quarta-feira, 6 de agosto de 2014

3571) Personagens de PK Dick (7.8.2014)



Philip K. Dick não foi apenas um grande autor de ficção científica, foi um dos grandes psicografistas do inconsciente coletivo dos EUA no tempo da Guerra Fria. Quando leio relatos históricos daquele tempo (que tinha como pano-de-fundo a Cortina de Ferro, a ameaça nuclear, a guerra de espionagem Oriente/Ocidente, a propaganda feroz de parte a parte) me sinto dentro de um romance de Dick. Agora mesmo, lendo um artigo sobre o espião duplo Kim Philby (o inglês que passou anos espionando para a URSS) fiquei imaginando como Dick o usaria num romance. (Não usou: quem usou foi Tim Powers, em Declare, de 2001, numa trama de horror cósmico.)  Seria algo parecido com seu livro O Homem Duplo (A Scanner Darkly), em que um agente da polícia passa meses investigando um viciado em drogas – e os dois são a mesma pessoa.

As paranóias de traição dos personagens de Dick têm três focos principais: 1) a esposa (seus protagonistas são quase invariavelmente masculinos, num casal em crise); 2) os colegas de trabalho; 3) o Governo.  Esses três círculos de convivência são uma fonte interminável de inquietação e desconfiança. O protagonista está sempre disposto a crer e a não crer. A possibilidade de estar sendo traído, iludido, investigado ou manipulado de alguma forma nunca se dissipa de sua mente. O personagem dickiano típico , por mais comum que seja, é sempre um sujeito inquisitivo, dado a teorizações, que está o tempo todo tecendo configurações e cenários paranóicos para explicar o que acontece ao seu redor.

Essas paranóias são tão vívidas e convincentes porque Dick era assim mesmo. Achava que estava sendo investigado, que o FBI lia sua correspondência e que arrombou sua casa certa vez. Ao se corresponder com o autor polonês Stanislaw Lem, que era seu fã (e chegava a dizer que Dick era o único autor da FC americana que merecia ser lido), acabou denunciando-o como agente da KGB, o que trouxe sérios problemas políticos para Lem e o deixou furioso.

O personagem dickiano é o americano comum da Guerra Fria. Em geral são caras de classe média, com problemas de classe média: conseguir (ou manter) um emprego, pagar dívidas, pedir dinheiro emprestado, conseguir uma promoção... Esse é o mundo dentro do qual a ruptura fantástica desaba de repente como uma torre gêmea. Dick tinha uma desconfiança instintiva dos ricos ou poderosos. Mesmo quando escolhia um deles para protagonista, como em Fluam, minhas lágrimas... ou Minority Report, era para logo despojá-lo do poder e reduzi-lo a um joão-ninguém lutando pela sobrevivência. Daí a enorme empatia despertada pelos seus livros, onde não há super heróis, nem sequer heróis.


3570) Os jovens milionários (6.8.2014)



A primeira Corrida do Ouro na Califórnia foi em meados do século 19, quando a descoberta de jazidas de ouro à flor do solo fez milhares de pessoas pegarem seus carroções e partirem para o Oeste; foi a Serra Pelada deles. A nova corrida do ouro não é feita de ouro e sim de silício. O Vale do Silício é o novo lugar onde rapazes ambiciosos podem ficar ricos do dia para a noite. O único problema é que, como diz a Bíblia, “são muitos os chamados e poucos os escolhidos”. Uma ótima matéria de Gideon Lewis-Kraus na revista Wired de maio (http://tinyurl.com/lvlfn8b) acompanha a saga da Boomtrain, uma empresazinha de dois rapazes que lutam para levantar um milhão de dólares e colocar no mercado um novo sistema de busca e seleção de vídeos.

Cinquenta e uma novas empresas de informática são criadas todo mês na região de San Francisco. Muitas querem ser o novo Google, o novo Facebook. Outras querem apenas crescer o bastante, atrair a atenção das grandes, e ser adquiridas. Isso gera o dilema nos seus criadores: ficar lutando mais 10 anos pensando em valer um bilhão de dólares, ou vender pela primeira oferta de 100 milhões que aparecer?  Vi muito tempo atrás um documentário sobre “os fracassados do vale de Silício”. Eram os caras que tinham percentagem numa empresa mixuruca e quando a empresa começou a crescer venderam essa percentagem por um bilhão de dólares. O problema é que a empresa era o Yahoo, o Google, a Microsoft, sei lá o quê. Um dos entrevistados, um cara de seus 40 anos, com a linda esposa no jardim deslumbrante de uma fantástica mansão, dizia: “Eu levo uma vida de príncipe, mas sempre que encontro um amigo ele me diz: Que pena que você jogou seu futuro pelo ralo, você podia ter hoje dez vezes mais.” E ele conclui: “Eu não preciso de dez vezes mais, mas não sei se digo isso só para me consolar.”

O capitalismo é alimentado fisicamente por tecnologia e dinheiro, mas ele é alimentado mentalmente pelo delírio quantitativo, a vertigem do número. Se você tem 100, você pode com esses 100 ganhar 200. Já que tem 200, por que não lutar para ter 400, uma coisa tão fácil?  E chegando aos 400, nada nos impede de chegar aos 800. É uma coisa parecida com encher um balão de soprar. Vai sempre haver um ponto em que a bolha pipoca e tudo vai pelos ares, mas enquanto a ilusão se mantém, você diz (como o viciado em droga): “Só mais este, e depois eu paro.”  Não para, ou melhor, é a bolha quem para, e aí você fica sem nada.

“Quer ser um jovem milionário?”  Todo mundo quer ser, e muitos conseguem. E muitos voltam à pindaíba porque ouviram a pergunta fatal, que vem depois: “Quer ser um jovem bilionário?”