terça-feira, 30 de maio de 2023

4947) "Editando a Editora": Maria Amélia Mello (30.5.2023)


 
Terminando de ler o livrinho bem cuidado e simpático da coleção “Editando o Editor”, da EdUsp. É uma coleção voltada para depoimentos autobiográficos de editores brasileiros, traçando sua trajetória, sua formação, e a sua atividade como editor de livros.
 
Em seu décimo número, a coleção mudou de nome para “Editando a Editora”... porque coube às autoras Marisa Midori Deaecto e Carolina Bednarek Sobral entrevistar a primeira mulher dessa seleção majoritariamente masculina.
 
Maria Amélia Mello é minha editora, e amiga desde que pus os pés para morar no Rio de Janeiro. Ou até antes disso, porque antes de alugar casa aqui pela primeira vez me lembro de ir visitar o Centro de Cultura Alternativa que ela dirigiu na RioArte (ela fala disso no livro), e de deixar ali meus cordeizinhos e provavelmente meu livro Sai do Meio Que Lá Vem o Filósofo (1980).  



(Maria Amélia Mello) 
 
Somos da mesma geração e não é de admirar tantas coincidências de filmes, músicas, leituras (ponha Cortázar, Campos de Carvalho...). Ela observa que desta geração em diante os cargos editoriais começaram a ser ocupados por pessoas que, como ela, vinham da área do Jornalismo. Comenta o susto que teve ao descobrir o quanto Frida Kahlo era famosa, e que o olho de um editor precisa se estender a todos os campos além das “Letras”:
 
Esta história demonstra que o editor tem que ser ousado, mas também muito atento, fazer as sinapses, as conexões entre tudo que está acontecendo na área cultural. (...) Quando entrei na [editora] Civilização [Brasileira], em 1978, havia pouco diálogo entre as áreas, os livros “apareciam” na minha mesa e ninguém sabia de onde saíam. Os editores vinham da Sociologia, História, Letras. Mas na década de 1990, na época de Frida Kahlo, havia muitos jornalistas migrando para o editorial. E jornalista é assim, tem agilidade, faz pauta, sabe quem pode escrever sobre um determinado tema, vai atrás de uma informação. Coisas que faltavam no mercado, para o qual a entrada dos jornalistas trouxe um novo fôlego. E uma curiosidade: a entrada de mulheres como editoras, em cargos de comando. (p. 123-124)
 
Eu sou principalmente um literato (poeta, contista, romancista) mas já trabalhei em jornal, estudei fugazmente num curso de Ciências Sociais, e sempre achei que o mercado editorial deveria servir a todos estes senhores. A Literatura é vista por uns como uma aristocracia do espírito, por outros como a prima pobre cuja fama se esgota na noite do coquetel. O(a) editor(a) tem que ter essa visão de perceber as diferentes frequências-de-onda de um livro de poesia e um tratado sociológico, de uma antologia de contos e uma biografia, de um romance e um livro de história do cinema. Não se pode tratar tudo isto com os mesmos modelos estatísticos, como se fossem creme dental ou cerveja.
 
Acho o olho jornalístico tão importante quanto o olho científico, o olho entretenimento, o olho show-business e muitos outros, porque em toda área existe a possibilidade de descobrir um livro novo, um livro bom, um livro que vai trazer uma nova voz, um novo enfoque. Não existe só a alta literatura. Existe o livro de boa qualidade, que não vai ser best-seller, mas que vende.
 
A presença de mulheres no mercado editorial é muito um fenômeno da nossa geração. Há muitas editoras (mulheres) que publicaram livros meus, e nesse “publicar” está incluído ler, avaliar, sugerir, mexer, questionar, fazer alertas, propor, dar forma final, divulgar. 

Posso estar esquecendo alguém, mas já tive livros meus editados por Andréa Mota (Pirata), Maria Emilia Bender (Brasiliense), Vivian Wyler (Rocco), Valéria Gauz (Biblioteca Nacional), Bia Bracher (34), Martha Ribas (Casa da Palavra), Clotilde Tavares (Engenho e Arte), Maria Amélia Mello (José Olympio), Renata Nakano (Casa da Palavra), Fernanda Cardoso (Casa da Palavra), Inez Koury (Bagaço), Lucinda Azevedo (Imeph), Sandra Abrano (Bandeirola)... Minha gratidão a todas, pela paciência e clarividência. 
 
Isto sem falar nas que me guiaram em mil outros trabalhos, como redator e tradutor. Algumas, em casas editoriais gigantes, outras em editoras da sala-de-visitas; não importa. 

E não se pense que não tive (e tenho) excelentes editores, talvez até mais numerosos. Far-lhes-ei a devida vênia no melhor momento.  São meus parceiros, eles e elas. Sempre que um leitor argumenta algo comigo nos termos de "Ah, mas o livro é seu", respondo: "O que é meu é o texto; o livro foi a editora que fez". O processo é sempre o mesmo: “isto aqui é bom, vale a pena gastar dinheiro para imprimir cópias numa gráfica e tentar vendê-las ao povo”. 

Existe um “olhar feminino”, um “radar feminino” na escolha e publicação de livros? É bem capaz, mas não me arrisco a defini-lo. Minha teoria básica é de que no plano literário tudo que um homem é capaz de pensar uma mulher também pode, e vice-versa. Para além disso, entram as histórias pessoais, as sensibilidades individuais, as leituras e experiências – que são sempre únicas, são só da pessoa. 



O bom é quando vem a encomenda, como no dia em que Maria Amélia me mandou um email pedindo um livro sobre Ariano Suassuna, que escrevi em dois meses. O ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007) não é um estudo aprofundado sobre o criador de Quaderna, mas me parece uma boa introdução ao universo variado e intenso que ele criou. 
 
Diz a editora:
 
Este “novo” editor participa das pautas, das vendas, do marketing, da divulgação, ou seja, de todo o processo. Nós fazemos, muitas vezes, até o preço do livro, pois quanto mais falamos em letras mais nos preocupamos com números. Esse diálogo é saudável, pois assim é possível encontrar o melhor momento para publicar um livro, lançando mão de ferramentas de outras áreas. Existe também a relação com sites, blogs, tecnologias, como as de printing on demand, que vêm ganhando espaço. Tudo para acertar mais nas escolhas, enxugar custos, evitar estoques e focar melhor. (p. 172-173) 
 
Eu tenho a sorte de poder publicar constantemente (um amigo meu diz que eu tenho mais títulos publicados do que exemplares vendidos). E sempre vejo no editor um parceiro de criação. O editor é o primeiro leitor de um livro, e mesmo que uma sugestão dele não seja aceita pelo autor, ela revela uma maneira-de-ler-aquilo para a qual o autor precisa estar atento. 
 
