sexta-feira, 18 de junho de 2010

2170) Os restaveks do Haiti (20.2.2010)




Eles são onipresentes e invisíveis. Esquecemo-nos de sua existência no mesmo instante em que fazemos um gesto com a mão indicando “cai fora, não enche”. Surgem e desaparecem como pombos numa praça.  

São os meninos comedores de luz, que voam pelos céus do Brasil, na canção de Chico Buarque. São os meninos-sem: sem teto, sem pai, sem mãe, sem escola, sem vergonha, sem escrúpulos, sem dó nem piedade.

No romance The Translator de John Crowley (2002), um poeta russo, Innokenti Falin, migra para os EUA, torna-se professor numa Universidade e ali começa uma amizade com Kit Malone, sua aluna e futura tradutora de sua obra. 

Falin explica a ela que não sabe quem é, ou melhor, não lembra dos seus pais, ou do que lhe aconteceu até os 6 ou 7 anos, quando foi encontrado por outros garotos de rua numa estação de trem. “Era muito comum durante a II Guerra”, diz ele; “famílias eram separadas, os pais eram mortos, ou então estavam viajando com os filhos, desciam do trem para procurar comida, e o trem ia embora sem eles”. 

A infância é um buraco negro na história desse protagonista misterioso (o final do livro, durante a crise dos mísseis de Cuba, aponta de leve para um desfecho fantástico).

Falin explica que há um nome em russo para isso: “besprizornye”, que significa mais ou menos “sem alguém que cuide deles, sem ter onde ficar, sem ter quem ligue para eles” (“without guardian, unsheltered, not cared for”). 

Outro poeta russo, conversando anos depois com Kit Malone, conta de uma viagem de trem que fez na infância com seus pais. Desceram numa estação para esticar as pernas e, olhando embaixo do trem ele viu que “embaixo do vagão onde viajávamos estavam penduradas outras crianças, vultos escuros, que mal pareciam humanos, cinco, dez, uma dúzia ou mais. Fugimos gritando: ‘Besprizornye! Besprizornye!’”.

Crowley lembra dois termos em inglês (que são a cara dos romances de Dickens) para essas criaturas: “urchins” e “ragamuffins”. 

Em português o termo mais vigoroso é “pivete”, mais específico do que descrições frouxas como “menino de rua” ou “menor abandonado”. 

O cinema já os mostrou em filmes como Tire dié de Fernando Birri (Argentina, 1960), em que os garotos correm ao lado do trem pedindo que “atire dez!” (centavos), ou em Sciuscià de Rossellini (Itália, 1946), garotos engraxates que se oferecem para engraxar sapatos (“shoe shine”), ou Los olvidados de Buñuel (México, 1950).

O terremoto do Haiti trouxe mais um nome para essa galeria de anônimos. O Haiti é país de colonização francesa, e no interior é comum mandar um filho pequeno para a cidade, para ficar na casa de alguém conhecido, porque os pais não podem sustentá-lo. 

São chamados “os restaveks”, que vem de “rester avec”, “ficar com (Fulano)”. 

Imagino às vezes um mundo do futuro, um mundo pós-socialismo, pós-capitalismo, pós-riqueza, pós-pobreza, pós-civilização, onde só existirão restaveks, besprizornye, urchins, ragamuffins, sciusciàs, tire diés, pivetes.  





2169) O buraco negro e o encanamento (19.2.2010)



Algumas pessoas já perceberam a semelhança entre a Via Láctea (esta galáxia que habitamos) e a água que escorre pelo ralo do box, no banheiro da nossa casa. A Via Láctea é uma enorme espiral de estrelas que gira lentamente sobre si própria, e tem o formato aproximado de um disco, no qual a proporção entre o diâmetro e a espessura é de 100 por 1: se fosse um disco com um metro de diâmetro, sua espessura seria de mais ou menos um centímetro. E o que existe no seu centro? Um buraco. Pode ser idéia fixa de um musicomaníaco, mas a verdade científica é que a nossa Via Láctea tem a forma exata de um elepê – ou de um CD, que não é muito diferente.

