terça-feira, 8 de maio de 2018

4345) Coincidências literárias (8.5.2018)



(P. K. Dick, por Robert Crumb)

Uma das minhas teorias sobre a natureza essencial do Universo é de que existem de fato, como afirma a ficção científica, universos paralelos, muito parecidos uns com os outros, mas cada qual diferente, de acordo com variantes das escolhas que fazemos.

Só que na minha interpretação esse universos não são propriamente paralelos, tipo “linhas retas que não se tocam e que se alongam, lado a lado, rumo ao infinito”. São superpostos. São como aquelas fotos de dupla exposição onde vemos a mesma paisagem sobreposta a si mesma.

Se fossem paralelos, não se tocariam, seriam inacessíveis um ao outro. Sendo Universos Superpostos, estão misturados e se influenciam. Avançam todos juntos ao logo do espaço-tempo, compartilhando um mesmo centro mas fervilhando de variantes nas regiões periféricas.

Objetos ou seres de baixa atividade (uma calçada, um porta) aparecem mais nítidos, porque em todos os universos superpostos eles só são aquilo mesmo, e pronto. Mas um ser humano é um turbilhão de dezenas ou centenas de silhuetas misturadas, andando na rua, balançando os mesmos braços e as mesmas pernas. Silhuetas instáveis, cada uma delas pronta para se despregar das outras e dobrar uma esquina enquanto as demais prosseguem em frente, na mesma calçada.

Algumas pessoas são mais instáveis do que outras.  Quando nos aproximamos delas, dos universos onde o peso delas é maior, sentimos em volta delas uma turbulência, como se ali as leis normais de causa e efeito estivessem em crise.

É que chamo de “intensificação do campo probabilístico”. Em volta do mundo daquelas pessoas, tudo pode acontecer, mesmo o mais improvável.

É o caso de Philip K. Dick, cuja obra literária é um impressionante conjunto de narrativas em torno disto – e cuja biografia parece ainda mais fantástica do que as histórias que ele inventava.

Num saite literário britânico, Andrew Spong comenta uns detalhes divertidos:

Todas as obras de Philip K. Dick têm uma maneira bizarra de fazer a gente pensar que elas foram escritas pensando em nós. Isto é ao mesmo tempo algo desconcertante, e também totalmente de acordo com o impulso de paranóia que lateja no coração de todos os seus livros, de uma maneira ou de outra.

Assim, no dia em que eu li o romance A Maze of Death eu tinha comprado os ingredientes para preparar um “curry” de carneiro, que depois o vi mencionar na página 24; e tinha encomendado, dois ou três dias antes, a entrega de uma garrafa de uísque Seagrams, que aparece na página 31.

Eu concordo totalmente com o depoimento de Spong. Ler Philip K. Dick nos aproxima de uma região em que coincidências e sincronicidades inexplicáveis ficam mais freqüentes.

São os famosos “erros da Matrix”. Quando Dick está por perto, a Matrix erra muito mais.

Em junho de 2017 eu estava traduzindo Time Out of Joint, de Dick, que vai sair em breve pela Suma de Letras (RJ) com o título O Tempo Desconjuntado. A certa altura, lá pelo capítulo 13, dois personagens chegam numa espécie de mundo do futuro e se deparam com uns rapazes meio punk-futuristas, que falam numa língua quase ininteligível.

No mesmo dia, vi uma postagem de Cassandra Veras no Facebook onde ela se queixava da transcrição errônea de um poema de Carlos Drummond num websaite, e dizia que no futuro as pessoas iriam citar erradamente o poema, por causa disto. E quando comentei, ela me mandou um link para o conto de William F. Temple “Caminho de Fuga” (que eu já conhecia da antiga antologia Maravilhas da Ficção Científica, da Ed. Cultrix), sobre um viajante no Tempo que vai ao futuro e lá as pessoas falam uma linguagem quase ininteligível.

Cerca de um mês depois eu estava traduzindo outro livro de Dick, Now Wait For Last Year (ainda sem data prevista de lançamento), e li este trecho:

No seu horário de almoço, Bruce Himmel, técnico encarregado do estágio final do controle de qualidade nas instalações centrais da Tijuana Fur & Dry Corporation, deixou seu gabinete de trabalho e desceu as ruas de Tijuana rumo ao café onde tradicionalmente almoçava, não apenas por ser barato, mas por exigir dele muito pouca interação social.

À noite, no Suplemento Literário Minas Gerais, um número especial sobre a revista Estória, leio nos primeiros parágrafos de um conto de Sérgio Sant’Anna (“A Luta”):

Aqueles caras lá na cantina, então nem se discute; não são da minha laia. Mas eu vinha sempre. Era perto do serviço e o preço eu dava conta de pagar.

Alguém pode objetar que se trata de uma situação relativamente comum, nada improvável de aparecer em dois textos diferentes. A sincronicidade, no caso, é o fato de eu ler os dois exemplos no mesmo dia, de maneira totalmente aleatória.

E antes que algum Calabar mande vir à minha casa uma força-tarefa de enfermeiros do Pinel munidos de camisas-de-força, devo advertir que as presentes conjeturas são apenas literárias e não têm a menor pretensão de exprimir minha visão oficial sobre A Vida, O Universo E Tudo Mais.