No fim das contas, o trabalho criativo de um editor é como o do antologista, função que exerço de vez em quando. É ficar atento para as coisas boas que aparecem ao longo das leituras, da vivência, das conversas. Perceber a qualidade e a novidade que há em cada uma, o toque diferente, relevante. Anotar muito, fazendo aproximações por diferentes associações de idéias (“isto aqui dá certo junto com aquilo”). Redescobrir coisas boas esquecidas; revelar coisas boas que acabaram de surgir. Compor, com obras alheias, uma vitrine capaz de revelar uma visão própria. 
 
Editar um livro é tratá-lo com mão de jardineiro para que ele floresça. (p. 172) 
 
 







sábado, 27 de maio de 2023

4946) Os virunduns e os mondegreens (27.5.2023)




Sérgio Rodrigues, jardineiro do idioma, publicou há pouco tempo um artigo (“Scooby-Doo dos sete mares”) sobre a importância do “virundum”, uma criação cultural que, tal como o futebol, não teve origem no Brasil mas foi devidamente digerida e reinventada. 
 
O “virundum” é o equivalente brasileiro do “mondegreen” norte-americano: a interpretação distorcida de um verso de música popular, gerando uma frase levemente absurda e em geral muito engraçada.
 
Já comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/06/1100-mondegreens-na-mpb-2492006.html
 
Li o artigo com certo atraso, porque não assino a Folha de São Paulo, e para ler os textos dos meus articulistas preferidos dependo sempre de uma alma caridosa que os copie e pregue nas paredes comunitárias de uma rede social qualquer. Viva o dazibao controlvê. 
 
Sérgio defende a importância do virundum como uma fonte inesgotável de prazer dadaísta e alegria poética: 
 
Sim, na terra em que brotou o clássico indiscutível "trocando de biquíni sem parar" (por "tocando B.B. King sem parar", verso da canção "Noite do Prazer", da banda Brylho), a produção de virundums é tão vasta quanto variada.
 
Há quem aprecie a precisão onomástica de "Meu filho Válter Gomes dos Santos/ que é o nome mais bonito" ("Pais e filhos", Legião Urbana) e quem prefira o clima lisérgico de "Ao sair do avião/ Judy pisou num ímã" ("Açaí", Djavan).
 
Os exemplos citados são muitos, e os vários que eu não conhecia romperam minha casca espessa de mau-humor matinal, e me fizeram soltar a gargalhada de quem reencontra o prazer de estar-no-mundo.
 
O “virundum”, registra Sérgio, foi criado pela turma do Pasquim para ironizar o “Ouviram do...” que inicia o nosso hino pátrio. É muito comum a gente ouvir uma música à distância, num rádio ou TV, nm ambiente ruidoso, e entender mal certos versos. Os psicólogos estudam há muito esse processo em que identificamos os sons mais pelo contexto do que pela escuta em si. Ao ouvir mal o que outra pessoa diz, nossa mente pensa algo como “se ele está falando de tal-e-tal assunto, essa palavra que não entendi deve ser X ou Y”. Vamos preenchendo com a opção mais lógica.
 
Quando estamos em país estrangeiro, conversando em outra língua, esse processo é turbinado o dia inteiro.
 
O que há de interessante na arte do virundum é que ela começou com erros involuntários e se transformou numa distorção proposital. Uma guerrilha poética dadaísta. Pessoas portadoras do gene neurótico do trocadilho dedicam-se a inventar por conta própria essas torções num versinho inocente e disponível. E na primeira oportunidade, numa roda de violão ou numa platéia de show, mandam seu virundum a plenos pulmões.
 
Por que?
 
Eu penso que um dos processos essenciais – na invenção poética; na criação artística em geral; mais amplamente ainda, no uso coletivo da linguagem; e quem sabe até no universo mais micro-amplo das sinapses neuroniais – é a possibilidade de dar sentidos diferentes ao mesmo conjunto de estímulos.

Os psicólogos usam como exemplo básico desta processo a imagem do cubo transparente, cujas quinas podem ser vistas mais próximas ou mais afastados do nosso olho, por uma decisão e um esforço consciente de nossa parte.


Claro que é importante haver algumas coisas que só podem ser lidas de uma única maneira, irredutivelmente. Isto é muito útil quando precisamos ter certeza absoluta sobre algo. A Ciência busca isso o tempo todo, num universo repleto de dados contraditórios, fugazes, heterogêneos, em-mudança-constante. A gente precisa poder de vez em quando se apegar a algo com um suspiro de alívio, de olhos fechados, cheios de confiança.

Mas justamente pelo fato de nossa percepção do Universo – e da Linguagem – ser assim, é importante sabermos lidar com as formas ambíguas, indefinidas, contraditórias, mutáveis, estatisticamente imprevisíveis. Porque o mundo é feito basicamente delas.
 
Como usar isso literariamente?


 
Isaac Asimov dizia que seus contos policiais da série “Black Widowers” se baseavam geralmente num detalhe: na história há algo que pode ser visto de duas maneiras, todo mundo vê do jeito errado, e seu detetive, Henry O Garçom, vê do jeito certo. 
 
Ser capaz de ouvir uma frase de duas maneiras é um exercício de imaginação, um exercício de uma função mental que nos obriga a atribuir um sentido, ou um segundo sentido, a alguma coisa. Como a pareidolia, que nos faz ver rostos humanos em formas aleatórias. 



(foto: Jeroen Schipper)
 
Vou recorrer ao meu lugar-comum de sempre, o Surrealismo. Salvador Dali empregava o método que ele chamava de “paranóia crítica” em seus quadros, criando imagens que podiam ser vistas de diferentes maneiras. 
 
Diz Dali em La Femme Visible, 1930 (citado em Maurice Nadeau, Histoire du Surréalisme, 1945, trad. BT):
 
Trata-se de especular com ardor sobre essa propriedade do devir ininterrupto de todo objeto sobre o qual se exerce a atividade paranóica, também chamada ‘atividade ultra-confusional’, que tem sua origem na idéia obsessiva. Esse devir ininterrupto permite ao paranóico, que o testemunha, considerar as próprias imagens do mundo exterior como instáveis e transitórias, para não dizer suspeitas, e ele tem o preocupante poder de permitir aos outros que verifiquem a realidade de sua impressão. 
 
O paranóico é alguém que impõe um excesso de interpretação a fatos banais. Às vezes bastam uma buzina de carro na rua e o barulho do elevador para ele imaginar que agentes da CIA ou da KGB estão se encaminhando para sua porta. 
 
Dali usa a consciência de que os fatos em si estão em mudança incessante (“devir ininterrupto”) e que cabe ao artista impor seu olhar, seu desejo, sua interpretação sobre esse torvelinho em perpétuo movimento. Apontar para uma nuvem e dizer: “Aquilo é um navio a vela”. 