A Via Láctea gira sobre si mesma. Os cientistas calculam de diferentes maneiras a velocidade dessa rotação, mas de um modo geral se admite que o nosso Sistema Solar leva entre 225 e 250 milhões de anos para dar uma volta completa no carrossel galáctico. Durante toda a sua existência o Sol terá dado de 20 a 25 voltas em torno do centro da galáxia, e a Humanidade nenhuma, pois sua existência sobre a Terra cobre apenas 1 / 1.250 de uma rotação completa.

Tudo isto me vem à mente (sem essa exatidão numérica, por suposto) quando estou tomando banho e vejo a espiral de espuma da xampu girando em torno do ralo e sendo sorvida por ele. Meus amigos cientistas me explicaram uma vez que se uma banheira de água com um ralo no centro fosse completamente simétrica, tendo em volta de si apenas forças totalmente equilibradas neutralizando-se mutuamente, teríamos uma lâmina de água totalmente simétrica e lisa, sem ondulações, e a água mergulharia no ralo por igual ao longo de toda a circunferência deste (já isso ocorrer numa represa, na TV). O que é raro no mundo material, sujeito a desníveis, agitações, diferenças de densidade nos fluidos e tudo o mais. A soma destas irregularidades imprime à água (que está executando uma descida vertical) um empurrão horizontal cujo resultado é a espiral, ou melhor, a helicoidal que a sorve no vazio. O torvelinho, o redemoinho, o redemunho.

E o que existe no centro da Galáxia? Dizem que é um Buraco Negro Ultra-Maciço, sorvendo para dentro de si toda a matéria que dele se aproxima, e atirando-a não se sabe onde. Um menino de 5 anos que contempla o ralo do banheiro pode ter a curiosidade de perguntar para onde vai a água. Seus pais, sempre ocupados com coisas mais importantes, dirão que vai “para o encanamento de esgoto do prédio”, o que pode levar o garoto, erroneamente, a imaginar um cano infinito e vertical conduzindo a água rumo ao centro da Terra. É mais ou menos o que imaginamos nós, adultos, quanto ao ralo galáctico que suga e faz desaparecer a matéria das estrelas que caem no seu campo de atração gravitacional. Nunca saberemos. Mas o simples fato de sermos capazes de imaginar isto enquanto enxaguamos o xampu dos nossos cabelos é que nos faz humanos, e necessários ao Universo.

2168) Me add por favor (18.2.2010)



Saites de relacionamento tipo Orkut, Facebook e muitos outros estão criando uns curiosos verbos novos e umas formas verbais que parecem, mal comparando, um sanduíche de panetone de chocolate com macarronada-à-bolonhesa. Grande parte desses saites usa instruções em inglês. Mesmo que essas instruções tenham uma versão em português, usuários diferentes empregam versões diferentes, e algumas vezes as opções feitas por um deles interferem em sua comunicação com pessoas que fizeram opção diferente. E mesmo quando optamos pelo português, às vezes a página abre em inglês. Ou vice-versa. Ou em espanhol, ou até italiano. Assim é o mundo virtual: surpresas sem conta, permanente aventura, e emoção, muita emoção!

O Orkut, onde já tive uma página (ou talvez ainda tenha, não a visito há anos) foi onde primeiro encontrei esse termo: “add”. “To add” significa adicionar, somar, juntar algo novo a algo que já estava ali. E o Orkut oferecia aos seus membros essa opção: “Add Fulano as a friend”, “adicione Fulano como amigo”. Nesses saites, é praxe adicionar como amigo qualquer desconhecido, porque existe ali uma bolsa-de-valores informal em que tem mais importância quem tem mais amigos. Posso ter 500 amigos e estar muito satisfeito comigo mesmo, mas minha animação começa logo a murchar quando visito a página de um deles e vejo que o sujeito tem 700. Ora, quem é esse idiota para pensar que é melhor do que eu?! Começo logo a add todo mundo que visita minha página, ou a mandar mensagens para desconhecidos pedindo a eles que me add. Claro que alguns add na mesma hora, e claro que eu também add muitos outros com rapidez, mas nem todo mundo nos add com a velocidade que desejaríamos.

