domingo, 25 de maio de 2014

3508) Os outros Sertões (25.5.2014)



(ilustração: Gabriel Arcanjo)

Se eu fosse dono de uma editora profissional e Euclides da Cunha me trouxesse o manuscrito de Os Sertões para avaliação, eu diria (claro, desde já beneficiado por quilômetros de leituras e séculos de discussão que não posso eliminar da memória estalando o dedo):

“Doutor Euclides, seu livro é um monumento. O que tem de literário é magnífico, e o que tem de científico é rigoroso e ousado.  Mas como todo monumento ele tem as dimensões de uma montanha. É preciso aproximar-se dele aos poucos, conquistá-lo por estágios sucessivos. O senhor sabe disso.  Tanto é assim que escolheu uma gradação do mais amplo para o mais específico: a paisagem, os personagens, e por fim a luta.  Mas pense se essa estrutura fosse invertida. Primeiro, a Luta, a sangrenta batalha de Canudos.  Finda esta, é como se o nosso ponto de observação se distanciasse, e víssemos o Homem, populações inteiras agindo, nascendo, morrendo, lutando. E depois a Terra, a terra que precedeu a nós todos e que nos sucederá, a terra eterna, a terra que resistirá a tudo, até a nós.”

Acho que Euclides exclamaria “Humpf!” e iria em busca de outra editora. Publicaria o livro exatamente como ele está até hoje, que invalida meu universo paralelo acima. Mas há precedentes. Consta que a ordem dos capítulos do Almoço Nu de Burroughs foi determinada pela ordem em que eles chegavam pelo Correio aos responsáveis pela edição, que eram Allen Ginsberg e Jack Kerouac. (Eu dou por vista a aventura que é trabalhar com dois produtores ajuizados como estes.)

Meu Sertões seria uma versão convincente por si só, sem precisar de comparações com a versão real.  Parece que Euclides quis de propósito tornar o primeiro degrau o mais alto de todos, o primeiro trajeto o mais penoso e comprido.  Fez como Dante, que começou a sua Comédia pelo inferno, como que sugerindo que não há nenhum caminho para o Paraíso que não tenha de atravessar aquilo mais cedo ou mais tarde.  O Purgatório meramente prepara a queda de paraquedas no Paraíso.

No meu, primeiro a batalha!  Não duvido que arrebatasse os leitores.  Mesmo que só lessem isso, teriam tido uma experiência literária inesquecível. Incompleta, claro, mas qual é a experiência literária completa?  Muitos quereriam ler, depois do relato do massacre, a descrição da vida e dos hábitos do vaqueiro.  Seria como ressuscitar os jagunços mortos. A vida continuava.  E na terceira parte, como numa bomba de nêutrons, os humanos desapareceriam e ficaria somente a terra árida, a terra desolada, a terra do sol, a terra perseguida; e a última coisa no mundo seria a descrição científica e impessoal dessa terra sem ninguém.