que acontece, de conflitos, rivalidades, imprevistas atitudes humanas. A lógica inflexível dos números, símbolos e operadores começa a ser erodida pela imprevisibilidade dos humanos usados como exemplos.
 
Esta é uma questão essencial da ficção científica hard, aquela que procura usar da maneira mais rigorosa possível os princípios do método científico, da lógica formal ou do saber estabelecido de qualquer ramo específico da ciência.
 
Voltando ao filme de Herzog: o professor tem suas razões, Kaspar tem as dele, o que está havendo ali é apenas um diálogo de surdos. O filme claramente faz do professor uma figura pedante e ridícula, com seu saber pomposo e empoeirado sendo derrotado pelo “pensamento selvagem” do herói. É um problema formulado na linguagem X e respondido na linguagem Y. Nenhuma das duas é invalidada por causa desse mal entendido.