Este último trecho deve ter dado a medida do problema. Metade das pessoas que frequenta esses ambientes não sabe o que quer dizer “add”, ou melhor, entende o que significa, mas não dispõe de um termo em português para essa idéia, porque seu vocabulário é escasso. A outra metade conhece a palavra “adicionar”, mas acha intuitivamente que ela não se encaixa muito bem. E têm razão. A palavra existe, mas não faz parte da nossa usagem normal, cotidiana. Ninguém diz coisas como “vou adicionar seu endereço à minha agenda”, ou “traga seu amigo que eu posso adicionar ele a nossa equipe”, ou “lá deve estar fazendo frio, é melhor adicionar uns casacos à sua bagagem”. Só usamos esse verbo quando falamos de operações matemáticas ou então numa receita culinária: “adicionar uma colher de manteiga, duas claras batidas e uma pitada de sal”.

Verbos ingleses não são flexionados como os nossos. Deduzimos essa flexão em função do pronome. Toda vez que um desses verbos irredutíveis aparece numa frase em português ele provoca um catabí na frase, um solavanco, um tropeço, como quando estamos mastigando um sanduíche e encontramos uma pedra. Nada contra a pedra, pode ser até um diamante ou uma esmeralda, mas o lugar dela não é ali.

2167) 1001 livros antes de morrer (17.2.2010)




Sou eu que estou mesmo ficando velho, ou é o mundo que está se tornando mórbido por conta própria? Não entro mais numa livraria sem que o assunto da minha morte seja abordado em letras corpo 48 na capa de algum livro. Eles todos me aconselham os 500 discos que eu preciso escutar antes de morrer, as 150 praias em que preciso me banhar antes de morrer, os 1001 livros que preciso ler antes de morrer, e por aí vai. 

Fico me visualizando, de sunga, com o mar de Aruba pela cintura, um I-Pod no ouvido tocando Pet Sounds dos Beach Boys (que não ouvi até hoje) enquanto folheio circunspecto Os Buddenbrooks de Thomas Mann. 

Será que vai dar tempo? Porque creio já ter visto algo sobre os 200 pratos que preciso experimentar antes de morrer e aí recomeça tudo. Parece que a notícia da mera possibilidade de minha morte tomou de assalto o mercado editorial.

Pra vocês sentirem o drama: eu nem sequer preciso de um catálogo como esse. Os 1001 livros que preciso ler antes de bater as botas já estão aqui, vergando minhas estantes. Isto corresponde mais ou menos a um terço da minha biblioteca. Há um outro terço que já li, e outro que não preciso ler: são livros de ensaios, de referência, de não-ficção, livros que tenho para consulta e eventual pesquisa, mas que não me sinto compelido a ler. Agora, aqueles outros...

É a esperança de ler um livro que nos faz comprá-lo, mesmo quando é um calhamaço de mil páginas. Como já devo ter lido uma dúzia de livros desse tamanho, acredito que posso voltar a fazê-lo; e os tijolos vão se acumulando, esperando a hepatite. 

Uso esse termo porque volta e meia ouço história de alguém dizendo que teve uma hepatite, precisou ficar um mês de cama, sem levantar para nada, e em função disso leu os vinte volumes das Memórias de um Médico de Alexandre Dumas. Como meu fígado continua saudável, apesar dos testes a que o submeto, livro não-lidos acumulam-se por todos os cantos.

A pior coisa da idade é quando a gente começa a perceber que já passou da metade do trajeto, e o que resta a cumprir é menor do que o que já ficou para trás. 

Mesmo que eu parasse de comprar e de ganhar novos livros a partir de hoje, deveria me dar por satisfeito se encontrasse tempo para ler os que continuam virginalmente intocados nas minhas prateleiras. Não sei se são 1.001, mas mesmo colocando uma média de dois por semana iriam me requerer algumas décadas de dedicação exclusiva.