(Salvador Dalí, “Slave Market with Disappearing Bust of Voltaire”, 1940; no Dali Museum, St. Petersburg, Florida)


É apenas a prática deliberada do processo que nos faz (como já me aconteceu) ver na parede um lambe-lambe da banda “Sorriso Maroto” e ler, de relance, “Sobrado Mardito”. 
 
Esse processo criativo, imaginativo, tem a mesma origem que o virundun, o mondegreen: a leitura errônea, proposital, de uma realidade que todos veem de um jeito e que o poeta, esse corruptor de rotinas linguísticas, consegue ver de um modo distorcido, novo, inesperado, hilário, surrealista.
 
 





quarta-feira, 24 de maio de 2023

4945) Cinco começos Bulwer-Lytton (24.5.2023)


O Prêmio Bulwer-Lytton é concedido anualmente a quem apresentar o pior começo de romance, o mais mal-escrito possível. Criar começos assim acabou se transformando num passatempo para escritores, uma espécie de demonstração prática de "como não escrever". 


1

“Never Say I Don’t Know”, de Barbara Scanlan.

“Em todo o Hemisfério Ocidental (e por que não dizer, também no Oriental) milhões de mulheres suspiravam à noite ao serem assaltadas não por assaltantes propriamente ditos, mas pela fantasia de um dia viverem a vida de Tabatha Westinghouse, e de estarem em seu lugar quando ela percorria em seu Rolls Royce (no banco traseiro, evidentemente) as avenidas mais chiques de Paris e Londres, duas cidades onde ela provavelmente não poderia caminhar na calçada sem ser abordada de forma álacre e incrédula justamente por essas mulheres que acompanhavam religiosamente sua vida pelas colunas sociais dos tablóides sensacionalistas dos dois hemisférios, sem saberem, distanciadas que estão, que nem toda vida de mulher de milionário é o mar de rosas ou o colchão de plumas que é descrito nos tablóides, mas que uma vida como esta, como mostraremos a partir das próximas páginas, é composta também, em grande parte, de momentos, dias e anos de renúncia, de angústia, de tensão, e por que não dizer do sonho de se tornar novamente aquela menina camponesa que saltitava alegremente nos prados da fazenda onde foi criada, antes de se tornar a adolescente que lia tablóides e em seguida, num golpe do Destino que também não nos furtaremos de narrar, em Tábatha Westinghouse, a esposa e futura única herdeira do império de Benjamin Westinghouse, o maior fabricante de fraldas geriátricas de todos os hemisférios.”


2

“Tough Guy At Large”, de Skip Driscoll

"Ele estava sentado no chão, apoiando as costas na parede. Arfava. O sangue lhe escorria pelo queixo, pelo pescoço, empapava a gravata de seiscentos dólares. “Vamos”, disse eu, só para dizer alguma coisa, “diga alguma coisa”. Ele mexeu a boca, mexeu, mexeu, cuspiu um dente e rosnou: “Diga a Morello que ele me matou de graça, porque não vou entregar ninguém.” “Não matamos você ainda”, ripostei de pronto. “Você vai morrer bem devagarinho, enquanto entrega todo mundo.” Ele olhou para a mesa. Havia uma automática sobre a mesa. A três metros. Ele não poderia dar um salto de três metros do lugar onde estava, mas mesmo assim fiquei de olho. Ele era guarda-costas de um mobster, e um sujeito não se torna guarda-costas de mobster sendo bobo. Pelo menos é o que acontece na maioria dos casos."



3

“Saudação ao Crepúsculo”, de Anastácio Dalemberte.

"Longas são as noites de primavera quando a atmosfera inteira parece se impregnar do perfume das flores recém-desabrochadas, que, tímidas, abrem-se para o mundo cheias de delicada expectativa de todos os seres que veem na vida um cumular de sensações extasiantes, e se preparam para toda uma existência consistindo apenas no dar perfume e receber adoração. Sim, nessas noites de primavera tudo é possível! Todos os desejos parecem maduros a ponto de serem concretizados, os sonhos transpõem o limiar do real, e todo esse frêmito de nova vida que ressurge está vibrando ao diapasão – não, não recuemos diante desta palavra sagrada – ao diapasão do Amor." 


4

“O x”, de Pietro Barbieri

"A página. A página branca, retangular. Fita-me com seu vazio. Incita-me com sua disponibilidade. Provoca-me com a sua nitidez. Tudo é possível diante da página em branco. E ao mesmo tempo tudo é impossível. Qualquer começo é impossível, no feixe de virtualidades que se superpõem e que mutuamente se cancelam. A página tudo aceita, e ao mesmo tempo tudo proíbe. A página é um reflexo desta minha existência, destes meus 27 anos dedicados mais a ler que a viver, e talvez por isto mesmo ela me lance o desafio, o desafio esfíngico, de me propor mudamente: É isto que queres –  escrever? Por que não vais viver, tu que viveste tão pouco? E no mesmo impulso eu sinto a resposta brotar de dentro de mim: Não, não quero viver, porque viver é um ato filosoficamente gratuito, como já foi demonstrado à saciedade por outros filósofos; eu quero escrever, para provar que escrever me justifica. Página, estás prestando atenção?! " 


5

“Guerra nos Planetas” de J. Wilson Perdigão

"O sistema solar de 47-XFK-38 estava em polvorosa com a notícia, divulgada minutos antes pelos principais meios de comunicação, de que uma Frota Estelar composta de onze torpedeiros, doze naves logísticas, doze naves-mães e vinte e cinco espaçonaves leves de tiro rápido próprias para se locomoverem com rapidez e agilidade numa atmosfera semelhante à da Terra estava se aproximando. As intenções eram visivelmente hostis, visto que foi rapidamente confirmado pelos observadores nos telescópios que era uma frota Remulana, país com que o sistema solar estava em guerra há vários anos, e bastou isso para que soasse em todos os planetas o sinal de alarme e os soldados conscritos que estavam de sobreaviso para qualquer emergência fossem rapidamente arregimentados para pilotar a frota de defesa. A galáxia se preparava para contemplar uma batalha nunca jamais vista! " 

 

 (Ilustrações produzidas com o software de Inteligência Artificial "Bing".





domingo, 21 de maio de 2023

4944) Perry Mason, o melhor advogado do mundo (21.5.2023)




O objetivo do romance policial detetivesco é apresentar um crime misterioso e mostrar o processo do descobrimento da verdade: quem matou, como matou, por quê matou.   
 
