sexta-feira, 17 de agosto de 2018

4377) O último processo de Kafka (17.8.2018)




(ilustração: Misha Vyrtsev)

Em março de 1939, quando o Alemanha nazista anexou a Tchecoslováquia, um escritor judeu chamado Max Brod fugiu imediatamente de Praga, e por vias tortuosas acabou se refugiando em Tel Aviv. 

Brod não quis correr riscos: era um judeu militante, e uma figura pública na capital tcheca. Aos 24 anos publicara um romance de grande sucesso, O Castelo Nornepygge (1908), logo seguido por outras obras que tornaram seu nome conhecido não só nos meios literários tchecos, mas também na Alemanha – como muitos tchecos cultos do seu meio, ele escrevia em alemão.

Ao fugir, ele levou consigo, curiosamente, uma grande quantidade de manuscritos deixados por outro autor, grande amigo seu, chamado Franz Kafka, um nome que apenas algumas centenas de pessoas do meio literário de Praga sabiam quem era.

A obra de Max Brod parece ter sido esquecida; ao salvar o espólio do amigo, ele parece ter condenado a si próprio a ser eternamente “o amigo que salvou da destruição a obra de Kafka”.

Kafka é um dos dez ou doze autores de quem já disse algo tipo “sua obra condensa, resume e define o que foi o século 20”.

Em vida, Kafka (que trabalhava como um advogado) era conhecido nos meios literários por coletâneas de contos como Contemplação (1912) e Um Médico Rural (1919), além das noveletas A Metamorfose (1915) e Na Colônia Penal (1919). Quando morreu em 1924, coube a Brod editar postumamente obras como O Processo (1925), O Castelo (1926) e America (1927).

Na fuga de 1939 para Tel-Aviv, Brod levou consigo uma quantidade de outros escritos deixados por Kafka. Esse espólio, desde então, tem sido objeto de uma briga jurídica tipicamente kafkeana, sobre a qual já escrevi aqui:


Esses manuscritos, depois da morte de Max Brod em 1968, em Tel Aviv, acabaram ficando presos num limbo supranacional. Estão como aquele personagem de Tom Hanks no filme Terminal (2004) de Steven Spielberg, que não pode sair do aeroporto nem embarcar em nenhum voo porque seu país de origem deixou de existir.

Os alemães reivindicam para si o material, que é escrito em alemão. Os judeus querem mantê-lo consigo, por ser a obra de um autor judeu.

A obra de Kafka tem recebido ao longos destas décadas numerosas leituras. Para os de viés psicanalítico, ele se debatia contra a autoridade implacável e surda de um pai dominador, contra o qual escreveu a famosa Carta ao Pai (1919).

Para os religiosos, ele se defronta com o silêncio de um Deus que se manifesta através de decisões incompreensíveis e se recusa ao diálogo.

Para os de formação política, ele prenuncia os estados totalitários de hoje, que se valem de instrumentos como a burocracia, a tortura e a arbitrariedade jurídica. Ou então como o pesadelo de um judeu prefigurando a catástrofe que as décadas seguintes trariam sobre o sue povo.

A labiríntica batalha jurídica entre alemães e judeus pela obra ainda inédita do autor tcheco é descrita no livro (a sair em breve) Kafka’s Last Trial de Benjamin Balint, resenhado aqui por Adam Kirsch:


Kirsch chama a atenção para o fato de que esse limbo, essa indefinição, esse confuso estatuto de pertencimento e de não-pertencimento que caracteriza a vida e a obra de Kafka talvez seja um dos motivos profundos do seu apelo para o leitor moderno.

Kafka era tcheco por nascimento, judeu por etnia e cultura, alemão pelo idioma. Tinha lealdades e afiliações contraditórias. Como todos nós, hoje.

O século 19 em que nasceu era ainda o século do colonialismo, da Europa que se supunha onipotente, dos nacionalismo em consolidação ou em expansão voraz. Supunha-se, naquele tempo, que para alguém era possível (e até desejável) ser apenas alemão, ser apenas francês, ser apenas inglês, e que isso bastaria para fornecer toda a “fórmula química” capaz de definir um cidadão.

A falácia nacionalista (ou a fantasia nacionalista, para usar um termo mais suave, mais compreensivo) foi estilhaçada pela economia e pela política do século 20 – o Século de Kafka.

Nenhum ser humano pertence a uma só categoria, e à medida que as crises sociais e as revelações históricas se expandem, essas categorias se tornam cada vez mais contraditórias, rasgando e dilacerando a alma de cada um.

Pergunte-se (para dar um exemplo extremo) a uma mulher negra do Nordeste brasileiro se ela se considera “mais” mulher, ou “mais” nordestina, ou “mais” brasileira, ou “mais” negra. Qual dessas categorias a define de forma mais essencial? Cada pessoa dará uma resposta diferente.

São lealdades contraditórias. Cada pessoa (também eu, e cada um de nós) é produto do Século de Kafka, o século das essências fragmentadas, da busca de um Centro que não mais existe.