Conceito cruel, o desses manuais que pipocam por todo lado. Ficam nos ameaçando com uma morte inglória, a morte humilhante de quem nunca escutou a Amazônia de Villa-Lobos, de quem nunca escalou os Apeninos, de quem nunca assistiu Berlin Alexanderplatz, de quem nunca leu Chapadão do Bugre, de quem nunca provou um carneiro assado com castanhas e hidromel num restaurante obscuro de uma ilha grega. 

Ameaçam-nos com algo pior do que a morte, que afinal contempla a todos: ameaçam-nos com uma vida sem ter consumido as coisas certas.




2166) Sobre navios e campos magnéticos (16.2.2010)



Em suas Cool Memories, 1980-1985 (Ed. Espaço e Tempo, 1992), um deleitável livrinho de fragmentos, Jean Baudrillard faz este registro: “A história desse barco construído com uma quantidade tão grande de ferro e aço que a agulha de sua bússola, em vez de indicar o norte, só se orienta em direção à sua própria massa. Girando indefinidamente em torno de si, ele acabou por se perder nos gelos fósseis do quaternário”. Há várias metáforas que podem ser extraídas dessa imagem fantástica. A mais compartilhável é: os campos magnéticos são objetivos, reais, e valem o mesmo para todas as pessoas, pois não dependem da vontade ou da influência de ninguém. São como um contrato social que organiza os deslocamentos dos indivíduos. A bússola que nos indica o Norte e o Sul é como nossos princípios éticos que nos indicam o Bem e o Mal, o Certo e o Errado. Um psicopata social, por exemplo, é um sujeito para quem não existem o Certo e o Errado da sociedade em que vive. Existe apenas o Certo e o Errado dele próprio. Sua bússola só aponta para ele mesmo. Seu único ponto de referência são seus impulsos e suas vontades.

Há outra história que já vi referida como ameaça aos navegadores portugueses que se aventuravam no oceano: a existência de uma enorme montanha magnética (segundo alguns, nas proximidades de ilha de Bornéu) que era capaz de arrancar todos os pregos de uma embarcação, desmanchando sua estrutura e fazendo-a naufragar. Esta lenda é, na verdade, anterior às viagens dos Descobrimentos, pois é mencionada nas Mil e Uma Noites, na “História do Terceiro Calênder, ou Dervixe”.

Diz a tradução de Sir Richard Burton: “Amanhã, no fim do dia, nos aproximaremos de uma alta montanha de pedra negra conhecida como a Montanha Magnética, para a qual as correntes marinhas nos conduzirão, mesmo a contragosto. Assim que estivermos próximos, o navio se desmantelará e todos os pregos ali cravados voarão pelo ar até grudar-se aos flancos da montanha, pois Allah, o Todo-Poderoso, concedeu àquela pedra a misteriosa virtude do amor pelo ferro, e por esta razão tudo que é de ferro é por ela atraído. E nessa Montanha existe muito ferro, tanto que ninguém além de Allah pode calcular, arrancado dos muitos navios que ali se perderam desde os tempos de antanho”.

Temos aqui o caso inverso, que sugere a aproximação entre duas pessoas e o desmantelamento total de uma delas, que tem sua força totalmente sugada para fora de si e literalmente se desmancha. Tantas vezes ouvimos alguém se queixar, após uma relação conturbada: “Fulano(a) me desestruturou por completo”. A presença ou a ação da outra pessoa retirou do indivíduo incauto os “pregos” que mantinham no lugar suas convicções, seus hábitos, seu equilíbrio. Nada substancial foi destruído, o que se perdeu foram apenas os conectivos que mantinham as partes ligadas entre si. A imagem literária é fantástica, e, como tantas vezes acontece, intuitivamente verdadeira.

2165) A experiência do dr. Lugano (14.2.2010)





Este episódio está registrado nos Anais do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri, vol. XII, a partir da página 119, substanciado por depoimentos e reproduções das imagens pertinentes ao caso. Basta-me aqui referir os fatos principais, que julgo não serem de conhecimento do grande público.

