domingo, 12 de janeiro de 2014

3394) "O Som ao Redor" (12.1.2014)



Gilberto Freyre, um dos mais dedicados investigadores da sociedade pernambucana, intitulou seu primeiro grande livro Casa Grande & Senzala, criando com isto, aliás, uma terminologia que se incorporou a nossa linguagem cotidiana (“O Brasil pode até acabar com a senzala, mas nunca vai se livrar da casa grande”, etc.). Voltando sua mira para o meio urbano, Freyre produziu outro dístico que equaciona em outros termos essa clivagem social: Sobrados e Mucambos. Eu diria que a cultura pernambucana (principalmente cinema, literatura, música) vem nos últimos tempos produzindo um terceiro corte que na falta de coisa melhor eu chamaria Cobertura Duplex & Moradia Popular.

O filme O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho faz esse corte transversal numa pequena área urbana do Recife. É um terreno vasto de patriarcas do açúcar que, como tudo o mais que foi deles, acabou fatiado, loteado aos pouquinhos. Um império vendendo a si mesmo pelas beiradas, como naquela fábula do náufrago que todo dia cortava um pedaço de si mesmo e o jogava aos tubarões, na esperança de que poupassem o principal. No filme, os tubarões quase não são vistos, mas as grades que os mantêm do lado de fora são onipresentes. Todo enquadramento do filme lembra uma palavras-cruzadas. É tanta grade que parece que estamos em Abreu e Lima, não num bairro nobre.

Nobre é o tratamento que esses fidalgos-de-berço dão aos serviçais, quando em condições normais de temperatura e pressão. Certos retratos da aristocracia rural inspirados em histórias de chicotes e feitores ignoram essa maneira tranquila, civil, até descontraída com que os ricos nordestinos (o filme mostra) costumam tratar seus empregados. Quem grita e esculhamba com eles, em geral, são os patrões de classe média.

No labirinto das ruas floresce o mercado-negro da segurança privada, uma guarda-pretoriana a que os combalidos aristocratas entregam seu destino, meio que fechando os olhos a todas as evidências. Jovens ricos vivem de pequenos furtos ou se engajam como pequenos mascates da explosão imobiliária. O velho patriarca (W. J. Solha, bíblico e jagunço) é afável e bonachão, mas, quando prevê uma ameaça a um parente seu, racha-se o verniz, e a escama do dragão reponta, fumega.

São pessoas sem futuro, cercadas em 360 graus de raio por sons inexplicáveis, ameaçadores, recorrentes, irritantes. Um bombardeio de algo que se aproxima, prestes a escalar as árvores e pular os muros das fortalezas. O filme mostra a insônia dessas pessoas, que têm a expressão destruída de quem só quer paz, mas não sabem como interromper a guerra que os enriqueceu e hoje os malassombra.