terça-feira, 21 de junho de 2022

4835) A arte do acróstico (21.6.2022)



 
Bons redatores assinam um livro iludindo olhares; teoricamente, a verdadeira arte revela-se entre segredos.
 
O parágrafo acima é um acróstico. Se você não sabe o que é um acróstico, mexa-se, bote para funcionar as pequeninas células cinzentas.
 
O acróstico é um dos muitos jogos de palavras (“wordgames”, “jeux de mots”) que são praticados há séculos, talvez há milênios, em muitas culturas, e sempre despertam nas pessoas de senso prático uma surpresa contrafeita: “Mas que besteira, que perda de tempo, para que serve isso?”
 
O acróstico, como recurso da escrita poética, por exemplo, não é muito diferente da rima. A rima consiste em repetir, a intervalos regulares, os mesmos sons, palavras que contenham sons iguais ou parecidos.
 
A rima tem o pretexto de produzir um efeito estético, quase melódico. Enquanto nossa mente intelectual decifra o “conteúdo” das palavras, nossa mente sensorial vai registrando essas repetições, uma série de pequenas expectativas sonoras que logo são satisfeitas.
 
Já o acróstico... é quase invisível. Ninguém lê um poema prestando atenção à letra inicial de cada linha, a menos que tenha uma razão prévia para isso.


Eis aqui um exemplo básico, do poeta Leandro Gomes de Barros, assinando seu nome no folheto História do Cachorro dos Mortos:
 
Leitor não levantei falso
Escrevi o que se deu,
Aquele grande sucesso
Na Bahia aconteceu,
Da forma que o velho cão,
Rolou morto sobre o chão
Onde o seu senhor morreu.

No tempo dos reis, os poetas costumavam usar o nome dos soberanos, numa coluna vertical de letras, para compor seus poemas. Poemas religiosos e devocionais eram feitos no mesmo sistema.


C. C. Bombaugh, em seu fascinante “almanaque” de curiosidades (Oddities and Curiosities of Words and Literature, Dover, 1961, ed. Martin Gardner) dá exemplos de três modalidades: o acróstico (onde palavras são formadas com as letras iniciais dos versos, lidas verticalmente), o mesóstico (o mesmo, só que com a letra mais ou menos no meio do verso) e teléstico (com a letra final de cada linha).
 
Ele chega a dar um exemplo latino, onde as três formas são usadas ao mesmo tempo:
 
Inter cuncta mitans   Igniti sidera coelI
Expellit tenebras  E todo Phoebus ut orbE
Sic caecas removet JeSus caliginis umbraS
Vivificansque simul Vero praecordia motV
Solem justitiae Sese probat esse beatiS
 
A palavra “Jesus” é formada três vezes na vertical, usando a tradição latina em que J e I se equivalem, e o mesmo para U e V.
 
Na literatura do cordel, o acróstico começou como uma forma do poeta assinar o folheto disfarçadamente, para se prevenir de plágios e apropriações. Depois que o recurso se revelou aos olhos de todos, os plagiários ficaram alerta, e ele deixou de servir de proteção. Tornou-se uma tradição, um floreio estilístico, como neste exemplo de Antonio Américo:



Assinar disfarçadamente um texto era um desafio e um passatempo para muita gente. Edgar Allan Poe, depois de ficar viúvo, teve um namoro breve com uma dama, Frances Sargent Osgood, e dedicou-lhe um poema, “A Valentine”, com assinatura disfarçada. As letras do nome dela apareciam de uma em uma: a primeira letra da primeira linha, a segunda letra da segunda linha, a terceira da terceira, e assim por diante.
 
Eis as quatro primeiras linhas do poema (que tem 20 linhas, usando as vinte letras do nome):
 
For her this rhyme is penned with luminous eyes,
BRightly expressive as the twins of Laeda,
ShAll find her own sweet name, that nestling lies
UpoN this page, enwrapped from every reader.
(…)
 
...e por aí vai. O poema completo pode ser lido aqui:
 
https://en.wikisource.org/wiki/The_Works_of_the_Late_Edgar_Allan_Poe/Volume_2/A_Valentine
 
Pode-se usar também o acróstico num texto em prosa, onde ele acaba se diluindo e praticamente desaparecendo.
 
Há um episódio literário em que um acróstico serviu de armadilha para enganar um autor. O escritor A. N. Wilson começou a escrever uma biografia de Sir John Betjeman, “Poeta Laureado” da Inglaterra. Esse trabalho provocou uma reação de ciúme de outro biógrafo do poeta, Bevis Hillier. Wilson publicou uma carta atribuída ao Poeta, e depois ficou provado ser ela uma falsificação: as letras iniciais das frases, a partir da segunda, formavam a frase em acróstico “A. N. Wilson is a shit” (“A. N. Wilson é um merda”). Depois, Hillier confessou ser o autor da “pegadinha”.
 
A imagem abaixo, que peguei na Internet, mostra uma experiência curiosa, aparentemente assinada por “Sairam Gudiseva, 3º. Período”. Ao invés de letras, usa palavras inteiras. É um trabalho escolar sobre Física Quântica, mas na vertical o autor ou autora colocou versos de uma canção pop de Rick Astley. 


As possibilidades, como sempre, são infinitas.