Em meados de 1976 surgiram boatos de que uma D. Eulália, residente em Monteiro, no Cariri paraibano, estava produzindo fenômenos mediúnicos, testemunhados por dezenas de pessoas. Não havia a tradicional comunicação com espíritos dos mortos; foi constatado que nas ocasiões em que ela entrava em transe ocorriam fenômenos de levitação, poltergeist, materialização de ectoplasma, etc. 

O dr. Alberto Lugano, professor da então FURNe (hoje Universidade Estadual da Paraíba-UEPB), procurou-me no Museu de Arte, onde eu trabalhava, e pediu-me que o acompanhasse numa visita, levando uma filmadora Super-8.

Em Monteiro, fomos recebidos pela família de Dona Eulália. Explicamos que queríamos filmar tudo, e não encontramos oposição. Havia uma dúzia de visitantes na sala, que era ampla, e mais alguns membros da família. Instalei o tripé, acendi luzes. 

D. Eulália sentou-se numa cadeira, e pedimos que se colocasse de encontro a uma parede branca, que nós mesmos escolhemos. E foi assim que consegui filmá-la no momento em que, depois que ela mergulhou em transe, a cadeira se ergueu no ar, diante dos nossos olhos, oscilando um pouco para os lados, mas subindo verticalmente, a um palmo da parede, e chegando a ficar quase dois metros acima do chão. Depois, baixou.

O filme provocou debates acalorados na FURNe (“Charlatanismo! Hipnose!”), e depois na UFPB em João Pessoa, para onde o levamos na semana seguinte. Era apenas um rolo de Super-8; eu tinha levado vários rolos, mas o fenômeno durou apenas dois ou três minutos. 

Pude mostrar que não havia truque, até porque o Super-8 é reversível, ou seja, não tem um negativo de onde se tire uma cópia. O rolo filmado é, depois que o revelamos, o mesmo rolo exibido, e era claro que não havia manipulação. E não se pode hipnotizar uma película.

Voltamos para Campina e fizemos nova sessão, convidando a imprensa. Todos prenderam a respiração vendo novamente o plano único, sem cortes, da médium sentada, seu rosto arfando, os olhos esbugalhados fitando a câmara e fechando-se devagar. Em seguida sua cabeça descaía para o lado, e a cadeira começava a se elevar. 

Chegando ao fim do filme, um crítico de cinema local veio até o projetor e pediu-me para fazer uma nova projeção, mas começando do ponto em que a mulher já estava em transe. Fiz o que ele pedia, apagamos as luzes... e daí em diante (juro pelos meus filhos) a mesma imagem que víramos antes mostrou apenas a cadeira imóvel, e a médium de cabeça baixa. Nada se mexeu, nada se elevou. 

“Sim,”, disse o crítico, “é impossível hipnotizar uma película, mas se a película registra algo capaz de hipnotizar, julgamos ver na tela o que nunca foi registrado pelas lentes. É sempre assim”.


(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2011)


2164) Heróis em três tempos (13.2.2010)



No tempo pós-II-Guerra-Mundial, surgiram livros, filmes e músicas enaltecendo um novo tipo de heróis. Filhos rebeldes que desafiavam os pais. Moças que entregavam sua virgindade a quem bem entendiam. Jovens que questionavam os professores, eram expulsos da escola, fugiam de casa. Hordas de jovens que preferiam idolatrar um músico negro do que um político branco. Hordas que se entregavam a uma música dissonante, eletrificada, selvagem, sacudindo os corpos como se estivessem sendo possuídos por espíritos bestiais. Multidões de jovens tirando a roupa, rolando na lama, e dizendo que aquilo era a liberdade. O cinema e a literatura exaltavam esses personagens como “os jovens de hoje, que estão criando o mundo do futuro”. Os adultos se indignavam: como era possível? Que futuro era esse, que essa “juventude transviada” iria criar?

