sexta-feira, 19 de agosto de 2016

4148) O clichê narrativo da TV (19.8.2016)



("A Sucessora")

Quando falamos de realismo narrativo (seja na literatura, cinema, teatro, TV, etc) muitas vezes estamos contrapóndo esse realismo a histórias claramente fantásticas, absurdas, que não podiam acontecer no mundo como o conhecemos, desde As Sete Viagens de Sindbad até Godzilla, desde Alice no País das Maravilhas até Harry Potter. Todas estas histórias são não-realistas, mostram coisas que não poderiam acontecer no nosso mundo.

Toda narrativa realista, no entanto, é sempre em certa medida anti-realista, porque tem um grau inevitável de artificialidade. Não basta evitar coisas impossíveis (pessoas voando, gente virando bicho, etc.). Seria preciso também, para um estrito realismo, não usar certas convençõezinhas que vão se cristalizando com o passar do tempo, detalhes com alto grau de artificialismo e improbabilidade, mas que a gente aceita porque já fazem parte das regras do jogo.

Downton Abbey, por exemplo: é ou não uma história realista?

Digressão para quem não assiste a série da Netflix: ela conta a história de uma família aristocrática inglesa e seus criados, a partir de 1912. A vida de luxo dos patrões entrelaçada à vida modesta dos serviçais, as intrigas, os amores e os ódios.  Ambição, traição, política, sexo, casamentos por interesse, heranças milionárias disputadas a ferro e fogo, crime, guerra.

Downton Abbey é uma mistura de novela de época da Globo e filme de James Ivory. Realismo de terno e gravata. Tudo em sua dramaturgia tem uma preocupação de ser o mais conservador possível, o mais mainstream possível, sem desvios do que há de mais básico em matéria de roteiro, diálogo, montagem, cenários.

É um novelão que se vale desse quadradismo para impor seu verniz de realidade. É realista pelo fato de nada haver de fantástico, sobrenatural, impossível dentro dela. Fora isso, é totalmente artificial. Ou seja: não realista.

Um recurso comum destas séries, em cenas de jantares, festas, etc., é vermos dois personagens lado a lado, conversando na mesa algo que, pelas circunstâncias físicas (e acústicas) do momento seria impossível não ser ouvido pelas pessoas vizinhas ou do lado oposto da mesa. E no entanto eles o fazem sem que ninguém pareça escutá-los.

É um pouco como aquele recurso clichê da farsa teatral, do vaudeville, em que dois atores estão sentados lado a lado num sofá e um dos dois finge estar distraído enquanto o outro comenta para o público: “Essa agora foi boa! Como é que eu vou convencer esse idiota de que estou falando a verdade?!”, e a platéia aceita que ele não está sendo ouvido pelo outro cara ali, a centímetros de distância.

Ou seja: em momentos assim a conveniência narrativa (a necessidade de passar uma informação ou comentário para o público) se sobrepõe ao realismo.

Gêneros populares (os velhos melodramas teatrais, as comédias, os esquetes cômicos de TV-de-auditório, etc.) são cheios de pequenos truques assim, de pequenas fórmulas para resolver situações. O público habituê vai formando também seu repertório de experiências, e este vira um repertório de expectativas.

O uso desse tipo de clichê cria uma cumplicidade, uma espécie de piscadela entre o diretor/autor e o público.

Daí que, quanto mais um gênero vai se firmando junto a um público, menos realista ele é. “Firmar-se” implica em propor convenções narrativas que o público primeiro aceita, e depois passa a esperar (ou até a exigir). O gênero se torna maneirista, formulaico, ou que outro rótulo alguém queira dar.

Downton Abbey, apesar de toda sua pompa arquitetônica, gastronômica e sartorial, não é menos useira e vezeira dessas fórmulas do que qualquer novelão do SBT. 

As mesmas velhas figuras de linguagem do melodrama mexicano ou cubano estão todas ali.

A chegada repentina, em plena festa, do herói dado por morto.

O casal que vive às escaramuças mas vê-se que os dois migram irresistivelmente na direção um do outro.

A noiva abandonada diante do altar.

A pessoa que entra num aposento já falando em voz alta com alguém que imagina estar ali, e se interrompe quando vê alguém inesperado.

O beijo proibido que, nem bem começa a acontecer, a câmera já corrige o ângulo para mostrar alguém olhando pela vidraça da janela. (E sua contrapartida: o beijo triunfal com a câmera descrevendo um círculo completo em torno dos beijantes.) 

Clichês narrativos são sempre úteis. Mas (que coisa curiosa) acho que são mais úteis num filme de um maluco como Alejandro Jodorowsky ou dos Irmãos Coen do que num novelão-das-oito como Downton Abbey.

Quando Jodorowsky usa, em filmes como El Topo, Santa Sangre, A Montanha Sagrada e outros, alguns clichês do cinema popular, isso ajuda o espectador, meio perdidão no meio de uma performance surrealista, a pegar de volta a estrada principal da narrativa. Em histórias assim o clichê surge como se fosse uma fala em nosso idioma no meio de uma algaravia em língua estrangeira.  “Ufa, que bom, isso eu entendo, agora já posso me situar.”

Downton Abbey ou as novelas das 7 não precisariam disso. Tudo ali já é contado numa língua que qualquer um entende. Por que, então, a novela de TV recorre tanto ao clichê?  Não é para trazer o público de volta, é para impedir que ele se afaste um milímetro sequer. O clichê narrativo é um ritual milenar no qual autores e espectadores se refestelam na zona-de-conforto do lugar comum.

Narrativas assim tornam-se engessadas num círculo vicioso de pequenos cacoetes que não têm mais nada a ver com o realismo ou naturalismo propriamente ditos (= histórias onde tudo acontece como na vida).

Claro que a arte é o contrário da vida – a habilidade consiste em dar a impressão de que é a vida que está ali, e não uma porção de atores dizendo falas decoradas.

É nessa área que surgem as queixas tão frequentes dos espectadores de novelas brasileiras sobre a ausência de olho-mágico nas portas, sobre o fato de todos os personagens se cruzarem “casualmente” sempre na mesma lanchonete, sobre a mania das pessoas irem discutir na casa das outras ao invés de telefonar.

É fórmula, é artificialismo, é tudo para facilitar o trabalho do autor. Mas é nesses momentos que a dramaturgia se revela como um gato escondido com rabo de fora.