segunda-feira, 16 de março de 2009

0890) O Campinense Repórter (22.1.2006)


(Rádio Borborema, anos 1950, esquina da Cardoso Vieira com Venâncio Neiva)

Que me socorram os coleguinhas mais velhos (que já são poucos) e mais bem informados do que eu (que já são muitos). Não sei até hoje qual é a peça de música orquestral que servia de característica musical para o “Campinense Repórter”, o noticiário de emergência da Rádio Borborema em minha infância. Provavelmente um pedaço inocente de música clássica que, pela utilização que recebeu, transformou-se na música mais ominosa, ameaçadora e agourenta do mundo, para várias gerações da Serra.

Era uma época em que a Rádio Borborema dominava latifundiariamente as ondas hertzianas do brejo, sertão, cariri e agreste. A vida ia correndo mansa, fluindo tranqüila, e em dezenas de milhares de residências os rádios estavam ligados, fornecendo o fundo musical para as tarefas domésticas, os papos de botequim e de barbearia, as corridas de táxi, as salas de espera, quando de súbito a programação se interrompia. Soava então a música: aziaga, angustiosa, repleta de presságios de cataclismos mundiais ou de falecimentos na família. “Tan – taran – taran... Taranranranran – taran – taran...” Pois é, amigos, pena que esta coluna não seja interativa para que eu pudesse inserir aqui um link e uma gravação em MP3, fazendo com que os sobreviventes daquela época sentissem de novo o calafrio-de-desgraça-iminente que esta música nos causava.

Depois de alguns segundos a música baixava e ouvia-se em gravação a voz clara e firme de Hilton Mota: “O Campinense Repórter – inforrrrma!...” Uma vinhetazinha musical de transição, e o locutor de plantão começava: “Foi encontrado hoje às seis horas, nas proximidades da Estação Velha, o corpo de um indivíduo moreno, aparentando 35 anos, morto com dois tiros no abdômen..” e assim por diante. Terminada a leitura da notícia, voltava a voz de Hilton: “A qualquer momento – em qualquer lugar – pela onda da Rádio Borborema – o Campinense Repórter – voltará – a informarrrr!...” Voltava a vinheta, e voltava a vida ao normal.

Hoje o Brasil está globalizado, e essa função de anunciar as passagens da Pavoa Devoradora cabe ao “Plantão do Jornal Nacional” ou do “Jornal da Globo”, também com uma musiquinha urgente, nervosa, e aquela imagem de dezenas de microfones brotando da tela em nossa direção, como sanguessugas-robôs querendo nos devorar. Ver aquilo significa parar tudo e correr para a TV – porque “Deu-se Um Fato”. Lembro um dia em que eu caminhava pelo centro de João Pessoa, vi a vinheta na vitrine de uma loja de eletrodomésticos, entrei, e vi a notícia do falecimento do técnico da Seleção Brasileira, Cláudio Coutinho, afogado ao mergulhar nas Ilhas Cagarras. Lembro uma madrugada em que um filme foi cortado ao meio e surgiu a cara desnorteada de Leda Nagle, dizendo: “O presidente eleito Tancredo Neves acaba de ser internado para uma cirurgia no Hospital de Base de Brasília...” Raramente é coisa boa. Mas até hoje eu não sei de onde tiraram a música do “Campinense Repórter”.

0889) Com quem está falando (21.1.2006)



Que me perdoem os meus numerosos amigos que ganham a vida trabalhando em agências de publicidade, mas uma coisa que me dá nos nervos é quando o anúncio se dirige a mim sem cerimônia, me interpela, me provoca, me empurra de encontro à parede, me agarra pela lapela, me sacode: “Vamos! O que você está esperando? Não fique aí parado! Corra para as Casas Franquia, e compre um Plantador de Batatas, mesmo que não precise!” 

Já fiz um curso de criação publicitária e percebi que existe um vasto catálogo de códigos a serem empregados, de acordo com o público-alvo, a faixa de consumo e outros critérios mercadológicos. 

Essa forma de interpelar, por exemplo, só funciona com o consumidor que vai à loja de eletrodomésticos comprar ventilador no crediário. 

Não funciona, por exemplo, em publicidade de cartão de crédito. Aí é preciso baixar o tom, ser afável, ser cortês, dizer que está apenas sugerindo que o cara compre, porque na verdade ele “não precisa”.