Perry Mason, criação de Erle Sanley Gardner (1889-1970), é o advogado-detetive. Certamente não é o primeiro desse tipo, mas é o que de forma mais consistente transformou o tribunal do júri, com sua platéia, no palco-de-teatro que ele sempre tendeu a ser.  Ali a verdade é revelada: sempre de forma melodramática e cheia de suspense, de surpresas, de reviravoltas. 
 
Se o palco de Hercule Poirot e Ellery Queen era a clássica cena final da “reunião dos suspeitos”, Gardner transpôs esse ritual revelatório para o tribunal do júri. E com o ingrediente adicional do conflito, porque Perry Mason não precisa apenas desmascarar o criminoso, mas impor sua narrativa, diante de uma platéia tensa e indecisa, sobre a narrativa de um promotor hostil (o eternamente desafortunado Hamilton Burger).



Gardner é um escritor formulaico. Ou seja: praticamente todos os livros obedecem a uma mesma estrutura, que o leitor conhece, e espera reencontrar. Ele é, contudo, um dos mais hábeis de todos os tempos, porque sua fórmula é larga e flexível, e ele sabia como recheá-la de situações rebuscadas, mas verossímeis.
 
Um detalhe bem típico da ficção formulaica é a repetição de um esquema nos títulos, para indicar ao leitor que são livros em série. Gardner adotou (não em todos os livros, claro) um esquema facilmente reconhecível, de intitular os livros “O Caso do…”, às vezes com repetição de iniciais: The Case of the Lucky Legs (1934), The Case of the Caretaker’s Cat (1935), The Case of the Dangerous Dowager (1937), The Case of the Haunted Husband (1941), The Case of the Drowning Duck (1942)…



(The Case of the Borrowed Brunette, 1946)
 
A fórmula básica de seus enredos é simples. Uma pessoa vem a Mason porque está sendo acusada (ou a ponto de sê-lo) de um crime. Mason acredita na sua inocência, e cai em campo para investigar o crime por conta própria. Seus ajudantes são sua secretária Della Street e o detetive particular Paul Drake, que tem um escritório vizinho ao seu. Mason dá instruções, distribui tarefas, recebe resultados, traça estratégias. 
 
Não há nesses livros os ingredientes sensacionalistas da pulp fiction policial da época. Lembro que ao ler O Caso dos Peixes Dourados me toquei de que era o primeiro livro (depois de dezenas) em que eu via Mason dar um soco num adversário e dar um beijo em Della Street. 


 
Os crimes que Mason investiga não têm a atmosfera gótica e sinistra dos livros de John Dickson Carr ou a complexidade barroca de Ellery Queen. São crimes comuns, praticados em situações comuns, e a façanha do detetive é descobrir a verdade deslindando um novelo de pistas falsas, pistas verdadeiras, mentiras, enganos, versões truncadas, ações inexplicáveis, desculpas implausíveis, gestos irrefletidos, erros de julgamento. 
 
No universo detetivesco de Perry Mason, chega-se à verdade fazendo um levantamento das ações das pessoas, e depois confrontando essas pessoas, no banco de testemunhas, com as próprias contradições. 



Mason é um detetive que usa a oratória como nenhum outro. Não no sentido da “frase bonita”, mas da torção das idéias; das ênfases premeditadas; das alusões veladas que deixam clara uma acusação sem que ninguém possa, tecnicamente, se queixar; das elipses propositais em que ele, sem acusar alguém, induz o júri a uma interpretação.  Sua estratégia é a da gradual imposição de um sentido forçando a platéia a reavaliar os fatos – mais ou menos como no famoso discurso de Marco Antonio no Julio César de Shakespeare. 
 
Gardner era capaz de tirar coelhos e mais coelhos de sua inesgotável cartola de situações. Seu método de trabalho, aliás, favorecia essas narrativas intensamente dialogadas. Em seu rancho, ele tinha secretárias com máquina de escrever, copiando os livros que ele ditava em voz alta. Ele usou longamente o ditafone, modelo de gravador das primeiras décadas do século 20 (gravação em cilindros). 



Na sua biografia The Case of Erle Stanley Gardner (New York: William Morrow, 1946), Alva Johnson compartilha algumas estatísticas do seu sucesso.
 
Seus romances de mistério, em todas as diferentes edições, das de dois dólares às de 25 centavos, tiveram um total de vendas de 4.547.922 livros em 1943, 4.903.685 em 1944 e de 6.104.000 em 1945. (...) Em 1932, ele ditou seu primeiro livro de Perry Mason O Caso das Garras de Veludo, em três dias e meio. (...) Depois, diminuiu esse ritmo para um livro por semana. Hoje (1946), ele desacelerou e produz cerca de um livro por mês. (trad. BT)


Um grande admirador de Perry Mason foi Raymond Chandler, seu colega na revista Black Mask, que no início da carreira se deu o trabalho de datilografar uma história inteira de Gardner, copiando-a, para entender melhor a dinâmica e a tensão de um tipo de narrativa tão envolvente. Anos depois, os dois tornaram-se amigos. Chandler escreveu a Gardner, numa carta de 1946: 
 
Quando um livro, qualquer tipo de livro, atinge uma certa intensidade de performance artística ele se torna literatura. Essa intensidade pode ser uma questão de estilo, situação, personagens, tom emocional, idéia, ou meia dúzia de outras coisas.  Pode ser também uma perfeição de controle sobre o movimento da história, semelhante ao controle que um grande arremessador de beisebol tem sobre a bola.  Para mim, é isto que você tem, mais do que qualquer outra coisa, e mais do que qualquer outra pessoa...  Cada página joga o gancho que nos puxa para a próxima. Eu considero isso uma forma de gênio.  Perry Mason é o detetive perfeito porque tem a abordagem intelectual da mente jurídica e ao mesmo tempo aquele desassossego do aventureiro que não consegue ficar quieto. (trad. BT) 
 
Recentemente, foi lançada uma série com o nome Perry Mason, até interessante, mas que não tem absolutamente nada do personagem original. É outro clima, outro estilo, outras pessoas. A série em si não é ruim, mas seria bem melhor se os personagens (que não têm nada a ver com os de Gardner) tivessem outros nomes. 


 

A série de TV Perry Mason (1957-1966, 271 episódios) foi um grande sucesso na sua época, com Raymond Burr no papel do advogado. Vi vários episódios dela; tem qualidades positivas de ritmo narrativo, bons atores, e roteiros com a tarefa ingrata de compactar em 50 minutos os enredos intrincados de romances de 250 páginas. No seriado, complexas discussões de seis ou oito páginas precisam ser resumidas em meia dúzia de falas. Tudo se torna muito rápido, e quebra uma das principais qualidades folhetinescas do original: o exasperante prolongamento das discussões em que Mason pega um suspeito no banco das testemunhas e arranca dele, gota por gota, as informações que já conhecia, mas que precisam ser reveladas ao juiz e ao público. 
 
