quarta-feira, 17 de julho de 2019

4485) Quatro dias de Flip (17.7.2019)





Esta foi minha terceira ida à Flip, mas a primeira como convidado oficial. Estive lá no ano em que o homenageado foi Graciliano Ramos, e depois quando a homenageada foi Ana Cristina César.

A primeira ida me rendeu esta crônica, “Baleia na Flip”:


A Flip é criticada em alguns setores por ter um viés meio elitista – é um evento caro, numa cidade onde um prato com seis bolinhos de bacalhau custa 50 reais. “Uma bolha de intelectuais ricos”, dizem por aí. 

Verdade, mas essa bolha retangular se rompe quando a gente sai do Centro Histórico (que tem algo de Parque Temático Vintage-Futurista) e vai para a Paraty real, aquelas avenidas cheias de lotéricas, malharias, agências bancárias, sapatarias, postos de gasolina, açougues, mercadinhos, e botequins mainstream, com cerveja a preço de cerveja, tiragosto a preço de tiragosto.

É uma bolha permeável, cuja membrana fica a cinco minutos de caminhada.


Fora isso, me parece que a programação cultural está cada vez maior, mais variada e mais participativa. Mesmo com acesso livre à Tenda principal, foi o ano em que vi menos palestras, porque lá fora as oportunidades se multiplicam.

E outra coisa – muitos vão a passeio, eu vou a trabalho. Fiz duas mesas que me pareceram ótimas, a primeira sobre Literatura de Cordel, com Jarid Arraes e Sofia Nestrovski, e a segunda sobre Literatura Fantástica, com Mariana Enríquez e Rita Mattar. Sempre com a conversa fluindo bem, e público atento. Só tenho o que agradecer a todas elas.


Tive um almoço muito proveitoso com meus amigos da Companhia das Letras: Fernando Rinaldi, Marcelo Ferroni e Luara França, estes últimos parceiros antigos de vários projetos. E há mais idéias botando a cabeça na linha do horizonte.

Reencontrei amigos antigos, que não via há bastante tempo: Zuza Homem de Melo e Ercília, Lincoln Cunha e Giovana Damaceno, Juca Novaes (leia-se Festival de Avaré), Vladimir Carvalho e Lucila Garcez, Mônica Maia...

Troquei livros com o cordelista paraibano Paulo Cavalcanti, que com sua simpatia e seu chapéu de couro, à entrada da ponte, tornou-se parte da paisagem de Paraty. Gravei entrevistas para grupos de jovens que a cada ano me parecem mais jovens, e mais espertos.


Perdi muita coisa. Não vi algumas palestras que tinha muita vontade de ver: José Miguel Wisnik, Ailton Krenak & Zé Celso, Marilene Felinto, José Murilo de Carvalho... E os desconhecidos, claro – as novidades, as revelações, o primeiro encontro com uma voz e uma obra literária que daí em diante passam a fazer parte de nossas vidas.

Perdi a entrega do Prêmio Argos, na “Casa Fantástica”, cheia de amigos e conhecidos, mas fiquei feliz ao ler a crônica de Gerson Lodi-Ribeiro e ver que nosso fantástico continua fumegante como uma engrenagem steampunk. Perdi a palestra de Glenn Greenwald na Flipei, com toda a agitação e ameaça que a cercou, e que acabou sendo a principal faísca do choque de placas tectônicas por que o país está passando.


Perdi apresentações de amigos como Cátia de França e Chico César, lançamento de livro de José Teles. Não deu tempo de ir na casa dos poetas independentes, embora tenha tido breves encontros, sempre saborosos, com Mano Melo, Tavinho Paes, Marcelino Freire e outros.

Como já falei, fui a trabalho, e por conta de um projeto sobre Cordel que estou desenvolvendo, boa parte do meu tempo foi consumida, na sexta e no sábado, no espaço do cordel instalado na sede do Iphan em Paraty, na Praça da Matriz. Ali o tempo pára e a conversa nos arrebata numa espiral de risadas e rimas, com os irmãos Arievaldo e Klévisson Viana, Moreira de Acopiara, Severino Honorato, Dalinha Catunda, Anilda Figueiredo, Aninha Ferraz e tantos outros poetas.


A Flip é uma festa, sim, e como toda festa vale tanto pelo que ocorre no salão principal quanto pelo que se agita ao redor. Lembra o antigo e saudoso Festival de Areia paraibano, com as noites frias, a praça cheia de gente soprando bafo quente nas mãos e tomando cachaça pra esquentar, músicos de rua tocando forró ou jazz, grupos de gente-de-fora se cruzando incessantemente nas ruas, olhando com curiosidade cada placa, cada fachada, cada pedra do chão.

Foi oportuno, por parte da curadora Fernanda Diamant, escolher Euclides da Cunha como patrono. É um personagem que encarna, como poucos, as qualidades e os defeitos da nossa intelectualidade, dos nossos militares, dos nossos jornalistas, dos nossos homens de letras, dos nossos cidadãos, dos nossos cientistas.

Em sua palestra de abertura, Walnice Nogueira Galvão lembrou, e descreveu com detalhe, que as fake news não foram inventadas com a Internet, e que fervilharam também durante a campanha de Canudos, com dezenas de matérias pseudo-jornalísticas omitindo os massacres de gente indefesa e inventando uma suposta conspiração monarquista internacional que usaria Canudos para derrubar a República.


O Brasil ainda é o mesmo de Euclides, tanto o Brasil real quanto o Brasil oficial “caricato e burlesco” que Ariano Suassuna tanto citou (a imagem é de Machado de Assis). 

Os eventos literários nos servem de espelho, que alguns usam para retocar a aparência, e outros para procurar os sinais de mudança.

E como disse Euclides:

Se acaso uma alma se fotografasse
de sorte que, nos mesmos negativos,
a mesma luz pusesse em traços vivos
o nosso coração e a nossa face;

e os nossos ideais, e os mais cativos
de nossos sonhos... Se a emoção que nasce
em nós, também nas chapas se gravasse
mesmo em ligeiros traços fugitivos;

amigo! Tu terias com certeza
a mais completa e insólita surpresa
notando – deste grupo bem no meio –

que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
destes sujeitos é precisamente
o mais triste, o mais pálido, o mais feio.