Tem um livro interessante de Arthur Schopenhauer, que já folheei na livraria, intitulado Como vencer um debate sem precisar ter razão, onde ele lista numerosas técnicas para confundir o raciocínio do oponente. 

Imagino que uma delas seja essa que a publicidade emprega com tanta freqüência: fazer o interlocutor admitir uma premissa nossa sem que ele perceba a qual conclusão queremos chegar. 

“Estou falando com você – que é um indivíduo moderno, antenado com seu tempo! Você – que sabe o que quer, e que exige sempre o melhor! Você – que sabe que tem o direito de ser feliz... Você precisa de um Plantador de Batatas! Vamos, mexa-se! O que é que VOCÊ está esperando?!”

As anedotas são as grandes parábolas metafísicas de nossa sociedade, os grandes koans cósmicos que, no altar profano de uma mesa de botequim, nos desvendam os grandes segredos filosóficos do Universo. 

Um português vai passando apressado por uma rua do Rio de Janeiro, rumo ao metrô, quando alguém chega aos gritos: “Manuel! Corre, rápido! Assaltaram tua casa em Niterói, e tua mulher foi seqüestrada!” Ele se apavora, larga no chão os pacotes e a pasta, entra num táxi, manda tocar pra lá a toda velocidade, mas quando já está no meio da ponte ele exclama: “Espera aí! Tem alguma coisa errada! Eu não sou casado, não me chamo Manuel, e não moro em Niterói!” 

É exatamente assim que devem se sentir os incautos que acreditam na voz da publicidade e compram essas besteiras que, por algumas horas, chegaram a enxergar como o objetivo final de sua vida, e a utilidade principal de seu salário.

“Os anúncios querem lhe convencer de que você pode fazer o que nunca foi feito, pode ganhar o que nunca foi ganho, e enquanto isto a vida continua a mesma à sua volta” (Bob Dylan, “It’s alright, Ma”). 

Não venham me dizer o que eu quero, ou do que preciso. Quem se dirige a alguém nesse tom é porque está a fim de impingir-lhe um Lambedor de Sabão, ou um Penteador de Macacos.







0888) “2046” (20.1.2006)



As seqüências iniciais deste filme de Wong Kar Wai, com imagens deslumbrantes de uma megalópole futurista, nos arremessam de imediato no Futuro, “o lugar para onde todo mundo vai, mas de onde ninguém jamais voltou”. Logo logo, no entanto, o véu se rasga e estamos em Hong Kong nos anos 1960, onde vive um escritor de pulp fiction metido a charmoso, que costuma transportar para suas histórias as mulheres com quem se relaciona. Ficção científica é apenas um pretexto para falar de sutilezas existenciais, e nisto Wong Kar Wai está em boa companhia: Cronenberg, Godard, Tarkovsky, Resnais...

O filme é rico em close-ups dos ótimos atores, e em planos-de-detalhe de objetos e texturas. A narrativa é fragmentada, apesar de uma narração em “off” que nos guia, como se estivéssemos de olhos vendados. Existe uma verossimilhança palpável tanto dos ambientes físicos quanto da verdade humana por trás daquela sucessão de pequenos episódios descontínuos. O ponto frouxo do filme é o roteiro, que parece querer ficar sempre no mesmo lugar (certamente porque está gostando). É um desses filmes onde a cada vez que a tela se escurece ficamos esperando o “THE END”, só para ver que tudo continua, surgem novos desdobramentos, novas situações, novos rebates-falsos de Fim.

Um filme apenas reflete o modo de pensar do seu autor, e não precisa necessariamente do famoso “arco narrativo”, não tem que ter desfechos bombásticos e conclusivos. Ao que parece, Wong Kar Wai (não vi seus filmes anteriores) é um cineasta apaixonado por rostos, olhares, pela intensidade psicológica do entrechoque dos atores, sutilmente captada pela câmara e valorizada pelos cortes bruscos que encerram uma cena sem se estender em explicações. Falta-lhe (do ponto de vista dramatúrgico) aquela visão estrutural, em plano-geral, com que alguns diretores percebem a melhor maneira de valorizar um episódio pela geração-e-satisfação de expectativas. A essência da arte da Narrativa é o conceito de “um momento em movimento”, algo que existe com intensidade diante de nós mas que está sendo arrastado na direção de alguma outra coisa, e nos arrasta consigo.