O suspense dos livros de Erle Stanley Gardner requer esta condição: longas discussões e interrogatórios, uma escavação implacável das narrativas pessoais, até fazer aparecerem os fatos escondidos sob as palavras. 



O Brasil é o País dos Bacharéis. Somos uma cultura baseada na fala, na conversa, na oratória. Temos uma admiração instintiva por quem “fala bem”, por quem “escreve bonito”. E por quem (como se diz lá em Campina) “tem um papo de derrubar avião”, ou seja, uma conversa capaz de subjugar o impossível. 
 
Perry Mason é o herói da conversa, da argumentação muitas vezes falaciosa, cheia de armadilhas dialéticas, mas sempre com um objetivo: usar todas as armas da retórica para impor a sua “narrativa”. Um Sócrates do tribunal do júri, que, em vez de dizer o que pretende revelar, limita-se a formular as perguntas certas – e a fazer o criminoso, no banco das testemunhas, confessar seu crime. 



quinta-feira, 18 de maio de 2023

4943) A arte do trocadilho infame (18.5.2023)




O melhor livro sobre o trocadilho é o clássico de Sigmund Freud Os Chistes e a Sua Relação Com o Inconsciente (1905). A tradução “chiste” me parece seguir o modelo espanhol; conheci esse livro numa tradução espanhola, e tenho agora o volume VIII da Edição Standard da Ed. Imago, tradução de Margarida Salomão. 
 
No prefácio desse volume, discute-se a tradução do termo original alemão (“der Witz”). Ele deu em inglês “wit” e “joke”, mas grande parte dos exemplos freudianos, sem deixarem de ser “piadas”, “chistes”, “gracejos”, são principalmente trocadilhos, termo que em inglês é “pun”. (Evidentemente, nenhum brasileiro habituado a soltar um trocadilho deixou passar impune essa palavrinha sugestiva.) 
 
Resumindo: todo trocadilho é um chiste, mas nem todo chiste é em forma de trocadilho.
 
Tenho a doença do trocadilho; pertenço a uma irmandade informal de viciados, onde posso incluir sem medo Marcus Vilar, André Aguiar, José Araripe, Henrique Rodrigues, Fraga, e outros calemburistas de reputação duvidosa. O trocadilho é um sintoma neurótico, no sentido de que o indivíduo dotado dessa capacidade sente uma compulsão irresistível de trocadilhar tudo que lhe apareça pela frente, e, pior, de dizer em voz alta cada trocadilho que lhe ocorre. 
 
É difícil, ao viciado, não armar um trocadilho quando as palavras se articulam e se oferecem ao seu ouvido; e é praticamente impossível não dizê-lo. Nenhum trocadilhista autêntico cala um trocadilho que lhe ocorra em público. 




Vou teorizar um pouquinho sobre esta arte, usando um exemplo autobiográfico. Eu teria uns dezoito anos; na casa dos meus pais, vi uma maçã numa fruteira e fui pegá-la para comer. Minha mãe, que já tinha examinado a fruta antes, avisou que ela estava com uma metade podre. “Não tem problema,” disse eu, “eu jogo fora a metade má e como a metade sã.” 
 
É um bom trocadilho, e é por coisas assim (não porque leio Freud) que sou tido por inteligente na família. Mas esta pequena façanha tem características que o trocadilho ideal em geral apresenta: 
 
1) foi um improviso, uma resposta instantânea a uma situação não planejada; 
 
2) houve uma notável economia de meios, ou seja, não precisou de nenhum raciocínio complicado, nem fez alusão a algum elemento externo ao fato em si; 
 
3) a intenção da resposta foi instantaneamente compreensível, sem precisar de explicações posteriores. (Piada explicada é piada perdida.) 
 
Darei como contra-exemplo uma graça contada por Ariano Suassuna, que também manifestava pendor por esse traquejo. Ariano, aliás, eu coloco no rol dos trocadilhistas clássicos, ao lado de Guimarães Rosa, Paulo Leminski, François Rabelais, Millôr Fernandes, Emílio de Menezes, James Joyce, Lewis Carroll e John Lennon.



Foi no tempo em que Ariano era jovem. Ele vinha andando na rua, numa tarde ensolarada e abafada do verão recifense. Um amigo se aproximou, os dois trocaram algumas frases, e o amigo disse:
 
– Olhe, Ariano, eu admiro muito você. Um sujeito íntegro, intelectualmente firme.
 
– Muito obrigado – disse Ariano.
 
– Você é uma pessoa admirável, uma pessoa íntegra. Eu diria mesmo: uma pessoa una.
 
– É mesmo? – disse Ariano, já com alguma coisa coçando atrás da orelha.
 
– E ainda mais nesse calor! – exclamou o amigo, erguendo a mão de encontro à luz do sol. – Esse calor terrível, que faz a gente suar.  E aí... suas, una?... 
 
Ariano fazia um muxoxo de incredulidade e comentava: “Veja bem, o sujeito faz um arrodeio desse tamanho, traz uns assuntos que não têm nenhuma relação, somente pra fazer um trocadilho vagabundo como esse.”  
 
É a contraprova do primeiro exemplo! Porque claramente não foi improvisado (foi pensado em casa e trazido para a rua), precisou introduzir dois temas não relacionados (integridade pessoal, e calor) e mesmo não precisando de explicação adicional fica bem claro que para juntar essas duas palavrinhas o sujeito precisou dar o equivalente a uma volta no quarteirão. 
 
Isso é o chamado “trocadilho infame”. E agora vou propor a segunda parte da minha teoria: se o trocadilho é uma arte, o trocadilho infame é uma anti-arte, uma paródia de si mesma, uma versão grotesca do Belo e uma versão disparatada da Sabedoria. Ou seja: é Arte também. 



Um trocadilho bem–feito nos leva a guardar alguns segundos de silêncio e depois dizer um palavrão admirativo ou um elogio ao geniozinho que o fez. Um trocadilho infame faz o grupo inteiro gargalhar ao mesmo tempo, dar tapa na perna, tapa na barriga, fazer munganga de arrancar os cabelos ou de cortar o próprio pescoço; provoca crises lacrimais de hilaridade e – em suma – reforça a boa-vontade entre os seres humanos, e consequentemente contribui para a Paz Universal. 
 
Pertence ao domínio do trocadilho infame a famosa “charada trocadilhesca”, tão dependente da deformação sonora dos vocábulos que não tem cristão no mundo que adivinhe a resposta. Meu exemplo preferido: “O animal na torre da igreja encontra-se doente. Duas e duas.”  (Resposta: tatu / sino).
 
