quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

5016) Drummond: "Romaria" (27.12.2023)




("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 
 

As romarias ou peregrinações são eventos curiosos, onde há de tudo – mortificação do corpo, diversão, penitência, passeio, busca da transcendência, busca do gregarismo, jornadas espirituais íntimas, afirmações coletivas de união em torno de uma fé. 
 
Penso nisto quando avalio toda a variedade de peregrinações, inclusive os caminhantes de Santiago de Compostela e os romeiros dos Contos de Canterbury de Chaucer.
 
Histórias de peregrinações são sempre “road movies”, filmes (ou romances) de estrada, de tudo que acontece aos peregrinos durante um trajeto fixo, mítico, carregado de significação em cada pedra, em cada árvore.
 
A romaria é uma forma reduzida de peregrinação – muitas vezes se dá no interior de uma mesma cidade, ou na direção de uma cidade vizinha; mas o espírito é quase o mesmo. 


 (J
uazeiro)  
 

As romarias cristãs dos brasileiros têm um pouco desses formatos tradicionais, como têm um pouco de tudo. 
 
Minha mãe fazia romaria todos os anos para o Juazeiro do Padre Cícero, geralmente na época do Dia dos Finados. Era um grupo de gente idosa e super animada; anualmente faziam uma vaquinha e alugavam um ônibus com motorista para levá-los ao Horto do Padrinho. Iam cantando de Campina Grande até o Cariri cearense. Levavam lanche, marmita, farofa. Chegando lá, rezavam, tiravam fotos, reencontravam amigos distantes, pagavam promessas antigas, faziam promessas novas, e voltavam felizes da vida. 
 
Eu já tinha minhas fumaças agnósticas, mas adotava uma postura filosófica e dizia: “Deixa, é o Woodstock deles.”
 
Pensamos na romaria como uma caminhada só de sofrimentos, talvez porque nos venha a imagem dos peregrinos auto-flagelantes, que caminham chicoteando as próprias costas e deixando um rastro de sangue. Mas toda romaria é heterogênea. Há os masoquistas, os comerciantes (romaria é como carnaval de rua, está cheia de gente com isopor vendendo alguma coisa), os festeiros, os compungidos e circunspectos, os que estão aproveitando aquela chance de sair do confinamento doméstico... 



("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 

 
Gilberto Gil fez um dos melhores retratos na clássica “Procissão” (1967):
 
Olha, lá vai passando a procissão
se arrastando que nem cobra pelo chão...
As pessoas que nela vão passando
acreditam nas coisas lá do céu...
As mulheres cantando tiram verso,
os homens escutando tiram o chapéu,
eles vivem penando aqui na Terra
esperando o que Jesus prometeu. 
 
A procissão de Gil sempre me evocou visualmente, por motivos óbvios, aquela multidão de pedintes andrajosos que em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, Glauber Rocha) avança ao longo daquele buñuelesca escadaria do Monte Santo, seguindo o profeta Sebastião com seu burel esfarrapado e sua cruz que não passa de dois galhos esquálidos atados com cordas.


 
("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 

 
Diferente é a “Romaria” que Carlos Drummond de Andrade incluiu em seu livro de estréia (Alguma Poesia, 1930). O retrato feito por Drummond é mais rico, mais variado, tem algo das procissões auto-punitivas, tem algo das procissões festivas, chega a parecer uma festa-de-largo ambulante, mas não deixa de exibir seu elenco de devotos maltrapílhos que lembram os mendigos de Viridiana ou de Los Olvidados.
 
Existe mortificação física (espinhos, pedras) mas em compensação as romeiras têm coxas, os homens cantam sem parar, joga-se baralho, fumam-se cigarros, é dia de festa. 
 
É curioso que um poema assim talvez fosse a oportunidade para um poeta cético e modernista dirigir alguma crítica ao excesso de fanatismo. O poema de Drummond parece criticar o excesso de festa, é como se dissesse: “Pessoal, vamos devagar, isto aqui não é quermesse!”. Mas... no Brasil tudo que tem multidão vira quermesse. 



("Deus e o Diabo na Terra do Sol") 

 
E os inesgotáveis pedidos! Pedem a Deus tudo quanto não têm, e não é pouco. Talvez o pedido mais patético e sutil seja o desse leproso (outro personagem buñuelesco), que traja uma opa (casacão comprido), agita um estandarte, e pede a Deus para ser curado – mas não da doença, e sim do amor que sente e ninguém retribui. 
 
   
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Romaria
              A Milton Campos

Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.
 
Os sinos tocam, chamam os romeiros:
Vinde lavar os vossos pecados.
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas e rezas.
 
No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha um estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.
 
Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra.
Nos olhos do santo há sangue que escorre.
Ninguém não percebe, o dia é de festa.
 
No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.
 
Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.
 
Senhor, meu amo, dai-me dinheiros,
muito dinheiro para eu comprar
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não pissui.
 
Jesus me Deus pregado na cruz,
me dá coragem pra eu matar
um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.
 
Jesus Jesus piedade de mim.
Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.
 
Os romeiros pedem com olhos,
pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
dorme sonhando com outra humanidade.