Passou-se o tempo. Os jovens cresceram, casaram, tiveram filhos, ficaram grisalhos. E o cinema e a literatura começaram a retratar e glamourizar outro tipo de heróis: jovens que se drogavam abertamente, que traficavam drogas abertamente, e diziam estar curtindo a vida. Rapazes e moças que assumiam em público que eram homossexuais, que se orgulhavam disso, e exigiam ser tratados como quaisquer outros cidadãos. Epidemias sexuais se alastravam – e suas vítimas, em vez de párias, eram tratadas como heróis. Usar drogas e fazer orgias sexuais eram sinônimo de ser moderno. Os pais reagiam, dizendo que aquilo era o fim do mundo, e os jovens retrucavam: “Nós somos livres, nós temos o direito de ser abertamente isso que somos, ninguém tem o direito de nos reprimir”.

Cinquenta anos atrás, usar drogas era um crime; hoje é um hábito tão impregnado na sociedade que muita gente começa a pedir que seja descriminalizado, e em seguida normatizado pela legislação. Ser homossexual era uma doença e um vício: hoje é uma opção sexual tão legítima quanto qualquer outra, e quem a pratica não vê motivo para se envergonhar do que é. Casamentos interraciais, que já foram considerados uma ofensa aos bons costumes, hoje são encorajados.

Isso é um tema que de vez em quando ressurge na conversa de pessoas da minha geração. Nossos avós se horrorizariam se vissem que certas coisas abominadas por eles são tidas como naturais e corretas hoje em dia. Será que nossos netos viverão num mundo que nós, os liberais de hoje, rejeitaríamos com terror e repulsa? Será que algumas práticas (nem quero imaginar quais!) que hoje consideramos moralmente condenáveis (quando não bestiais ou desumanas) virão a ser assimiladas pela moral de, digamos, 2050? Quem serão os heróis endeusados pela literatura e pelo cinema dessa época? Quais os vilões de 2010 que passarão então a ser heróis, e virarão símbolos do inconformismo e da liberdade individual? Será que nossos netos lerão estes nossos temores, e sorrirão com piedade, pensando o quanto éramos ingênuos, o quanto éramos frágeis e bobinhos?

2163) “Repo Man: A Onda Punk” (12.2.2010)



Vi este filme de Alex Cox, feito em 1984, na TV aberta, e nunca o esqueci. Revi agora na TV a cabo, e ele continua bom, um quarto de século depois, embora não tenha me produzido a mesma impressão da primeira vez. É um filme B (produção entre-amigos, meio “não-tem-tu-vai-tu-mesmo”) misturando elementos de ficção científica e espionagem aos filmes sobre juventude punk. Seus personagens são rapazes e moças desocupados, com pouca instrução, que se entregam à bebedeira, à droga, aos pequenos crimes e a “bicos” ocasionais de trabalho. Otto (Emilio Estevez) é um desses rapazes, que meio por acaso torna-se um aprendiz de Repo Man, o sujeito encarregado de tomar de volta, na marra, os automóveis cujos donos atrasaram as prestações. E seu instrutor é Harry Dean Stanton, o ressequido e encovado protagonista de “Paris, Texas”.

A FC entra na história de maneira oblíqua e gratuita (no bom sentido): um dos carros que os Repo Men estão tentando reaver foi roubado na região de Roswell, e traz na sua mala alguma coisa de procedência alienígena que carboniza instantaneamente qualquer incauto que levante aquela tampa. Há um longo e surrealista diálogo em que dois personagens estão queimando lixo num tonel, para se aquecer, e um deles dispara um arrazoado explicatório sobre os discos voadores e sobre os desaparecimentos inexplicáveis de pessoas, principalmente na América Latina. Segundo ele, os discos voadores são máquinas do tempo, e abduzem as pessoas para levá-las ao Passado. Essa típica argumentação de maluco é conduzida de maneira lacônica e hilária pelo ator Tracey Walter. É uma daquelas teorias da conspiração que sempre fizeram tanto sucesso entre hippies, punks, drogados e malucos em geral, e que autores como William Burroughs e Philip K. Dick consagraram como um dos grandes temas literários do século 20 (não estou brincando).