Ou esta clássica: “Sofre de gagueira o filho do Couto. Não é ele, é o outro. Duas e três.” (Sacadura Cabral). 
 
O trocadilho infame só presta se for uma forçação de barra, um pino quadrado enfiado à força num buraco redondo (ou vice-versa), algo tão desnecessariamente complicado quanto aqueles mecanismos rubegoldberguianos em que dezesseis objetos diferentes são conectados uns aos outros para acender um interruptor de parede. 



(Ilustração: Rube Goldberg)
 
O trocadilho é uma Arte porque implica num mínimo de esforço para obter um máximo de efeito. O trocadilho infame é uma anti-arte porque implica num máximo de esforço para obter um mínimo de efeito. (E portanto, pelas leis do Humor, é uma Arte também.) 
 
(Este texto foi motivado por uma postagem de Alex Antunes no Facebook, onde ele dizia: “Se um baiano tem abdome negativo, ele é chamado de 'meu rei côncavo'?) 



 (cartum: Odyr)
 




segunda-feira, 15 de maio de 2023

4942) O erro traz uma idéia (15.5.2023)



(Brian Eno)
 
O erro é um parceiro, não um inimigo. O músico Brian Eno já preconizava: “Valorize seu erro, trate-o como se fosse uma intenção oculta”.
 
Estou eu agora à noite procurando um livro qualquer em minhas estantes. Olhando numa prateleira lá no alto, avisto uma lombada com o título O Diário da Ratazana
 
Muitos septuagenários se queixam da miopia crescente. Eu não me queixo. Para mim, é uma janela-aberta-número-dois, trazendo-me idéias que não me ocorreriam de outro modo. Porque ao estender o braço e puxar o volume misterioso... é apenas O Desatino da Rapaziada, o saboroso memorial histórico de Humberto Werneck sobre a literatura mineira da primeira banda do século passado. 
 
Aqui neste blog eu volto de vez em quando a este tema: uma frase é entendida erradamente, e acaba resultando numa frase completamente outra. 
 
Um exercício constante, praticado desde os meus dezoito anos, é o do “erro proposital”. Produzir uma frase surrealista a partir da sonoridade ou da grafia de uma frase banal. Inspiração de André Breton e de Raymond Roussel. 
 
Pego, por exemplo, a frase inicial deste artigo, “o erro é um parceiro”. Basta uma pequena torção para transformá-la em “o Eros é um pacote”. Juro: nunca pensei nessa frase antes. E ela significa o quê? Bem, freudianamente poderíamos dizer: o impulso erótico humano não é um mero detalhe, é um pacote inteiro. Ou você aceita seu erotismo (sua sexualidade pessoal) com tudo que ela inclui, necessita e acarreta... ou então vá pastar. 
 
Posso fazer o mesmo com uma frase de logo depois: “o músico Brian Eno já preconizava”. Isto pode me render o quê? Vejamos: “o mágico Billy The Kid já procrastinava”. Sim, posso deixá-la assim, meio surrealista, meio selvagem de sentido. Mas posso escavacar um pouco em busca de algum grão de história. 



 
Digamos um mágico de salão, como no filme O Grande Truque (“The Prestige”), de Christopher Nolan. Seu grande número é vestir-se de cowboy e duelar com um assistente em pleno palco. O truque é encenar esse duelo-de-faroeste e na hora de sacar as armas os dois sacam igual, atiram igual... e as balas se chocam em pleno ar! 
 
Terminado o número, o espectador mais incrédulo é chamado ao palco para recolher as duas balas, amassadas uma de encontro à outra, e ainda quentes do disparo. 
 
Todo o número é filmado do palco, de vários ângulos, e depois a imagem é passada em câmara lenta no telão: vemos as balas se chocando, tendo ao fundo a platéia ali presente (isto elimina a hipótese de imagem pré-gravada). 
 
Nosso Mágico, entretanto, está passando por uma crise.  Digamos que (o leitor sempre aprecia um pequeno e confortável elemento de melodrama) justamente esse seu Assistente está tendo um caso com a esposa dele, e o Mágico é ciumentíssimo, possessivo, feroz. 
 
Ao apresentar no palco esse número, o Mágico o faz preceder por um black-out no teatro, e as luzes voltam a se acender muito lentamente, ao som de uma trilha sonora bem morricone, com guitarras plangentes, vigorosos assobios. 



Ele e o Assistente emergem de extremos opostos do palco, vestidos a caráter. O Mágico costuma, nas apresentações rotineiras, contar ali a história de um homem cujos pais foram mortos por um pistoleiro. O menino cresceu treinando a arte do saque, da pontaria, do disparo.  E agora, depois de adulto, ele finalmente localizou, escondido num rancho em Abilene ou em Tombstone, o assassino de sua família. 
 
E aí ocorre o confronto entre os dois, separados por uns dez metros de palco, aquele silêncio insuportável (a música é bruscamente cortada) enquanto os dois se encaram, olho no olho. 
 
Antes, o Mágico mencionou meio casualmente à platéia a regra básica do duelo do faroeste: se “A” sacar primeiro e matar “B”, é condenado à forca por homicídio; mas se “A” sacar primeiro (configurando a agressão) e “B” sacar depois e conseguir matá-lo, isto será visto como legítima defesa. 
 
A arte, portanto, está em deixar o outro sacar primeiro, sacar depois, acertar antes. 
 
Ora; o número do Mágico é famoso na cidade, a imprensa já derramou rios de tinta a respeito. E os tablóides de fofocas têm divulgado, insistentemente, de umas semanas para cá, os passeios aparentemente inocentes onde as câmeras registram os abraços, os sorrisos, e os momentos olho-no-olho entre o Assistente e a Esposa do Mágico. 
 
Todo mundo já sabe: o Mágico está sabendo. E todo mundo ali comprou ingresso excitado, tenso, na expectativa do que pode acontecer. Do que certamente vai acontecer. 
 
Por isso, nessa noite de sábado, com o teatro botando gente pelo ladrão, o Mágico inicia o número (enquanto o Assistente, paramentado de pistoleiro, já o aguarda na outra ponta do palco) recontando o texto-padrão da morte dos pais, etc., mas nesta noite ele adiciona um elemento a mais. 
 
Ele afirma: esse vilão não apenas matou seus pais, mas roubou o amor da sua mulher, da única paixão de sua vida. E começa a descrever a sordidez desse adultério por baixo de sete capas, dessa dupla traição, a da Mulher Amada e a do Melhor Amigo. 
 
A platéia se remexe, inquieta, não suporta mais o nervosismo. 
 
E o Mágico fala, fala, fala incansavelmente. Passam-se minutos, passa-se meia hora, uma hora de tensão incontida em plano palco. Senhoras desmaiam, e ele falando. Homens impacientes protestam em voz alta e se retiram. Gaiatos apupam da fileira do fundo. E ele falando. 
 
