sexta-feira, 21 de outubro de 2011

2693) Saul Steinberg (21.10.2011)


Eu tinha perdido no Rio de Janeiro esta exposição de desenhos de Saul Steinberg, As aventuras da linha, mas paguei essa dívida a mim mesmo indo vê-la na Pinacoteca de São Paulo. 

Quando estou sacolejando num metrô ou num ônibus rumo a um museu fico me perguntando por que diabo me dou esse trabalho todo na era da Internet, quando basta clicar um “abre-te sésamo” qualquer para que tudo apareça pixelando em nosso monitor. 

Uma das respostas possíveis, no presente caso, é que nenhum monitor pode dar uma sensação equivalente a ver uma faixa de papel com quatro metros de comprimento em que Steinberg traça uma linha horizontal e a vai recheando e rodeando de imagens, como numa imensa Tapeçaria de Bayeux que se desenrola diante dos nossos olhos. 

A faixa começa com o desenho de uma mão que empunha a caneta e traça essa linha horizontal que sucessivamente se torna o chão de um desenho, o céu de outro, o horizonte de outro, a linha do mar em mais um, uma balaustrada, um meio-fio, sempre a mesma linha que corre horizontalmente e é cooptada por uma série de imagens, cada uma dando a ela uma leitura diferente. 

Esta é apenas uma das muitas magias do Rei do Traço, o romeno que por ser judeu teve que fugir da Europa e buscar refúgio nos EUA, onde se tornou um dos mais famosos ilustradores e capistas da revista The New Yorker

Conheci o trabalho dele nos anos iniciais do Pasquim, quando Millor Fernandes, Ziraldo e outros reproduziam seus desenhos e entoavam alalaôs ao mestre. Mestre deles, virou mestre meu também; mesmo quem não é desenhista pode absorver da linha enxuta de Steinberg alguma coisa para sua escrita, assim como um músico pode lucrar o mesmo para o seu piano (eu diria que foi o caso de Erik Satie, se um não fosse tão anterior ao outro) e até um jogador de futebol pode usar algo em seu trato com a bola. (Eu diria que Sócrates, Zidane e Paulo Henrique Ganso têm momentos verdadeiramente steinberguianos.) 

A exposição em SP traz numerosos exemplos das famosas séries em que Steinberg pega um tema (um cowboy; uma perua; uma passeata; um gato; um casal; um casaco de peles) e o reproduz incansavelmente, cada exemplo com um tracejado diferente que sugere diferentes interpretações visuais, leituras críticas, piscadelas irônicas, citações rebuscadas, ou apenas (e sempre) o mero prazer de desenhar. 

Vi na exposição montes de crianças, acompanhadas pela professoras, deitadas no chão da Pinacoteca, lápis e bloquinho na mão, copiando, imitando, parodiando e distorcendo os desenhos do mestre. E vivendo na idade certa a descoberta do prazer de desenhar, um reino onde as possibilidades, como sempre, são infinitas.




2692) O Espaço Selvagem (20.10.2011)





Um tema que a ficção científica brasileira tem cultivado, sem nenhum planejamento ou esforço coordenado, é o que poderíamos chamar de Espaço Selvagem, o espaço do vasto interior brasileiro, o Brasil profundo que ainda não foi descoberto e que pode guardar para a humanidade variados tipos de surpresa. 

Não é uma novidade no gênero, porque os ingleses (H. Rider Haggard, principalmente) inventaram o gênero dos Reinos Perdidos na Floresta. Os romances brasileiros, no entanto, não nos interessam por terem inventado um gênero novo, mas por terem utilizado uma fórmula européia para refletir sobre o Brasil.

Menotti Del Picchia escreveu dois romances fundamentais desse ciclo, A República 3.000” (ou A Filha do Inca, 1930) e Kalum, o mistério do sertão (1936). 
Jerônymo Monteiro, um dos pais da FC brasileira, publicou em 1934 A Cidade Perdida e em 1949 A Serpente de Bronze, onde aparecem os atlantes. 

O mito de Atlântida retorna em Os Bruxos do Morro Maldito e os Filhos de Sumé de Agostinho Minicucci (1992), e é ressuscitado na Paraíba (mais especificamente, na Pedra do Ingá) no poema épico A Atlântida de Amílcar Quintella Jr. (1957)

Descendentes do império inca também aparecem em A Amazônia misteriosa de Gastão Cruls (1925) e em A Clã Perdida dos Incas de O. B. R. Diamor (1958). Herberto Salles é um caso curioso de romancista regional (Cascalho, 1944) que depois se voltou para a FC com romances como O fruto do vosso ventre (1984) e A porta de chifres (1986), romances ambientados no interior, num contexto de apocalipse ecológico. 

Em épocas mais recentes, Roberto de Sousa Causo tem feito da Amazônia o cenário de seus “thrillers” militares futuristas, como Terra Verde (2000), O Par: uma novela amazônica (2001), etc. Cristovam Buarque, em Os Deuses Subterrâneos (1994), explora uma civilização no subsolo do Planalto Central.

A Amazônia e os cerrados do Centro-Oeste são os cenários preferenciais desses romances, é é curioso notar que a Atlântida e os Incas são frequentemente citados. É como se no Brasil, pela sua extensão e pela inacessibilidade de seu interior, essas civilizações estivessem tendo uma sobrevida. (Algo parecido com o que Conan Doyle imaginou em O Mundo Perdido: que no Brasil haveria um platô onde os dinossauros ainda existiam.) 

Não é exclusividade do Brasil a existência de um Espaço Selvagem literário; o que diferencia nossas histórias das demais é a variedade de paisagens físicas e geológicas, a proximidade histórica e geográfica com os Incas e a Atlântida, etc. São as fagulhas literárias do choque tectônico, ainda em pleno curso, entre a Europa e a América.