Paradoxalmente, o que falta a 2046 é o empuxo gravitacional desse futuro dramatúrgico (e não me refiro ao futuro FC) “sugando” para si o momento que câmara e atores vivem com tamanha paixão recíproca. O filme existe num presente imóvel, cada cena valendo por si só (muitas delas diluídas por repetições desnecessárias). É como um vôo tipo 14-Bis: o avião decola, sobe dois metros, desce, repica no solo, sobe de novo, volta a descer, a repicar. Um defeito menor. 2046 tem algo da incomunicabilidade existencial do cinema europeu da época em que está ambientado. Personagens sempre em guarda, que não abrem o jogo, falam em código, buscam-se com ressalvas, repelem-se sem explicações, refugiam-se no silêncio, morrem de sofrer mas não abrem nem prum trem. E o trem que os levava ainda os deve estar levando, porque aquele filme é sem fim.

0887) Cantarão a minha glória (19.1.2006)



No Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna há um belíssimo verso que sempre admirei e que sempre me inquietou, por conter um aparente paradoxo que nunca me dei o trabalho de explorar até o fim. Tentarei fazê-lo agora. O verso aparece no Folheto LIV, “A Parada dos Fidalgos Sertanejos”, e ocorre num desafio de cavalhada entre cristãos e mouros, nas ruas de Taperoá. Respondendo à provocação do Rei Mouro, o Rei Cristão diz: 

“Esta é a nossa batalha, 
sangrenta, macha e tirana! 
Minha espada, a Durindana, 
não amostra uma só falha! 
Na forja desta Fornalha 
eu ganharei a Vitória! 
Mas ficarão na Memória 
meus malfeitos e perigos, 
e os Cantadores antigos 
cantarão a minha Glória!”

Perceberam a sutileza? Os cantadores antigos (mesmo já mortos e mudos) cantarão a minha glória. Não é “cantaram”: é “cantarão”. Neste verso, Ariano retoma aquela subcorrente mística que cerca todas as profecias, todos os movimentos messiânicos. Dias atrás eu estava assistindo A Vida de Brian, o filme do grupo Monty Python sobre um sujeito trapalhão que nasceu no mesmo dia de Jesus e acaba sendo confundido com o Messias. Arranja sem querer uma multidão de seguidores que vêem em cada gesto dele um Sinal, e de nada adianta ele dizer aos berros que não é o Messias. Quando alguém faz uma profecia com a ênfase adequada, poderosas forças do inconsciente coletivo começam a se mobilizar para fazer com que aquilo aconteça. Vai acabar acontecendo; é o que em inglês chamam de “self-fulfilling prophecy”, as profecias que forçam o próprio cumprimento.

Um Profeta não é um sujeito que teve um vislumbre do que vai acontecer no Futuro e transmite para nós essa visão; ele não “prevê o que vai acontecer”. O Profeta é alguém que deseja ardentemente, misticamente, obcecadamente, que algo aconteça, e passa a vida convencendo as multidões de que esse algo acontecerá. Impressiona tanto que, como diz o especialista Paulo Coelho, “o Universo inteiro passa a conspirar a favor dessa idéia”.

Quanto o Rei Cristão da Pedra diz que “os Cantadores antigos cantarão a minha glória”, ele implica que no futuro os versos dos cantadores antigos sofrerão uma releitura em função das façanhas que ele, o Rei, levou a cabo. Onde quer que haja um verso antigo celebrando os feitos de um herói, esses versos serão desconstruídos e reconstruídos para adaptar-se a ele, como se se tratassem apenas de uma previsão, um texto preparatório para a existência daquele herói específico. No Passado os cantadores “cantaram” uma glória abstrata, mas no Futuro “cantarão” as glórias de Fulano de Tal, porque serão lidos de uma maneira diferente. A História pode ser reformatada ao ser relida. O Passado é tão mutável quanto o Futuro. O Presente modifica o Passado, e pode fazer com que mudemos radicalmente a maneira como lemos os textos produzidos pelo Passado. O que os Profetas e os Cantadores antigos disseram ainda não terminou de acontecer.