Ele fala, fala, remexe os detalhes sórdidos daquela traição, descreve as patifarias praticadas pelo casal de judas quando a sós no motel. Bolas de papel chovem sobre o palco, chapéus, sapatos. A vaia começa a se alastrar. E o Mágico fala, fala como um tatarana, fala como um iauaretê, fala como um mister-smith qualquer resolvido a filibusterizar o teatro, a cidade, o mundo inteiro até se sentir em condições de travar o combate final, um combate “belo como o encontro de uma bala de revólver com um coração sobre o palco de um teatro”. 

Ufa.

Vejam como o Surrealismo é útil como fator desencadeante! Fui dar um simples exemplo aleatório, mexendo numa frase randômica; e o exemplo virou um conto. Um continho, um contito, reconheço, mas mesmo assim uma situação interessante, na qual devo ambientação e personagens a Christopher Priest (autor do livro The Prestige, fonte do filme de Nolan), e à técnica narrativa (chamo-a de “presente indireto”) onde a gente narra no presente, de forma sintética, distanciada, sem descer a detalhes, um fato fictício supostamente passado. Técnica na qual Roberto Bolaño (que eu estava lendo hoje de tarde) é um mestre consumado, tendo-a aprendido, é claro, com Jorge Luís Borges, o qual por sua vez deve tê-la estudado nas sagas norueguesas, sei lá onde. 
 
E por enquanto, é isto – agora tenho que ver como vou me virar com O Diário da Ratazana.




 
 





sexta-feira, 12 de maio de 2023

4941) Minhas Canções: "Chegada" (12.5.2023)




Já escrevi aqui neste Mundo Fantasmo alguns artigos tentando explicar minha concepção do que é rock. Não me refiro apenas ao rock-and-roll ingênuo e cinquentão (=dos anos 50) de Bill Haley e Seus Cometas, mas a tudo que aconteceu depois dele, e de Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, The Who, Led Zeppelin, Sex Pistols, The Clash... Et coetera. 
 
O rock, para mim, é primeiro que tudo uma junção de um elemento branco (a tecnologia eletro-eletrônica) com um elemento negro (a pulsação rítmica). Depois, vêm muito mais coisas; mas eu acho que a base é isso aí. 
 
Ou, como já escrevi algures: 
 
O rock norte-americano é a eletrificação das formas de música rural brotadas nos próprios EUA: primeiro, o blues dos negros do Mississipi; depois, as canções “country” dos vaqueiros do Oeste, a música “bluegrass” de raiz (com seus vertiginosos solos de banjo e de rabeca), a tradição de música “gospel” das igrejas batistas da população negra urbana. 
 
Do ponto de vista técnico, as palavras-chave são eletrificação e reprodução-ampliada, porque uma coisa é você tocar um ritmo bem sacudido de forma acústica, alcançando uma platéia de algumas centenas de pessoas, e outra coisa é você tocar o mesmo ritmo sacudido de forma eletrificada, alcançando centenas de milhares – em Woodstock, na Praia de Copacabana, num desses mega-festivais que rolam por aí.
 
Aqui no Brasil, um dos grandes saltos musicais que minha geração presenciou foi o crescimento de uma música eletrificada, feita no Nordeste, tendo por base os ritmos populares como o maracatu, o baião, o cavalo marinho, o coco e por aí vai. É o nosso rock. É a nossa eletrificação do ancestral. 
 
Chamamos de “rock brasileiro” a música feita pelas jovens bandas brasileiras como resposta ao rock estrangeiro: dos Mutantes aos Paralamas do Sucesso, de Renato e Seus Blue Caps à Blitz, da Bolha à Legião Urbana, todos pegaram o som estrangeiro e fizeram com ele o que cabia no seu balanço. Esse Rock-BR (no qual incluo a chamada Jovem Guarda) é uma resposta nossa à síntese norte-americana, injetando nela elementos próprios. 
 
Poderíamos também chamar de “rock brasileiro”, com certa propriedade, essa eletrificação dos ritmos populares. É a nossa síntese. Não somente o maracatu e o coco, mas o samba também. Só que se alguém vai falar de rock brasileiro não vai pensar em samba-rock, não vai pensar em Jorge Ben em primeiro lugar. 
 
Anos atrás, em 2003, fui procurado pela produção do Maracatu Várzea do Capibaribe, do Recife, pedindo uma música para o disco novo. Mandei esta canção, que foi gravada pelo cantor Abissal, acompanhado pelo Maracatu e pela rabeca de outro parceiro, Siba. O CD é Abissal e os Caboclos Envenenados, e dele participam outros talentos como Elias Paulino, Silvério Pessoa, Mestre Barachinha, etc. 
 
O maracatu eletrificado é uma das maneiras que encontramos para inventar nosso próprio rock. Quando Chico Science e a Nação Zumbi começaram a tocar no Brasil inteiro, Ariano Suassuna era Secretário de Cultura, e isso gerou uma infinidade de discussões sobre as afinidades e as desafinidades entre o Movimento Armorial e o Mangue Beat. Ariano, que admirava a pessoa e o talento de Chico, dizia: “Ele mistura o rock com o maracatu, e acha que com isso está valorizando o maracatu, mas está valorizando é o rock, que é muito inferior”. 
 
Não há muito o que discutir, pois acho normal alguém não gostar de rock, ou não gostar de maracatu, e quem diz isso sou eu, que gosto dos dois.
 
O maracatu não tem raízes em Campina Grande. Meu DNA de infância traz a sanfona do forró, a viola dos repentistas, os ganzás dos emboladores; traz o bolero de Nelson Gonçalves e Altemar Dutra; traz o samba carioca de Miltinho e Roberto Silva e o samba paulista de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa, e traz até o rock – porque a minha infância foi carimbada pelo que tocava em rádio, naqueles tempos pré-música-na-televisão. 
 
O maracatu me chegou mais tarde, uma referência distante que vinha se aproximando como um exército de tambores em marcha. Através dos meus parceiros recifenses, como Zeh Rocha, Lenine, Lula Queiroga e outros, aprendi a duras penas a reproduzir a quebrada do bombo – e acabei compondo alguns maracatus, dos quais este aqui foi gravado, e vale como amostra. 
 
 
 
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https://www.youtube.com/watch?v=OxByri35iBQ&ab_channel=ThiagoQueiroz
 
 
CHEGADA (Letra e música: BT)
Gravação: Abissal & Várzea do Capibaribe
 
São tambores de chamada
motores da força e luz
jogando eletricidade nos terreiros.
Guitarras de feiticeiros
vibrando embaixo do som
da avenida que surgiu de madrugada. 
 