Repo Man não chega a ser um grande filme. Há muitas cenas em que nada acontece; do meio para o fim, se transforma numa daqueles filmes em que quatro ou cinco grupos diferentes perseguem a mesma coisa e a gente acaba sem saber quem está contra quem e a favor de quem, e quem sabia que alguém já tinha feito ou impedido alguém mais de fazer alguma coisa e quando. Além do mais, abusa do onanismo automobilístico a que os americanos não resistem, com intermináveis perseguições de automóveis cantando pneus e esbarrando uns nos outros. Mas pretendo comprar o DVD para me deliciar com sua qualidades. A história é improvável como história e por isso mesmo extravagantemente realista; os diálogos cortantes e surpreendentes; as mini-piadas contra a América Oficial, que o costuram do começo ao fim; os “non sequitur” constantes, que não deixam o espectador ligar o piloto automático; o retrato do subsolo do Sonho Americano na Era Reagan, onde fervilhavam alienígenas, punks e drogados, para quem ousasse acreditar em sua existência.

2162) Alan Alda e a Internet (11.2.2010)



“De que modo a criação da Internet modificou sua maneira de pensar?” Esta é a pergunta que a revista eletrônica Edge propôs a um grande número de cientistas, artistas, etc. Talvez as respostas de cientistas ilustres tenham mais profundidade e mais alcance, mas em enquetes amplas como esta minha primeira curiosidade vai para as respostas das pessoas que sei quem são, e que muitas vezes são leigos bem intencionados, como eu mesmo. Talvez seja este o caso de Alan Alda, ator e diretor de TV e cinema, mais conhecido pelos papéis que interpreta nos filmes de Woody Allen, de quem é grande amigo. Alda é aquele sujeito alto, de nariz aquilino, que fala pelos cotovelos, e em geral faz papel de salafrário bem-sucedido, matando Allen de inveja e de complexo de inferioridade.

Alan Alda responde à enquete com algo que já havia passado pela minha cabeça e provavelmente pela de alguns leitores. Diz ele que não é muito chegado a conversas pelo telefone, e que assim que a Internet surgiu, e com ela o e-mail, isso se tornou o substituto ideal para a comunicação telefônica. O problema, diz ele, é que “pelo menos uma vez por dia eu tenho que parar e ficar pensando se aquilo que escrevi e mandei pode ser mal interpretado. Num email, não existe a modulação instantânea da voz que, ao telefone, pode corrigir um tom de voz inadequado”.

Todos nós já passamos por isto, mas acho que acontece com mais frequência com pessoas que nunca foram grandes escrevedoras de cartas (no tempo da máquina de escrever, e das cartas via postal) mas agora comunicam-se constantemente por mensagens escritas. Falta às vezes um certo jogo de cintura, e as frases lhes saem um pouco duras demais, soam arrogantes, frias, e podem ser mal recebidas do outro lado. Foi justamente por isto que a comunidade internética inventou os emoticons, para colorir emocionalmente o que talvez tenha sido dito de modo muito seco. Os emoticons dizem: “estou rindo, estou fazendo cara de desapontamento, estou boquiaberto, estou fazendo uma careta de raiva...” Diz Alda que o problema maior se deve à rapidez com que escrevemos emails ou textos em tempo real, o que nem sempre nos permite revisar com cuidado o que foi dito.

Outro aspecto que ele aponta é a multiplicação de informação vazia: “A Internet conectou tantos milhões de pessoas em multidões anônimas que é possível criar a impressão de que algo é verdade pela mera quantidade de pessoas que repetem aquilo”. Ele compara esta situação com o fato de que, na falta de maiores informações, sempre preferimos um restaurante cheio do que um vazio, embora isto não seja garantia de que a comida dali é melhor. O principal sintoma disto, acho, são os textos apócrifos (poemas “de Borges” ou “de Garcia Márquez”, artigos atribuídos a Jabor ou a Veríssimo). Ninguém me tira da cabeça que daqui a mais alguns anos será impossível extirpar esses textos de qualquer edição das Obras Completas dos infelizes não-autores.