São cabeças coroadas
de fumaça de vulcão
e uns olhos de lua cheia na lagoa.
É um milhão de pessoas
no mesmo raio de sol
e o baque dos pés no chão da noite inteira. 
 
Chegou na tela do mundo
chegou na letra da mão
chegou no colo da fera
chegou no X da paixão;
chegou no brilho da faca
chegou no lixo da feira
chegou no arranco do grito
chegou no chão da ladeira;
chegou um rosto e um nome
nascendo dentro de mim
e continuando assim a vida inteira.




(Maracatu Real Várzea do Capibaribe) 
 





terça-feira, 9 de maio de 2023

4940) Rita Lee (1947-2023) (9.5.2023)




“A mais completa tradução de São Paulo”, no verso de Caetano Veloso. Eu não diria a mais completa, porque acho meio utópica a idéia de que uma parte possa representar bem o todo. Eu diria que era a idéia mais femininamente charmosa de São Paulo, pois naquele tempo eu (falo de eu-adolescente, eu-dezesseis anos quando ela tinha dezenove) via São Paulo como uma cidade lúgubre, cinzenta, fuliginosa, tchecoslovaca, uma espécie de 1984 dublado em português. A São Paulo terrificante do Lugar Público de José Agrippino de Paula.
 
Rita (a Rita dos Mutantes) era luminosa, irreverente, irrequieta e dizia coisas inteligentes. Uma mistura de Janis Joplin com Gelsomina. Se o Tropicalismo daquele tempo nos parecia uma noite no circo, o número dos Mutantes já sugeria que em breve eles teriam sua lona própria e fariam turnês independentes. A voz de Rita ia desde a carícia de “Le Premier Bonheur du Jour” até o caipirês caricato de “2001” (a famosa “Astronarta libertado...”). Num dia ela aparecia vestida de noiva, no outro vestida de bruxa. “São Paulo é assim?”, pensava eu. “Se for, eu quero conhecer São Paulo.” (Só conheceria dez anos depois, mas esta é outra história.) 




Volto a dizer aqui algo que já falei sobre a imagem da mulher sexy. Minha geração (não falo pelas outras) foi submetida a um bombardeio de mulheres fatais do cinema, aquelas que Carlos Drummond chamava de “as sereias vulcânicas da Broadway”. Era Elizabeth Taylor, Jayne Mansfield, Rachel Welch, Kim Novak, Ursula Andress... Mulheres fatais, mulheres capazes de descarrilar uma locomotiva com um olhar. E vigorosas. Lembro de uma palestra de Antonio Callado em que ele se referia a personagens femininas “tão atemorizantes quanto uma nadadora olímpica iugoslava”.
 
Rita Lee era o contrário disso, e se não foi a mais completa tradução de sua cidade foi a de sua época, a época das garotas de minissaia, botinhas, boné, casaco, gola olímpica, as Annas Karinas, as Jeannes Moreaus, as garotas-do-apartamento-ao-lado. Jogando em cima disto, claro, a carnavalização figural dos Tropicalistas. Com ou sem fantasia, eram garotas da vida real que se comportavam (inclusive no palco) como gente. Você não imagina Marlene Dietrich dando uma topada no palco. Eu conseguia imaginar Rita Lee dando uma topada, se estabacando no chão, e levantando às gargalhadas.


 
Os Mutantes traziam também um fio de ficção científica – a FC que nunca mais deixei de associar à capital paulistana. Ao que parece (versões divergem), o grupo tirou seu nome do livro O Império dos Mutantes (“La Mort Vivante”, Stefan Wul, 1958), que o grupo leu sob este título na edição portuguesa (a tradução brasileira se chamou “A Cadeia das 7”). 
 
Era um livro sobre clonagem, em que o DNA de uma menina é reproduzido sete vezes (por segurança, para o caso de alguma falha) em laboratório. Algo foge ao controle (ou não seria FC) e daí a pouco temos sete meninas clones, idênticas, telepáticas e (pouco a pouco) todo-poderosas. 
 
Havia nos Mutantes, talvez, essa utopia ingênua do “somos todos um só”, o famoso “I am he, as you are he, as you are me, and we are all together”. Não eram: a banda brigou, Rita foi expelida, decolou numa carreira solo, voltou arrasadoramente no fim dos anos 1970 com “Mania de Você”, ao lado de Roberto de Carvalho; e o resto é história. Um pop brasileiro com voz feminina, pegada roqueira, doçura bolerística, sarcasmo urbano, letras de quem gostava de ler.


 
A história de Rita foi se me revelando de pouquinho, ao longo dos anos. Eu sabia desde o início que ela tinha ascendência norte-americana, e achei que “Lee” era sobrenome da família, sendo seu nome completo “Rita Lee Jones”. 
 
Nos anos 1980, já morando no Rio de Janeiro, comecei a ajudar Duncan Lindsay (“o irmão de Arto”) numa pesquisa dele sobre ex-Confederados norte-americanos que, derrotados na Guerra da Secessão, vieram morar no Brasil a partir de 1867. Entre eles, algum antepassado de Rita, cujo “Lee” não era sobrenome de família, e sim homenagem ao famoso General Lee. 
 
Segundo descobri através de Duncan, havia toda uma história de Confederados que se auto-exilaram no Brasil após a derrota, muitos indo morar na Amazônia, e outros no interior de São Paulo. Em Santa Bárbara d’Oeste, terra do pai de Rita, há um Cemitério dos Americanos. A cidade de Americana (SP), deve seu nome a essa corrente migratória. Que nos deu, afinal, a “ovelha negra” da família Jones.  
 
É mais um fio-de-aranha da História, daqueles difíceis de enxergar e difíceis de romper, ligando a guerra de libertação dos escravos norte-americanos e a formação do rock brasileiro. Como diziam os dialéticos, tudo se relaciona, tudo está interligado. Isto não quer dizer que tudo seja causa de tudo, mas que tudo é efeito-conjunto de um tecido, de um entrecruzamento de presenças. 
 
Quando algum artista morre, os coleguinhas de imprensa sempre vêm nos perguntar “qual é o legado que Fulana de Tal nos deixa”. O legado somos nós, companheiro. O legado de uma pessoa como Rita Lee é a pessoa que eu sou hoje, e não desmereço o legado dela dizendo que há mil outros legados, além do dela, teclando estas palavras.
 
Somos um tecido, um texto, fios entrecruzados por onde passa uma corrente de alguns ampères. E o mais interessante é que, mesmo que a partir de hoje um desses fios não esteja mais aqui, a corrente vai continuar passando. Por que? Não sei, só sei que a gente faz amor por telepatia. 



(ilustração by Fraga)